Justo equilíbrio europeu, por Guilherme d’Oliveira Martins

Mario Telo (1950-2023) foi um incansável estudioso da Europa, natural de Cremona (Itália), doutorado por Florença, foi uma referência consagrada, em especial da Universidade Livre de Bruxelas e do Instituto de Estudos Europeus aí sedeado. Foi um grande amigo e uma presença assídua em Portugal, em especial nos anos noventa, nos Encontros Internacionais de Sintra da SEDES, ao lado de José Vidal-Beneyto, Adam Michnik, Jacek Wosniakowski, Paolo Flores d’Arcais, Michael Walzer, Timothy Garton Ash, Olivier Mongin, Marc Olivier Padis e Jean Claude Eslin. Era uma pessoa sempre disponível e não perdia ocasião para um bom debate e para procurar pistas novas de pensamento e ação…. Seguia com cuidado e inteligência as questões mundiais, designadamente as chinesas e considerava a Europa social como preocupação prioritária. Tinha uma cultura vastíssima, debatia a pintura, a filosofia, a literatura, o cinema, de Gramsci a Pier Paolo Pasolini. Cultivava, segundo o senso comum, o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade. O diálogo só valeria a pena se da troca de ideias resultasse algo de novo. Um dia, em Sintra, junto do Palácio da Vila, numa amena caminhada de Primavera, perdi-o de vista por um momento. Procurei-o intrigado, pelo súbito desaparecimento, e eis que o descubro, entre grande algazarra, com um grupo de crianças a jogar à bola, numa ruela antiga da vila, para grande gáudio de todos…. Pouco depois, agradeceu, despediu-se e retomámos a nossa caminhada, ele estava deveras satisfeito, e regressámos à preparação do sério debate do dia seguinte. Era assim Mario, amante sincero da vida e de uma genuína alegria.

Para ele era sempre fundamental compreender a História com pessoas e acontecimentos, para entender as incertezas. O paradigma de Vestefália (1648), centrado na soberania dos Estados, evoluíra e a Europa é agora um laboratório de novas formas de cooperação, com a coexistência de fatores e forças fragmentárias, de movimentos centrífugos e centrípetos. A Europa de hoje confronta-se com cinco crises, todas relevantes: económica, de legitimidade democrática, de migrações e refugiados, de tendências eurocéticas e a das ameaças terroristas. Os regionalismos foram emergindo, em três vagas: o regionalismo autoritário dos anos 30 e 40; o regionalismo multilateral do pós-guerra num mundo bipolar, com influência norte-americana e, por fim, um regionalismo anti hegemónico. Este último manifesta-se nos vários continentes de modo assimétrico, mas com influência significativa. Num tempo, como o nosso, de polaridades difusas, Mario Telo previa 4 cenários possíveis para o futuro: (a) um regionalismo económico liberal; (b) um reforço da politização nas relações comerciais, económicas e diplomáticas internacionais e inter-regionais; (c) um neo-mercantilismo comercial competitivo com um regionalismo instrumentalizado pelas políticas das potências; e (d) uma fragmentação anárquica, tribal e protecionista. Ora, entre a lógica da fragmentação protecionista e o regresso das potências, a Europa, mercê da coesão social, deverá constituir uma alternativa de multilateralismo e de equilíbrio global. Sendo o futuro sempre incerto e inseguro, a União Europeia deverá dispor de flexibilidade, de uma geometria variável, como o Brexit e as repercussões da Guerra da Ucrânia têm demonstrado. De facto, há muitos motivos, várias forças e razões que importa considerar, em lugar de qualquer determinismo. Deste modo, para Mario Telo, um justo equilíbrio de demarcação entre o protecionismo e as políticas de potência torna-se necessário num contexto europeu baseado na democracia supranacional e na subsidiariedade. O panorama da guerra a leste obriga a mais e melhor Europa.

Guilherme d’Oliveira Martins Nasceu em Lisboa, 23 de Setembro de 1952. É Administrador Executivo da Fundação Calouste Gulbenkian (desde 16 de Novembro de 2015)

17/Março: Álvaro Vasconcelos vai apresentar as «Memórias em Tempos de Amnésia» (I) na Livraria Travessa, em São Paulo

No próximo dia 17 de março, Álvaro Vasconcelos vai estar na Livraria Travessa, em São Paulo, Brasil, para apresentar as «Memórias em Tempos de Amnésia. Uma campa em África», publicado pelas Ed. Afrontamento.

O Forum Demos associa-se a esta iniciativa pública. A apresentação será feita por Renato Janine Ribeiro, Professor de Ética da USP e Presidente do Conselho Brasileiro para a Promoção da Ciência, e também por Rita Chaves, Professora de Estudos Africanos da USP, com a moderação de Celso Lafer, membro da Academia Brasileira de Letras .

Apareçam!


Quando: 17 de Março, 19h
Onde: Livraria Travessa, Rua de Pinheiros 513


Performance de Isabella Maia no último encontro organizado pelo Forum Demos, em Braga

Na passada sexta feira, o Forum Demos esteve em Braga, na Livraria Centésima Página, para a apresentação do último livro de Alvaro Vasconcelos «Memórias em Tempos de Amnésia. Uma Campa em África», editado pela Afrontamento. Com a moderação de Sheila Khan e apresentação por Jose Sergio e Francisco Mendes, e performance de Isabella Maia.

Veja a parte 1 e a parte 2 da performance de Isabella Maia, na apresentação do livro «Memórias em Tempos de Amnésia» (vol. I), de Álvaro Vasconcelos, em Braga

POEMA:

Song, de Alain Ginsberg

The weight of the world
is love.
Under the burden
of solitude,
under the burden
of dissatisfaction
the weight,
the weight we carry
is love.
Who can deny?
In dreams
it touches
the body,
in thought
constructs
a miracle,
in imagination
anguishes
till born
in human–
looks out of the heart
burning with purity–
for the burden of life
is love,
but we carry the weight
wearily,
and so must rest
in the arms of love
at last,
must rest in the arms
of love.
No rest
without love,
no sleep
without dreams
of love–
be mad or chill
obsessed with angels
or machines,
the final wish
is love
–cannot be bitter,
cannot deny,
cannot withhold
if denied:
the weight is too heavy
–must give
for no return
as thought
is given
in solitude
in all the excellence
of its excess.
The warm bodies
shine together
in the darkness,
the hand moves
to the center
of the flesh,
the skin trembles
in happiness
and the soul comes
joyful to the eye–
yes, yes,
that’s what
I wanted,
I always wanted,
I always wanted,
to return
to the body
where I was born.

///

Tradução, em língua portuguesa, por Isabella Maia:

Amor é o peso do mundo. 
Debaixo do fardo da solidão, 
do fardo da insatisfação; 
o peso, 
o peso que carregamos é o amor. 
Quem pode negar?
Nos sonhos, 
toca o corpo; 
nos pensamentos,
constrói um milagre;
na imaginação
angustia até nascer no humano-
cuida do coração queimando com pureza-
porque o fardo da vida é o amor, 

mas carregamos o peso exaustivamente, 
até que descansamos nos braços do amor;
por fim, 
devemos descansar nos braços do amor:
Não há descanso sem amor, 
sono sem sonhos de amor-
esteja bravo ou tranquilo,
obcecado com anjos ou máquinas,
o desejo final é AMOR-
não pode ser amargo, 
não dá pra negar, 
e se negado:
o peso é tão grande.
-há que dar
para nenhum retorno, 
como se fosse dar na solidão,
em toda a excelencia do excesso.
Os corpos quentes
brilham juntos na escuridão, 
a mão move-se para o centro da carne, 
a pele treme de felicidade,
e a alma fica alegre aos olhos-
sim sim, 
é isto que quero, 
que sempre quis;
sempre quis:
retornar
ao corpo
onde nasci.

Hoje, Forum Demos no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

O Forum Demos vai estar esta tarde em São Paulo, entre as 14h locais e as 17h, numa conferência sobre o Clima como Património da Humanidade e o Acordo Mercosul/União Europeia e a questão climática, coorganizada pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, o Forum Demos, a Common Home of Humanity e a Universidade do Porto. De Portugal, Álvaro Vasconcelos e Paulo Magalhães. Do Brasil, João Amorim e Pedro Dallari. A sessão conta, ainda, com a presença da ex-Ministra do Ambiente, Isabel Teixeira, e com o Professor Emérito Celso Lafer.

+ infos:

> Transmissão em direto da conferência aqui

> Manifest Brazil-EU concerning the EU-Mercosur Agreement

Apareçam!

Resistir é vencer, por Jorge Costa

O presente artigo de Jorge Pinto foi publicado a 2 de março de 2023 no blog O Sísifo Feliz, aqui

É-me difícil escrever sobre a guerra na Ucrânia. Identifico-me com uma esquerda libertária, internacionalista e pacifista à qual a maioria das guerras são associadas ao desejo de poder de uma minoria e sempre às custas de uma despojada maioria. Não tenho qualquer paixão pela guerra, qualquer fascínio pelas armas usadas ou pelos tipos de avião ou tanque em ação. Não me consigo congratular com a morte de soldados russos, também eles, na sua imensa maioria, vítimas de Putin. Tenho, ainda assim, a perfeita noção de que esta minha posição é, no fundo, fruto do privilégio de não estar na linha da frente do conflito onde a realidade prática se sobrepõe muitas vezes à realidade teórica. Não me posso permitir a neutralidade. Como escreveu George Orwell em relação à Guerra Civil Espanhola, onde o próprio lutou, quando nos confrontamos com a crueldade e futilidade da guerra, somos tentados a dizer que um lado é tão mau quanto o outro, pelo que somos neutros. No entanto, continua Orwell, não podemos ser neutros e dificilmente haverá uma guerra em que não faça diferença qual dos lados ganhe. Um ano após a invasão russa da Ucrânia vejo-me na obrigação de tentar contribuir para a discussão sobre a posição que a esquerda na qual me revejo deveria ter em relação aos próximos passos. Realço que esta é, forçosamente, uma reflexão com mais questionamentos que tentativas de resposta taxativas.

Putin e o colonialismo russo

As razões que terão levado Putin a invadir a Ucrânia, numa decisão quase unipessoal, de acordo com vários relatos, explicam-se nas palavras do próprio. De uma forma direta e que deixa pouca margem a outras interpretações, Putin afirmou que as fronteiras da Federação Russa não eram estanques, que a Ucrânia era uma não existência e criticou ainda Lenine e a sua visão federalista que incluía a nação ucraniana.

É claro que entre essas afirmações lacónicas ia afirmando que havia um regime nazi na Ucrânia que era essencial substituir. No mínimo irónico, vindo de quem há anos tenta desestabilizar a União Europeia financiando vários partidos e plataformas de extrema-direita. Aliás, apenas o sonho de um regresso a um soberanismo quase sempre mistificado pode justificar o modo como alguma esquerda fecha os olhos ao apoio continuado e substancial dado pelo regime de Putin a várias forças da extrema-direita europeia.

Ora, Putin não contaria com um governo ucraniano corajoso, com um exército ucraniano preparado e equipado nem, sobretudo, com um povo ucraniano que se sente como tal. Anna Colin Lebedev traça a história da evolução e reforço do sentimento de identidade ucraniana, com especial foco no período após o final da União Soviética. Ainda assim, alerta a autora nascida em Moscovo, seria um erro considerar que antes da queda da União Soviética os russos e ucranianos constituíam uma mesma sociedade: apesar de ambos fazerem parte do mesmo Estado, com instituições idênticas, a Rússia era o centro e a Ucrânia a periferia. Lebedev continua dizendo que a

“homogeneização foi conseguida esmagando uma série de diferenças, tendo a história comum sido escrita apagando certos aspetos embaraçosos que não cabiam na narrativa oficial. Estas diferenças só vieram a lume nos últimos anos da União Soviética, mas já estavam presentes na vida quotidiana e nas memórias familiares. (…) Duas populações que tinham muito em comum há trinta anos seguiram caminhos diferentes até se tornarem opostas.”

Na mesma linha que Lebedev, Michel Fouchier afirma que desde o século XIX os ucranianos têm vindo a “construir por etapas uma identidade nacional ucraniana distinta da russa, entre avanços tímidos e recuos trágicos, como as políticas estalinistas de aniquilação da cultura ucraniana”. Fouchier, que em 2013 defendia uma Ucrânia como estado neutro entre a Rússia e a UE, denuncia assim o carácter colonialista desta invasão russa.

Esta visão imperialista e colonialista tem sido aliás um dos marcos da governação de Putin. Desde a sua chegada ao poder, as tropas russas já estiveram em ação na Chechénia, Daguestão e Geórgia, deixando sempre atrás de si um rasto de destruição. Nas tropas enviadas agora para a linha da frente na Ucrânia destacam-se os cidadãos das repúblicas periféricas, no que pode ser entendido como uma política imperialista, como um modo de reduzir os riscos de sublevação nessas repúblicas. Não é por acaso que as poucas manifestações contra a guerra e contra o recrutamento compulsivo têm sido observadas sobretudo no Daguestão.

Acometido por esta visão colonialista e imperialista, Putin parece querer recuperar não a construção, pelo menos na teoria, federal da União Soviética, mas antes a construção imperialista da Rússia. Menorizando e desprezando o sentimento de pertença e de “ucranidade”, onde se incluem muitos ucranianos de língua materna russa, Putin nega qualquer possibilidade de autodeterminação do povo ucraniano, vendo-o apenas como parte do seu império ou, na pior das hipóteses, como parte da sua zona de influência e poder. Esse terá sido o principal erro de leitura de Putin, não percebendo que a Ucrânia e, sobretudo, os ucranianos de 2022, não são os mesmos que em 1989.

Com um discurso com laivos de defesa do infame conceito de “espaço vital”, Putin insiste na mirabolante teoria de que a sua invasão foi um ato de defesa contra a NATO e a EU, fruto das ameaças a esse mesmo espaço que vê como seu. Nesta visão estatizante e presa em conceitos do século XX, apaga-se qualquer direito à palavra dos invadidos, vistos apenas como peões sem capacidade de voz ou pensamento próprio. Uma parte da esquerda, tal como já o havia feito em relação à Síria e às outras tentativas de revolução democrática no mundo árabe, alinha neste discurso de luta de blocos, vendo as sublevações populares exclusivamente como fruto da ingerência externa, sempre apontada para a maior potência imperialista, os Estados Unidos.

Uma esquerda internacionalista e pacifista deve ser capaz de pensar fora deste quadro e estar ao lado dos oprimidos, onde quer que eles se encontrem; deve ser capaz de pensar num mundo de relações justas entre os povos, fomentando alianças entre aqueles que se opõem ao autoritarismo. Essa esquerda deve ser capaz de pensar num mundo multipolar sem com isso cair nos riscos, bem elencados pela marxista indiana Kavita Krishnan, de fomentar uma internacional-autoritária. Também por isso é essencial parar Putin na Ucrânia e estar ao lado dos agredidos.

A esquerda e o direito à resistência

As discussões sobre o que está a acontecer na Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022 começam com a terminologia utilizada. Guerra, invasão, conflito, tensões, cada termo com o seu significado e, sobretudo, com a sua carga e objetivo políticos. Não há na terminologia utilizada qualquer possibilidade de neutralidade linguística; não por acaso, são vários os que, ainda hoje, hesitam em utilizar o termo invasão, uma vez que tal pressupõe um invasor e um invadido.

A realidade da invasão, acrescida de ocupação territorial, por parte da Rússia é, ainda assim, bastante clara. Como escreveu o filósofo espanhol Santiago Alba Rico, naquele que me parece ser o melhor texto escrito sobre o tema, “a invasão converteu-se numa guerra graças à resistência ucraniana. É uma guerra de independência.” Perante a invasão, a resistência. Um invasor e um invadido. Um agressor e uma vítima. Um invasor é um invasor, é um invasor, é um invasor.

Relembremos que a resistência ucraniana foi imediata e de cariz popular. Como esquecer as imagens dos primeiros dias da invasão onde, perante um agressor com um potencial militar incomparavelmente superior, mulheres e homens de várias idades e com vivências díspares se uniram para fabricar todo o tipo de utensílios que pudessem atrasar o progresso do invasor, dos cocktails Molotov às barricadas?

Quando são cada vez mais as vozes que nos querem convencer de que o que está a acontecer na Ucrânia e é uma guerra entre blocos, desprezando – e negando – qualquer posição e autodeterminação dos próprios ucranianos, como se estes fossem acessórios a esta história, é importante relembrar que ali há um povo que resiste à invasão e ocupação. Quem tem o direito e a autoridade de dizer a um povo que o seu direito à resistência é ilegítimo?

Os argumentos da luta de blocos têm servido para que se justifique a agressão russa, transfigurando o agressor em vítima. Num esforçado exercício de procura dos piores exemplos, trazem-se para a discussão conflitos passados, bem como outras ações imperialistas, em particular por parte dos Estados Unidos – que, diga-se, continuam a ser a principal potência imperialista no planeta. Ora, nesta lista parecem quase sempre ausentes os exemplos de lutas de libertação passadas.

Os válidos argumentos a favor do final do conflito misturam-se não raras vezes com os argumentos que desculpam a ação de Putin. Destacam-se de entre esses argumentos o carácter corrupto e/ou nazi do governo da Ucrânia, o facto de haver entre os ucranianos combatentes ultranacionalistas, a necessidade de defesa da população ucraniana de língua russa, a morte desnecessária fruto das consequências diretas da guerra, os cidadãos russos afetados pelas sanções impostas ao país, as consequências sobre os cidadãos europeus como resultado da guerra, na forma de aumento do custo de vida, ou ainda o facto de o prolongar da guerra beneficiar a indústria do armamento.

Olhemos com atenção para alguns destes pontos. Em relação ao primeiro, mesmo que o assumindo como verdadeiro, em pouco justificaria a agressão e invasão russa. Aqueles que em 2003 saímos à rua contra a invasão do Iraque não o fizemos em defesa do regime de Sadam Hussein, mas sim em defesa da legitimidade e da lei internacional. E, nessa altura, as palavras de ordem eram claras e sem grandes adendas: não à invasão. Ponto.

Portanto, sendo o regime ucraniano incomparavelmente mais democrático que o iraquiano de Hussein, como justificar a enorme lista de ressalvas feitas por uma parte da esquerda aquando da (tímida) crítica à invasão russa? O caso da Ucrânia é até mais grave, uma vez que há invasão, mas há também ocupação e feita de modo a ser permanente. É uma invasão mais ao estilo de Chipre do Norte que ao estilo do Iraque. Como escreveu Alba Rico no já referido texto,

“(…) uma parte da direita e uma parte da esquerda concordam que é correto bombardear civis noutro país, desde que os bombardeados sejam maus. Partilham a mesma visão niilista sobre o direito internacional e a legalidade; discordam sobre o conteúdo do mal a ser extirpado.”

Quanto a haver combatentes ultranacionalistas e nazis nas fileiras ucranianas, tal parece ser inegável, embora numa escala substancialmente inferior àquela muitas vezes apresentada – e, eventualmente, numa escala bem menor que do lado dos atacantes russos. Esse facto, ainda assim, é problemático e merece a nossa atenção e crítica – de notar também a tentativa ucraniana de redução da influência da extrema-direita ao integrar e dissolver o infame batalhão Azov nas suas fileiras. Mas voltando a exemplos de lutas de libertação passadas, em quantas não houve abusos bem mais graves do que até hoje observámos na Ucrânia? Pensemos na luta de libertação argelina e na chacina dos messalistas do MNA às mãos da FLN – perderia a causa (no caso, a independência da Argélia) validade fruto das ações e métodos da libertação?

Também o argumento da defesa da população de língua russa parece ser limitado no seu alcance. Desde logo, porque assume que a população ucraniana de língua russa é toda ela favorável à decisão de Putin e a uma eventual absorção da Ucrânia (ou partes do país) por parte da Rússia, algo que está por provar. Em segundo lugar, porque faz equivaler a língua à pertença a uma sociedade e culturas o que, assim argumenta Anna Lebedev no já citado livro, não é forçosamente uma realidade na Ucrânia. Também noutras lutas pela independência, como na das antigas colónias portuguesas em África ou da Argélia, o argumento da proteção “dos nossos e da nossa língua” foi apresentado. Mas alguém à esquerda teria então aceitado, digamos, uma Orão francesa (onde a população era maioritariamente de origem europeia) ou então uma recriação da Rodésia em Angola, como alguns colonos de extrema-direita chegaram a sonhar?

Os restantes argumentos são válidos e reais. É inegável que um prolongar da guerra será benéfico para a indústria do armamento, é inegável que mais gente morrerá quanto mais longa for a guerra e é inegável que a guerra implicou consequências para os cidadãos europeus. Em relação a este último ponto, apenas dois breves comentários: em primeiro lugar, se tivermos de fazer alguns sacrifícios coletivos em vista ao apoio a uma luta justa, acredito que é um preço que vale a pena pagar, em segundo lugar, nada obriga a que sejam os mais fracos da sociedade a ter de pagar a fatura; compete-nos a nós exigir aos nossos governos que as coisas se façam de outro modo.

O rearmamento da Europa seria sempre, infelizmente, uma realidade após a invasão da Ucrânia. Tivessem os objetivos de tomada rápida de Kiev sido atingidos, não é sequer de excluir que o reforço do armamento fosse ainda mais drástico e acelerado. Portanto, também aqui, a grande responsabilidade está no ato inicial, a invasão, e não na necessidade de defesa do invadido.

Quanto ao prolongar da guerra e às vítimas que fará, uma vez mais, saibamos ouvir os agredidos. Para tal, temos de sair desta lógica de que o que temos pela frente é exclusivamente uma guerra entre blocos e ouvir os intervenientes a quem repetidamente e não sem laivos de algum imperialismo fazemos orelhas moucas. Afinal, o que desejam os ucranianos? Continuar a lutar pela sua independência, mesmo que à custa de muitos sacrifícios ou uma paz na forma de cedências? Voltemos a olhar para outros exemplos: quantos morreram pela libertação do Vietname? Deveriam os timorenses, vítimas de um genocídio de décadas, ter capitulado às mãos da Indonésia? Devem os sarauís desistir da sua justa luta? Não se teriam evitado muitas mortes se as vítimas tivessem aceitado a paz proposta pelo agressor? Certamente que sim, mas a que custo?

Paz sim, guerra não

A paz o mais rapidamente possível deve ser o nosso principal objetivo. A paz, sim, não a qualquer custo, mas uma paz justa que não beneficie o agressor. E é nessa distinção entre o que é a paz a que todos almejamos que se distinguem as diferentes propostas de ação. Um ano após a invasão, e quando as forças ucranianas já conseguiram recuperar uma parte do território perdido para as forças russas nos primeiros meses da invasão, esta questão é premente. Do lado ucraniano, o apelo associado ao pedido de paz é claro: apenas com mais armas conseguiremos continuar a resistir e assegurar uma paz justa.

Há, portanto, dois caminhos possíveis no imediato: parar o envio de armas para a Ucrânia ou continuar com o seu fornecimento. Aprofundando estas duas possibilidades, as duas hipóteses sobre a mesa são forçar uma paz imediata que se traduz numa capitulação ou continuar a capacitar a vítima na sua defesa, possibilitando a obtenção de uma paz justa.

Seria importante que os que defendem tout court o fim do envio de armas para a Ucrânia tivessem pelo menos a frontalidade de assumir que essa decisão implicaria num futuro quase imediato a capitulação do país, envolvendo certamente a perda de uma parte do seu território. É uma posição legítima, mas é importante que seja assumida com clareza por aqueles que nela acreditam, sem se escudarem numa pretensa inocente e inconsequente defesa da paz.

Resta saber em que se traduziria concretamente esta Pax Putina que sairia desta opção. Desde logo, temos de ter em conta a decisão tomada por Putin no final do mês de setembro de 2022, de anexação oficial de 4 regiões da Ucrânia (Luhansk, Donetsk, Zaporíjia e Kherson), nenhuma delas controlada totalmente pelas suas forças; mais, uma parte desse território pretensamente sob o domínio russo, com destaque para a cidade de Kherson, foi entretanto recuperada pelas forças ucranianas. Um acordo de paz selado sob a pressão do final do envio de armamento passaria então, certamente, pela perda destas 4 regiões, significando isso a cedência por parte da Ucrânia de uma substancial parte hoje sob seu controlo.

Estariam os defensores do fim do armamento da Ucrânia confortáveis com esta hipótese? Mais crítico ainda, quem nos garantiria que Putin se contentaria apenas com essa fração do território e que estas regiões não seriam um equivalente das Sudetas, cuja ocupação antecedeu a II Guerra Mundial?

A segunda hipótese, de continuar a enviar armas, é bastante mais complexa. Desde logo porque, assumindo que o invasor não se retirará por livre vontade, essa decisão irá prolongar o conflito e, possivelmente, ter consequências (económicas) nos restantes países europeus. Também sobre isto, os defensores desta hipótese, nos quais me incluo, devem ser claros.

No apoio a um país em guerra, há sempre uma questão de linhas: onde colocamos a linha do tempo que estamos dispostos a apoiar a vítima? E a linha do financiamento, até quanto estamos dispostos a pagar? Ou ainda, onde traçamos a linha do tipo de armas (e quantidades) que estamos dispostos a dar? A partir de que momento uma arma deixa de ser defensiva para passar a ser ofensiva? E se essa mesma arma que não conseguiu num dia parar o avanço do invasor, servir agora para recuperar território perdido?

Acreditando no direito à defesa dos ucranianos e acreditando na possibilidade de estes conseguirem uma paz justa, parece-me que apenas a hipótese do envio de armas é aquela que garante melhores condições para que tal aconteça. Aceitando que tal possa levar a um prolongamento do conflito, é importante reforçar que o conflito acabaria no dia em que as forças invasoras se retirassem. Assim, os necessários pedidos de paz não devem colocar o mesmo ónus nos agressores e agredidos. Os pedidos de cessar-fogo, essenciais para as negociações devem antes de mais ser direcionados a quem invade.

Por antagónico que possa parecer, o prolongamento do conflito pode ser a única condição de garantia de melhores condições negociais à vítima. É uma constatação crua e difícil para um pacifista, mas exemplos passados mostram que perante um invasor convicto do seu ato e sem vontade de voltar atrás, apenas a resistência garante uma paz justa e duradoura.

O envio de armas, no entanto, não significa um descurar da via diplomática. Muito pelo contrário, a via diplomática deve continuar a ser a privilegiada, podendo o envio de armas pode ser feito sob a condição de um aprofundar da via diplomática. Na defesa do diálogo, todas as opções devem ser tidas em conta, incluindo também a proposta de paz apresentada pela China, por mais hipócrita que possa parecer. São conhecidos vários esforços públicos de diplomacia, sendo de esperar um maior esforço fora dos holofotes. É importante que estes continuem, independentemente das declarações públicas das partes beligerantes. Como resumiu a eurodeputada Manon Aubry (eleita pela La France Insubmisse), “para forçar Putin a retirar as suas tropas, a nossa ajuda financeira e militar é necessária. O caminho para a paz será longo, mas a diplomacia é a única saída.”

Quanto ao que poderia ser um cenário que traduzisse uma paz justa, as hipóteses são várias, sendo o essencial ouvir os anseios dos invadidos. Ainda assim, um par de notas. Em primeiro lugar, parece-me que o ponto inicial da discussão não pode ser outro que não a retirada das tropas russas de todo o território ocupado desde fevereiro de 2022. A partir desse ponto, poderemos pensar em soluções duradouras que garantam a integridade territorial ucraniana tal como ela é reconhecida internacionalmente. Uma federalização do país, um estatuto de neutralidade que garanta a não-adesão a uma aliança militar ou um estatuto à parte para algumas regiões do país são possibilidades em aberto; o importante é que qualquer que venha a ser a hipótese escolhida, o seja por acordo dos ucranianos.

Uma última nota em relação ao fatalismo de a Ucrânia vir a perder território, tantas vezes apresentada pelos defensores do fim do armamento, a qual muitas vezes se complementa com a defesa de uma paz sem vencedores e sem vencidos: várias foram as lutas de libertação onde o invasor foi efetivamente derrotado; e ainda bem que assim foi.

O papel de Portugal e da União Europeia

Os defensores do não armamento da Ucrânia que, de um modo mais ou menos explícito, parecem aceitar os argumentos avançados por Putin para justificar a invasão, apontam muitas vezes para o facto de a visão do chamado “ocidente” não ser a visão global. Há certamente boas razões para o ceticismo relativo à boa-vontade dos Estados Unidos e dos países europeus, desde logo a memória bem presente do colonialismo e imperialismo desses países.

No entanto, como a recente votação nas Nações Unidas pela retirada imediata das tropas russas da Ucrânia demonstrou, são poucos os países a dispor-se abertamente ao lado da Rússia. Contra esta votação, ao lado do país invasor votaram apenas Bielorrússia, Síria, Coreia do Norte, Eritreia, Mali e Nicarágua, todos países onde a democracia é uma distante miragem. A lista de países que se abstiveram é mais longa (32 países) e nela se incluem países como a China ou antigos países colonizados apoiados na sua luta de libertação pela União Soviética.

E onde fica Portugal nesta discussão? Numa recente entrevista, o primeiro-ministro António Costa afirmava esperar atingir os objetivos de 2% do PIB em despesas do setor da defesa, tal como previsto pela pertença à NATO, num futuro próximo. Ainda assim, é cada vez mais importante pensar na autonomia europeia em política de defesa e no seu papel no globo. A NATO, apesar de, graças a Putin, ter sido ressuscitada da sua “morte cerebral”, é uma instituição com objetivos desadequados para uma política pacifista global, à qual importa encontrar alternativa à escala europeia.

O já citado filósofo Santiago Alba Rico apontou, num texto escrito a propósito do primeiro ano após a invasão da Ucrânia, aponta três limites do projeto europeu que ficaram expostos e que me parecem indicar um excelente caderno de encargos: a dependência energética em relação à Rússia, a dependência defensiva em relação aos Estados Unidos e a sua fragilidade democrática.

Em relação à dependência energética, esta é uma excelente oportunidade para reforçar os objetivos de autonomia europeus, apostando em primeiro lugar na redução do consumo desnecessário e melhoria da eficiência, seguida de uma aposta na produção de energia a partir de formas renováveis e de forma mais descentralizada possível, trazendo os cidadãos para o centro da ação política. Esta resposta ecologista tem de ser associada a uma dimensão anticolonialista e de justiça climática, de modo a que a autonomia europeia não seja conseguida à custa de sacrifícios noutros países.

A dependência defensiva em relação aos Estados Unidos e o combate à fragilidade democrática na EU conseguem-se do mesmo modo: reforçando a democraticidade do projeto europeu e, uma vez conseguido esse passo, criando uma estrutura europeia de defesa e de paz que, colaborando com os Estados Unidos, não esteja dele dependente. Num longo ensaio sobre a necessidade de transformar a Europa para proteger as pessoas, a vice-presidenta do governo espanhol, a galega Yolanda Díaz, afirmava:

“A Europa é um pacto intergovernamental que deve tornar-se um projeto democrático, social e federal. Temos de quebrar a falsa alternativa entre as democracias nacionais e a democracia europeia, pois a primeira deve ser o motor da segunda.”

Este ensaio de Díaz deixa prever um bom semestre europeu sob a responsabilidade espanhola, a começar já a partir do mês de julho e que pode ser o início de uma construção europeia feminista, ecologista, pacifista e antirracista. Nesse projeto terão de caber todos aqueles que acreditam numa solução para a Ucrânia que passe pelo direito à autodeterminação dos ucranianos, incluindo aqueles que na Rússia e Bielorrússia se opõem aos regimes que os oprimem.

O apoio por parte dos países europeus à justa luta do povo ucraniano será tão mais consequente quanto mais forte for o apoio da opinião pública desses países. Saibamos então criar condições para que o custo da guerra não recaia sobre os mais frágeis, aproveitando a ocasião para promover uma União Europeia mais justa e fraterna.

Termino com um lema da luta do povo timorense que terá influenciado muita gente da minha geração: Resistir é vencer.

Jorge Costa é Investigador, com estudos  estudo sobre a potencial ligação entre ecologia, rendimento básico incondicional e o republicanismo enquanto teoria política. Autor de “A Liberdade dos Futuros”, pela Tinta da China, e de “Tamem Digo – Uma História de Migrações”, pela Officina Noctua.

FD reúne na Árvore e no Museu Nogueira da Silva com grupo de cidadãos do Porto e de Braga sobre a Assembleia Cidadã 2023

Nos dias 1 e 3 de março o Forum Demos reuniu na Árvore e no Museu Nogueira da Silva com cidadãos da região norte aprofundar o processo de definição da Assembleia Cidadã. Discutiu-se a metodologia de trabalho, os temas de trabalho, o calendário da Assembleia e a identificação de novos parceiros.

Para além de Álvaro Vasconcelos e Inês Granja, nas reuniões do Porto e de Braga, estiveram presentes Ana Luísa Martinho, Joana Topa, Vilma Gonçalves, Lana Gonzalez Balyk, Aldair Anhaia e Suely Martinelli.

Em meados de março vai realizar-se o próximo encontro com cidadãos de Lisboa, no Centro Nacional de Cultura.

Entrevista ao realizador guineense Sana Na ‘Hada, por Marta Lança | «Cabral desimpediu a estrada da independência, só nos restava pavimentá-la!»

Entrevista ao realizador guineense Sana Na ‘Hada, por Marta Lança, publicado no BUALA, a 1 de março de 2023 

Acompanhados pela sua serenidade e sabedoria encantadoras, ficamos a conhecer o percurso singular e discreto de Sana na N’hada, ‘homem-grande’ que esteve no coração da História. Realizador guineense da geração de Flora Gomes, estudou cinema em Cuba por uma casualidade, filmou a guerrilha do PAIGC, foi director no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau, e tem-se esforçado por resgatar e arquivar as imagens da luta de libertação, nos últimos 13 anos com a artista Filipa César com quem colabora em projectos artísticos e de intervenção. Fez de tudo para filmar, quase sempre em baixo orçamento, e caminhando quilómetros para ir buscar e mandar revelar película. Relata-nos a importante e complexa missão que Amílcar Cabral lhes delegou e como foi, a meio desse processo, saber a esmagadora notícia do seu assassinato. Calhou-lhe, como primeiro trabalho, filmar Amílcar Cabral numa exposição sobre a Luta em Conacri, em 1972, e depois a transladação do seu corpo para Bissau, capturando a comoção dos guineenses pela morte do melhor pensador e líder da resistência anticolonial. Em 1973, Sana ouvia Ana Maria, viúva de Cabral, “como se estivesse a sonhar, a delirar – agora o mundo parecia estar a desabar sobre a minha cabeça”, contar que Amílcar, “mesmo depois de ter sido alvejado com o primeiro tiro, ainda quis saber o que se passava e o porquê” do seu próprio assassinato. O sonho e a luta de Cabral podem não morrer, mas custa muito a pessoas como o Sana ver a distância entre o seu compromisso e o país actual. Entrou em depressão com a negligência que sofreram os materiais audiovisuais. Mas, no encontro essencial com Chris Marker e Sarah Maldoror e, mais recente, com Filipa César, percebe que é possível trabalhar de modo mais autónomo.

Sana na N’hada é o melhor narrador da sua própria epopeia e de um contexto histórico que a muitos interessará. A nossa entrevista começa em setembro de 2022, na tabanca de Malafo, perto da sua aldeia natal, na inauguração da Abocha Mediateca, juntamente com Filipa César, Marinho Pina, Suleimane Biai e toda a comunidade local, para promover troca de saberes. Prosseguimos entre Bissau e Lisboa, e acabámo-la após o Colóquio ‘Amílcar Cabral e a História do Futuro’, no mês passado.

Sana com câmara e fotómetro. Bissau 1976. encontro Praça Heróis Nacionais, Visita Agostinho Neto. foto de Agostinho Sá

Sana com câmara e fotómetro. Bissau 1976. encontro Praça Heróis Nacionais, Visita Agostinho Neto. foto de Agostinho Sá

DE MEDICINA PARA CUBA

Como é que a sua vida deriva para o cinema?

Em 1963, eu tinha treze anos e frequentava a terceira classe na escola dos padres franciscanos na minha aldeia, Enxalé. Quando rebenta a guerra, havia tiroteio no quartel da minha tabanca e fugimos, com os meus irmãos e a mamã, para a base dos guerrilheiros. Fugimos para nos abrigarmos por uma semana no máximo, pensávamos, e o conflito durou onze anos. Quando o conflito colonial terminou, toda a gente tinha um começo possível na função pública. As pessoas que trabalhavam na Rádio de Libertação, podiam trabalhar na Radiodifusao Nacional da Guiné Bissau, era uma estrutura existente, não era preciso inventar, só tinham que se adaptar à nova realidade. No domínio do cinema, éramos quatro jovens formados em Cuba, Josefina Lopes Crato, José Bolama Cobumba, Florentino Flora Gomes e eu, já trabalhávamos há dois anos e tal. A nossa função como cineastas era única, a primeira vez que existia. Então, quando acaba a guerra nós tínhamos que criar uma coisa nova. Em 1977 os estatutos para criar o Instituto Nacional de Cinema. 

Antes de ir estudar cinema passou pela educação e medicina, como foi?

Em 1964, no congresso do PAIGC, decidem que era preciso fundar a estrutura do novo Estado a criar. A consigna era “aquele que sabe ler que ensine os que não sabem”. Nesse quadro, fui fundar uma escola na tabanca de Bumal. No primeiro dia, apareceram 79 indivíduos que queriam saber ler e escrever. O Caetano Semedo, dirigente da guerrilha nessa região, tinha ido pedir à minha mãe para me levar com ele para junto dos guerrilheiros. A minha mãe não consentiu, mas ele levou-me na mesma. Então, vou dar aulas e fundar uma escola com pessoas da minha idade. Era uma responsabilidade enorme. Fizemos umas carteiras de liana, ao ar livre, não havia cadernos para escrever os números nem quadro, fomos arranjando tábuas. Depois, não nos entendíamos linguisticamente, tive de aprender mandjaco para poder ensinar. Era mais fácil eu aprender a língua deles do que eles aprenderem balanta, a minha. Assim foi. No fim do ano escolar, na época das chuvas, deram-me um livre-trânsito para ir a Conacri fazer estágio para poder ensinar. Daqui para a fronteira levava uma semana, e tinha de passar pelo Senegal para ir a Conacri. Mas eu tinha um pé doente e não podia andar. 

Na altura só se podia deslocar a pé?

Sim, claro, era guerra por toda a parte. Portanto, não fui porque estava doente. Depois mandaram-me buscar para ir a Morés, não sei porquê. Afinal, o Osvaldo Vieira que era o chefe militar dessa Frente lembrou-se que tinha prometido mandar-me a Conacri, para a Escola Piloto recém-criada. Quando cheguei a Morés, ele não estava. Fui parar ao Hospital de Campanha, onde o Simão Mendes queria homens feitos a quem ensinar os mínimos para socorrer os feridos na guerra que, muitas vezes, morriam antes de chegar ao hospital ou chegavam cheios de hemorragias, quase a morrer. O objectivo deste estágio era ensinar o pronto socorro aos militares, com idade para combater. Como eu só tinha 15 anos, o Simão Mendes não me queria lá no hospital, disse que queria homens, “não precisava de bebés”. Mas eu tinha passado o dia todo a caminhar até Morés, um dia de viagem a pé, não havia maneira de voltar à procedência. Então tive que ficar no hospital, onde trabalho convencionalmente, faço o estágio com o Simão Mendes, termino o estágio, os meus colegas foram distribuídos para outras regiões, mas eu fico por ser menor. Depois vêm uns médicos cubanos e continuo com eles. No final de 1966, cheguei a Conacri para seguir viagem para a União Soviética onde faria o liceu e depois Medicina. Mas chego atrasado, o grupo com que estava previsto eu ir, partira uma semana antes. Amílcar Cabral disse que para Medicina já não dava para o nosso grupo, éramos seis: quatro iam para a agricultura, e nós dois (eu e o José Bolama Cobumba) íamos fazer cinema. Só que eu nunca tinha visto nenhuma imagem. 

Não tinha visto nenhum filme? Nem uma fotografia? 

Não. A única imagem que eu conhecia era a de Jesus Cristo, de um livro de catequese, não tinha visto nenhum filme. 

Quantos anos passou em Cuba?

Cinco anos e meio, a fazer o Liceu e a formação em Cinema.

Além de Cuba, como é que a Guiné apoiava?

Não havia Estado, havia a guerrilha do PAIGC. O governo cubano recebia esses estudantes. A maior parte ia para a União Soviética, para a Alemanha, para a Hungria, para Checoslováquia, para Marrocos e para a Bulgária. Eu vou para Cuba, mas não havia escola de cinema, e sim um Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas, o ICAIC. Então, tivemos que fazer o Liceu de forma muito acelerada. Depois é que fomos para o Instituto de Cinema onde aprendemos, na prática, o mecanismo de uma câmara de 35 mm, a Arriflex alemã. O que é aquilo, como é que funciona, tudo isso num passeio diante do ICAIC. Depois aprendemos a estrutura da película, a emulsão, o suporte, os sais de prata para revelação, toda essa teoria. Depois aprendemos ainda a fazer fotografias, fizemos quilómetros de película. Nós íamos para o laboratório com uma bobina cheia de película Kodak, e com rolos vazios já usados, enrolávamos em média 35 exposições e até umas 70 fotografias. 

Ainda tem material desse tempo?

Fotografias não, mas algumas foram publicadas no PAIGC Actualités. Aquilo que fizemos em Cuba ficou lá. Mas parte das outras imagens, que a Filipa César ajudou a salvar, com financiamento da Alemanha, estão aqui na Mediateca. Depois de chegarmos a Conacri, a 7 de janeiro de 1972, fomos mandados para um estágio de aperfeiçoamento nas Actualidades Senegalesas, uma empresa do Estado, mas sem orçamento para nós. Voltamos de Cuba com câmaras fotográficas, tínhamos de fazer qualquer coisa. Nos fins-de-semana, dávamos uma fugida de Dakar para a zona lá da fronteira e íamos à guerrilha tirar fotografias. Os guerrilheiros não nos queriam lá, não éramos combatentes, só atrapalhávamos, como carga morta. 

Sana Na 'Hada na Base de Campada, setembro de 1973.Sana Na ‘Hada na Base de Campada, setembro de 1973.

FILMAR AMÍLCAR CABRAL

Nessa altura filmou a exposição de retratos da luta do PAIGC com o Amílcar Cabral

Em setembro já tínhamos câmaras de 16mm, as Beaulieu R16. Então, pela primeira vez, filmámos. 1972 assinalava o nono ano da Guerrilha da Guiné Bissau e filmamos uma exposição inaugurada por Amílcar Cabral, que a apresentava a Sékou Touré, em presença do corpo diplomático acreditado na Guiné Conacri e de militantes do PAIGC que se encontravam lá. Portanto, era a primeira vez, e calhou-me filmar o Amílcar. Eu fazia a imagem e o Flora Gomes fazia o som. Não foi uma decisão, eu peguei na câmara e Flora pegou no gravador de cassetes. Aproveitamos a iluminação da televisão da Guiné Conacri que tinha um operador com uma lâmpada. Íamos empurrando um ao outro, para fazer as imagens. 

Como era a exposição? 

De fotografias, retratos da luta. O armamento apreendido ao inimigo, os quadros formados, as fotografias de pessoas mutiladas, doentes no hospital, o apetrecho de guerra e o inimigo.

Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972Cabral na exposição Semana da Informação, Conacri, 1972

O objectivo era dar a conhecer os avanços do PAIGC?

Justamente, era uma espécie de balanço de nove anos de luta do PAIGC. Portanto eu filmei isso, como disse, não tinha lâmpada, era preciso aproveitar o enquadramento da luz. Não foi grande coisa, quando quis fazer um grande plano o operador da TV de Conacri afastou-me, quando volto para filmar de perto eles apagam a luz, eu fiquei com imagens impossibilitadas. 

Não tem imagens do Amílcar de perto, num plano fechado? 

Quando ele apresentava a exposição no gabinete sim, agora quando na exposição ele faz um discurso, sozinho, eu queria filmar mas não foi possível. Estava lá perto mas não dava, o operador de câmara e o homem do som ocupavam tudo. Nós estávamos em baixo. Então faltou essa coisa mais de perto do meu público. Mas ainda aparece a Miriam Makeba, o Sékou Touré. Antes disso, Amílcar tinha dado uma conferência de imprensa, aí tive oportunidade de filmá-lo de perto, mas também havia muitos jornalistas assistindo à sua frente. Foi a primeira vez que filmamos. É muito importante, acho que podemos fazer algo dessas imagens.

Como é que relaciona essa experiência, o embrião de toda uma carreira, com o estarmos aqui agora a inaugurar um projecto que sempre quis fazer: uma Mediateca e uma biblioteca.

É o resultado da conclusão a que cheguei: por via oficial não é possível concretizar certas coisas. Não porque as pessoas sejam más ou porque não se interessam. Reconheço que têm outras prioridades, a agricultura, a saúde, o transporte. Tentámos várias vezes criar um fundo com ajuda do Estado, com ajuda privada, para a produção de filmes, mas não acontece. Desde que a lei da criação do Instituto Nacional de Cinema foi promulgada, em 1978, nunca houve a mínima tentativa de criar condições para se fazer filmes, mas sempre houve película e dinheiro para se gastar em reportagem de discursos políticos. Estive à frente do Instituto Nacional de Cinema durante vinte e dois anos, e nenhum ministro aceitou ou ouviu propostas, todo o tipo de imaginações que fiz não vingaram. 

Como foi filmar durante a guerra?

Próximo do fim da guerra estive como repórter na frente norte e na frente leste. Isso significava andar quase uma semana até ao Senegal, carregar as baterias, descansar três dias e voltar para o mato. A partir do momento em que tinha a bateria carregada, podia filmar qualquer coisa, qualquer ataque, qualquer bombardeamento no caminho. O rio Geba está aí, é o limite das frentes leste e norte. A minha área de intervenção era de Bafatá para aqui. 

Uma área enorme.     

Na frente leste alguém (Paulo Correia) quis que eu fizesse a mesma coisa que na frente norte. Então, quando eu voltava, de três em três meses, a levar a película já exposta e buscar a película virgem, às vezes ficava na frente leste, filmava lá o que havia para filmar, depois regressava de novo a Conacri para arranjar película para a frente norte. Portanto, era caminhar e caminhar. 

As condições de trabalho eram de facto muito duras.

O mais importante numa guerrilha, a nossa guerrilha aqui, é andar, sempre a andar. Sempre tem que andar. 

Mas ia acompanhado? 

Claro. Enquanto estava na zona libertada, quando não havia combates, não havia tiros por aí eu não precisava de protecção. Quando as pessoas já tinham armas para disparar contra a aviação, os pilotos andavam mais prudentes. Eu filmava, mas se havia uma emboscada ou um ataque, os chefes claro que queriam que eu filmasse porque desejavam imortalizar-se. Mas às tantas, se se dizia na base “vamos atacar a dez quilómetros daqui”, tudo bem. Mas eu começava a perceber que estamos já perto do objectivo através dos comportamentos, os sorrisos já estavam mais nervosos, as pessoas começaram a puxar o boné, a Kalashnikov, isso quer dizer que já estamos perto. Aí já somos pouco amigos. Já não me sorriem, não me querem por perto. No princípio, lá na base, queriam que eu ficasse perto deles, mas depois não.

Então tinha de racionar bem o que e como filmar. 

Devia filmar o espaço, os passos, sobretudo as caras e o movimento; mas também não podia filmar muito porque a película era pouca e tinha de carregar uma pasta pesada com o material. 

E a logística para se alimentar e hidratar no dia-a-dia?

Para se poder poupar água, corta-se um limão, põe-se num litro de água. Assim a água já não sabe muito bem, é forte, e com o limão dá menos sede. Com um litro d’água aguenta-se uns três dias, por aí.

E como desenrascavam comida? 

Quando aparecia.

As populações das tabancas iam ajudando?

Sim, sempre que elas podiam. Nos primeiros anos, 1963 a ‘65, havia muita reserva, muita comida e muito gado. Depois a tropa portuguesa comia, nós também comíamos, às tantas já não havia mais gado doméstico, cabras, porquinhos. Então as próximas vítimas foram os antílopes, aves selvagens, gazelas, hipopótamos, por aí. 

E crocodilo? Já experimentei carne de crocodilo e não é má. 

Não tem gordura nenhuma. Por exemplo, uma iguana é saudável.

Então fazia essa documentação e entregava o material, depois os filmes eram passados na clandestinidade?

Não, ninguém os via. Nós estivemos a filmar durante cinco anos, até 1976, e só mais tarde é que vimos algumas dessas imagens. 

Então quem é que ficou com os filmes? 

O PAIGC recebia e mandava para um país amigo, se houvesse delegação. Para Suécia, para a União Soviética, para a Argélia. A intenção era eles revelarem a película e mandarem de volta. 

E depois?

O único que mandou de volta foi a União Soviética. Mas mandou o negativo, não tiraram cópia do trabalho. Era o que nós filmamos na Proclamação do Estado, em Boé, a 24 de Setembro de 1973. Desde 1974, até hoje não consigo saber o paradeiro das outras películas. 

Que alívio ter salvo as imagens da auto-proclamação da Independência. E quando é que as viu? 

Em setembro de 1974 (depois da revolução do 25 de abril) eu estava em Conacri, para onde levei a minha película exposta, e encontrei a película da proclamação do Estado numa prateleira. Como havia um barco que ia para Bissau, as pessoas começaram a preparar as coisas do PAIGC para mandar para lá. Eu embalo aquilo que tinha a ver com o meu trabalho e meto num barco. Sigo nesse barco até Boké, desço e volto para Conacri, mal chego dizem-me: “tens de ir para Bissau, há uma missão para Cabo Verde. A aviação portuguesa leva-te de Bissau para Cabo Verde”. Então vou de Conacri a Bissau numa avioneta do exército português. Nem conhecia ainda Bissau, ainda lá estava tropa portuguesa, tinha havido um cessar-fogo espontâneo, não foi decretado. Já estávamos a começar a negociar. Lembro que, a 9 de setembro, embarcarem em Bissau seis mil tropas de regresso a Portugal. E lá sigo no avião com a delegação do PAIGC, desde a Guiné-Bissau para Cabo Verde, no dia 12, conduzida por Pedro Pires, com o Julinho Carvalho, Agnelo Dantas, Silvino da Luz, etc. Cabo Verde era ainda portuguesa, como Bissau. O PAIGC não tinha entrado, só entraria em outubro. Mas só em 1975, quando fui uma vez acompanhar o cineasta sueco Lennart Malmer, que tinha coisas na alfândega no porto de Bissau, é que descubro o material que embalei em Conacri um ano antes. Tinha ficado ao sol aquele tempo todo. 

E como conseguiram revelar mais material? 

Em 1976 fizemos um finca-pé com o Mário Pinto de Andrade [coordenador-geral do Conselho Nacional de Cultura e Ministro da Informação e Cultura da Guiné Bissau entre 1976 e 1980] e com a sua esposa, a realizadora Sarah Maldoror, para sensibilizar e arranjar financiamento sueco para revelar o que ainda estava em Conacri do que tínhamos filmado cinco anos atrás. Mas era só uma parte.

Porque muito material foi enviado para revelação e estará algures?

Mesmo assim, tínhamos cem horas de imagens. Aquilo que não foi enviado para os países amigos, estava lá, em altas temperaturas e tudo emaranhado. Filmamos quase sempre com película Kodak, preto e branco. Fui à Suécia verificar o estado das imagens reveladas que, surpreendentemente, estavam em bom estado. Só pude montar um primeiro filme que se chama O Regresso de Amílcar Cabral

Sana Na 'Hada e Flora Gomes, Malafo 2022. foto de Marta LançaSana Na ‘Hada e Flora Gomes, Malafo 2022. foto de Marta Lança

A MORTE DE CABRAL 

Em O regresso de Amílcar Cabral as imagens são feitas apenas por si? 

18 das 19 bobinas do filme são minhas; a outra é do Flora Gomes. Eu e o José Bolama Cobumba, que fez o som do filme, fomos a Conacri com a delegação que trouxe os restos mortais de Amílcar Cabral. O Flora Gomes filmou uma bobina no aeroporto de Bissau, quando o corpo chegou, tínhamos duas câmaras. A história do filme é a transladação do corpo de Cabral, de Conacri para Bissau. Segui o processo todo de Conacri até o aeroporto, até ao Palácio, para chegar à Fortaleza de São José da Amura, onde está sepultado.

Como foram os seus contactos com Amílcar Cabral?

A primeira vez que o vi foi em Morés, frente norte, em meados de 1966. Depois foi em Conacri, em Havana e ainda em Conacri, quando voltei de Cuba. No dia 22 de dezembro de 1972, em Dacar, vi Amílcar Cabral pela última vez, um mês antes de ele ser assassinado. Então, estando o nosso grupo de quatro elementos em Dacar, num estágio nas Actualités Sénégalaises, Amílcar Cabral veio de visita ao Lar do PAIGC. No fim da sua visita, chamou-nos à parte para nos dar uma missão: a de ir filmar, nas três frentes de luta, os preparativos para a proclamação do Estado da Guiné-Bissau. No termo desta visita, Amílcar Cabral marcou-nos um encontro em Conacri, em Março do ano seguinte, para um balanço da nossa visita ao que se seguiu: isto é segredo, não se comente com ninguém!

O Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotorama

E como foi correu a missão? 

Dias depois eu, Josefina Lopes Crato, José Bolama Cobumba e Florentino Flora Gomes, montamos num Jeep Waz soviético, conduzido por Sirifo Dansó, dentro do qual encontramos um caucasiano que nenhum de nós tinha visto antes, o que nos mergulhou num profundo silêncio que ninguém quebrou até ao destino. Viemos a saber mais tarde que o indivíduo chamava-se Oleg Ignátiev, um repórter do Pravda. Partimos rumo a Ziguinchor, Casamansa, no sul do Senegal, onde chegamos por volta das 20 horas. Ali fomos recebidos por Lúcio Soares, chefe militar da frente norte, Luís Correia, da segurança da frente, Manecas Santos, da artilharia pesada, Duke Djassy, do corpo de Exército comandado por Quecuta Mané, Cambanó Mané, aliás Iongoiá, do corpo de exército comandado por Braima Bangura. Alojaram-nos na residência do Luís Cabral, então chefe da frente norte. Ninguém disse uma só palavra durante toda a tarde. À noite, face aos imperativos de segurança, as nossas piadas habituais eram sussurradas, falávamos sobre o que podia acontecer a qualquer um de nós e deixávamos recados às nossas respectivas mamãs, que nenhum de nós conhecia. As piadas eram mais um derivativo do nervosismo e da ansiedade diante da esmagadora responsabilidade que Amílcar Cabral nos tinha posto em cima. E se, por qualquer acaso, por medo, justamente, de não falhar, falhássemos a missão? Essa era a questão! 

Passamos a noite juntos numa sala; o Oleg Ignátiev ocupou o quarto de cama. Na manhã seguinte Luís Correia e Duke Djassy vieram lembrar-nos que, para além da proibição de falar em voz alta, também não devíamos pôr o nariz fora de casa. Face aos nossos protestos, obtivemos deles a permissão de irmos desentorpecer as pernas e aproveitamos para mergulhar o mais longe possível na planície herbosa de Ziguinchor, voltando logo ao nosso confinamento. O meu amigo Cambanó aproveitou para troçar da minha suposta ‘prisão’.

No fim da tarde partimos rumo à nossa fronteira norte, a uns 100 kms. 

Não nos detivemos em Cumbanghor, indo directamente para Sambuia. Dalí atravessamos o rio Farim e passámos por Djacal para irmos pernoitar em Maquê. É um trajecto por mim conhecido por ter passado pela última tabanca há 6 anos, de volta a Morés depois de ter levado à fronteira do Senegal nove feridos, vítimas do bombardeamento que ceifou a vida do meu chefe Simão Mendes, a 19 de fevereiro de 1966.   

Entretanto perceberam quem era o senhor branco que estava convosco?

Só ficou clara para nós a identidade do nosso hóspede quando a nossa equipa é apresentada na base de Maquê: “ele é Sr. Oleg Ignátiev, comentarista especial do Pravda, um famoso jornal soviético”. Aí distribuímos as funções dentro da equipa. Todos tínhamos uma câmara fotográfica, Oleg inclusive, cada um de nós pôde utilizar a sua, cabendo aos dois elementos da equipa que, até aí, não tinham filmado ainda, exercer agora: José Bolama Cobumba e Josefina Lopes Crato. Os dois iriam revezar-se dada a fadiga da marcha. Eu fiquei com a responsabilidade de interpretar ao Oleg tudo o que se dizia em crioulo para espanhol.

O Sana ficou com a importante tarefa de intérprete para o soviético.

Os meus colegas decidiram que eu seria um bom intérprete para ele, Oleg, uma vez que o próprio me confiou os seus documentos ao partir para um comício. Também tinha de ocupar-me da sua logística, da sua segurança e da respectiva documentação, que não podia cair em mãos alheias. 

A partir de Maquê, o chefe militar da frente, Lúcio Soares, decidiu atacar todo o tempo as guarnições que estavam na nossa rota, Em Maquê houve um primeiro encontro, que o José Bolama filmou e onde o Oleg foi apresentado ao público, o que foi uma espécie de convite do lobo tuga ao curral do PAIGC. Ele usou da palavra, de onde surgiu a necessidade de uma interpretação das suas palavras. 

E depois?

Na noite seguinte partimos de Maquê para Morés, via Madina, sob o ribombar de bazookas e canhões sem recuo, em respectivos ataques contra Olossato e Mansabá, que deviam ser obrigados a recolher aos abrigos para podermos passar tranquilamente. Pernoitamos em Madina para seguir viagem na manhã seguinte rumo a Morés.

Chegados a Morés, eu fui buscar água para Oleg, o meu hóspede, se banhar. Aqui encontrei antigos colegas de estágio, meninas em maioria, que acreditavam que eu já era médico, o que  me cansei de desmentir, em vão. 

As nossas efusões não duraram muito, pois, ao regressar à palhota do meu hóspede, Oleg Ignátiev, encontrei-o deitado de costas, inerte, inconsciente, os olhos esbugalhados, com um aparelho de rádio ao peito. Do rádio, que assobiava mais do que falar, reconheci a voz do presidente Sékou Touré num tom enérgico, mas cujo sentido, com o meu parco francês e o pânico do estado de Oleg me inspiravam, não me deixava compreender. Acordei o Oleg, que balbuciou numa língua, a sua, algo que eu não entendia, e voltou a desmaiar. Aí eu fui correndo ver Lúcio Soares e o chefe político da frente norte, Pascoal Alves, que encontrei ambos agarrados a outro rádio e a escutar o mesmo presidente da Guiné-Conacri, Ahmed Sékou Touré, mas desta vez percebi que se tratava de algo muitíssimo grave. Que tinha a ver com Amílcar Cabral. Mas fui caçado dali, sem miramientos, pelos dois dirigentes do PAIGC. 

O Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotoramaO Regresso de Amílcar Cabral, 1974, fotorama

A FATAL NOTÍCIA 

Como soube da morte de Amílcar Cabral?

De volta ao Oleg, desta vez encontrei-o desperto e mais sereno. A primeira coisa que ele me disse foi uma terrível pergunta, que eu mal podia responder, porque imensa, surpreendente, terrível, esmagadora. Oleg Ignatiev disse: “mataram Amílcar Cabral, o que vocês vão fazer? Vai acabar o PAIGC, os fascistas vão ganhar?! Sem me deixar tentar responder, no caso de eu conseguir atinar algo ou balbuciar um começo de frase, Oleg exigiu que o levasse para junto dos dirigentes da frente norte, e lá fomos os dois a passo de carga. Desta vez já os interessados não podiam correr comigo. Oleg repete a mesma pergunta mas, desta vez a quem de direito e não obteve resposta imediata ou talvez eu não tenha ouvido bem. Oleg disse: “eu tenho de chegar a Conacri antes do…funeral do…” Pascoal Alves faz um gesto imperativo para me afastar dali e eu ia a fugir, literalmente, quando o grupo que atacou Mansabá na noite anterior chegou e Lúcio, como que movido por uma mola qualquer, se levanta e dá uma ordem com uma voz enérgica que eu nunca lhe conheci e que ordenava os combatentes, dirigidos por Mbemba Seidi e César Mendonça, para voltarem imediatamente e atacar de novo Mansabá até ao amanhecer. Estes, incrédulos, iam protestar quando um gesto de Lúcio em direcção do rádio os deixou ouvir a fatal notícia. No dia seguinte, num comício organizado em Iracunda, o velho Quebá Irá, aquele que outrora me chamava de Pequeno Enfermeiro, resumiu numa frase aquilo que Oleg Ignátiev queria saber. Quebá Irá afirmou: “Mas quem disse que Amílcar Cabral morreu? Mesmo que seja o caso, ele já desimpediu a estrada da independência, só nos resta pavimentá-la!”    

E decide filmar o funeral de Cabral? 

Oleg voltou do comício mais animado. A missão da nossa equipa, que era de visitar as três frentes de luta, estava agora comprometida pelo desaparecimento do nosso líder, Amílcar Cabral. Mas Oleg Ignátiev tinha outro problema insolúvel: a via mais rápida para Conacri era passando pelo Senegal; ora, tendo ele acabado de abandonar o Senegal oficialmente, já não podia voltar a entrar sem visto. A solução que se impõe ao grupo é, pois, continuar viagem atravessando todo o país e chegar à fronteira sul, onde nenhum de nós precisava de um visto para entrar. Chegaríamos tempo de assistir à exéquias de Cabral?

Conseguiram?

No dia seguinte atravessámos a estrada Mansoa/Mansabá para pernoitar em Mandincara/Darsalaam. A nossa chegada foi concomitante com a da Titina Sylla, responsável pelos serviços de saúde da frente norte, a quem a sua fiel amiga, Ana-Maria Gomes, comissária política do sector de Sará, veio acompanhar até ali. Titina, em sentido contrário ao nosso, ía aos funerais de Amílcar Cabral em Conacri, onde ela nunca chegaria, tendo sido vítima da emboscada de uma patrulha tuga. Morreu no rio Farim, na travessia Djacal/Sambuia, lá por onde nós tínhamos passado, havia apenas alguns dias, para Maquê. Mas antes denos separarmos, na manhã seguinte, após umas fotos tiradas com Titina e Ana-Maria, esta última agora com o seu companheiro Lúcio Soares, regressou connosco para Sará.                                                                                                                        

Na base de Sará/Enxalé, a nossa equipa parou um dia para permitir a organização da nossa travessia do rio Geba. Numa tranquila tarde de janeiro de 1973, passámos por Malafo, exatamente onde estamos e onde fica a nossa Mediateca, para a frente leste na chamada “Zona 7”. A travessia do rio Geba fez-se por Enxalé, que é a minha tabanca natal, a bordo de uma canoa remada por Fóna na Mbitna, da minha idade. 

No meio dessa tristeza toda, regressa aos lugares da sua infância. 

Aquilo foi quase a roçar uma lancha que patrulhava o rio, de motor em silêncio, a favor da corrente. Eu, com aquela emoção de estar a passar por onde andei em criança, descrevia o local ao Oleg Ignátiev, em voz queda, quando o Fóna me avisou com palavrões da lancha que a nossa piroga ia a roçar em sentido contrário, com destino a Ponta Varela. Escapámos por um triz! Fiquei muito tempo a olhar para aquela luz de presença da lancha, que se afastava, e a pensar no que aconteceria se fôssemos apanhados, com o Oleg a bordo, enquanto a nossa canoa avançava muito lentamente, pois íamos a contra-corrente. Mal pisamos o solo lodoso de Ponta Varela, os homens de Caetano Semedo atacavam o aquartelamento do Xime. A resposta dos tugas não se fez esperar e alguns obuses de canhão do batalhão de Xime vieram dar-nos as boas vindas à Zona 7, obrigando-nos a cair de borco sobre o lodaçal. Já depois de passar pelos arredores de Xime, tropeçamos com os nossos camaradas, autores do ataque nocturno precedente, que regressavam à base. Serviram-nos de guias, até o Caetano Semedo e o Ansumane Mané, aliás Bric-brac, seu adjunto. Tão bem que mal, discretamente, Caetano Semedo e eu matámos saudades de uma separação de quase sete anos, quando ele na altura partia para a Academia Militar de Nanking, na China, e me deixara em Bumal para abrir a minha escola. 

Sana Na 'Hada no DocsKingdom, 2017Sana Na ‘Hada no DocsKingdom, 2017

É impressionante a sua capacidade de lembrança com precisão…

Doravante, debilitado pela marcha forçada e pela pouca alimentação, não tenho muita lembrança dos acontecimentos. Só sei que o Oleg mal aceitava tragar a pouca comida que aparecia. Partimos da Zona7 para Gbotchol, Quinára, onde só fizemos uma pequena pausa antes de prosseguir, às 4 horas da manhã, para Unal. À tarde desse dia atravessamos a estrada Buba/Quebo e chegamos ao destino às 19 horas locais. Pelo caminho, tivemos de fazer uma pausa entre as 10 e as 16 horas porque o Oleg não aguentava o tórrido calor e o clima muito húmido, ele que também estava tão enfraquecido como nós todos. O Oleg já só tomava uns comprimidos, “para mitigar os efeitos da fome”, dizia-me ele.

A Unal chegámos a uma base abandonada. A nossa escolta não sabia para onde os camaradas se tinham mudado. Oleg pediu-me para verificar qual o tempo necessário para encontrar a nova base. Ninguém sabia. Oleg insiste, eu tenho que repetir a pergunta. O homem diz não saber e prossegue: “a nova base pode ser longe ou não muito longe”. Oleg perde as estribeiras. Como é que um lugar pode ser longe e não muito longe ao mesmo tempo? Estão a brincar comigo?! Eu sou o representante de um grande país que vos ajuda a lutar pela vossa liberdade… O homem não entende, mas sabe que o meu hóspede está furioso. O escolta toma uma decisão, dispara uma longa rajada de Kaláshnicov ao ar, que tem o condão de enfurecer ainda mais Oleg. Ele faz uma longa tirada a dizer que estamos a gastar debalde as balas que custam muito a produzir. Eu já não traduzo por achar inútil. Toda a gente se olha, desafiadoramente. Lá ao longe, em resposta aos tiros do nosso escolta, chega uma réplica de balas tracesantes ao ar. Já sabemos onde ir. 

Era o sinal de código.

Na base de Unal posso conhecer por fim os camaradas Úmaro Djalló, Abubacar Barry e Iafai Camará, de quem Caetano Semedo sempre me falou, como sendo alguns dos que dirigiam a nossa luta. A partir de Unal viajamos de canoa uma noite inteira, durante umas 9 horas até chegamos a Candjafra, já ao amanhecer. Ainda na canoa, eu fui acordado pelos disparos do canhão de Guiledje, que tentava alvejar o camião que nos vinha buscar no desembarcadouro. 

Após uma viagem de 15 dias, conseguimos atravessar todo o território da Guiné, de Sambuia, perto de Bigene, a Candjafra. João da Silva, responsável local, nos recebeu sem mesmo nos deixar tempo de nos apresentarmos. Aparentemente, ele nos esperava, pois disse-nos que tínhamos de atravessar o pequeno rio/fronteira, antes do amanhecer inteiramente, pois os aviões tugas, sem mais delongas, iam começar os bombardeamentos diários, o que se verificou tão logo abandonámos a jangada, quase destruida. Mas já estávamos na República da Guiné.   

Foi muito difícil lidar com o assassinato de um grande líder? 

A realidade da morte de Amílcar Cabral começou, sub-reptícia e insidiosamente, a invadir-me a consciência. Parecia-me surrealista a ideia da matança do camarada Cabral. Eu recusava-me absurdamente a acreditar naquela ideia, mas os incessantes combates por todo o lado, traziam-me de volta à realidade: exprimia-se a raiva do combatente pela morte do seu chefe.   

Em Conacri, no Secretarido-Geral do PAIGC, logo que chegámos, a nossa equipa de 4 cineastas teve um encontro com a doravante viúva de Amilcar Cabral, a camarada Ana-Maria. 

O que é que conseguiu saber logo na altura sobre esses momentos trágicos?

Ela descreveu-nos a última jornada que passou com o seu marido antes de voltarem a casa à noite. O carro em que viajaram estava ainda no local da tragédia, com o buraco de uma bala numa das portas. A nódoa acastanhada do sangue de Cabral manchava o solo. Ana Maria disse-nos que Amílcar Cabral recusou terminantemente ser amarrado, de mãos às costas, e ainda mais ser levado para Bissau, como os seus assassinos pretendiam. Que, pelo contrário, Amílcar Cabral insistia veementemente para irem, com ele, ao seu gabinete para uma conversa séria. Que, mesmo depois de ter sido alvejado com o primeiro tiro, ele ainda queria saber o que se passava e o porquê? 

Eu ouvia aquilo tudo en état second, como se estivesse a sonhar, a delirar. Agora o mundo parecia estar a desabar sobre a minha cabeça. 

Depois fomos ver o camarada Aristides Pereira, que tinha ainda os sinais das cordas com que foi amarrado nos cotovelos. Felizmente, foi salvo antes de chegarem a Bissau com ele amarrado, como era intenção dos raptores. 

Já não me lembro do que aconteceu nesse dia comigo, nem sei como fui para a Dacar. Só sei que, ainda em Conacri, declinei o convite de ir assistir ao julgamento dos assassinos de Amílcar Cabral.  

ENCONTRO COM CHRIS MARKER E SARAH MALDOROR 

E como mostraram as imagens da luta aos guineenses?

No quadro do vigésimo aniversário do PAIGC (1976) conseguimos financiamento para arranjar câmaras de 16 mm, arranjar uma moviola (uma mesa de montagem Steenbeck), uma máquina para repicar o som de 9 a 16mm. Conseguimos uma gravadora Nagra IV-S. A Suécia financiou a revelação da nossa película, a sua tiragem e o equipamento. Depois arranjei um camião emprestado e com isso pudemos fazer cinema ambulante. 

O Chris Marker ainda no doou um projector de 16mm, muitos filmes, seus e soviéticos (do Dziga Vertov e outros, de que não me lembro). Nós andámos pelo país a projetar algumas coisas que filmamos e que estrangeiros também fizeram durante o conflito: cubanos,  ingleses, suecos, finlandeses, etc. É então que conheço o Chris Marker, que veio à Guiné com a Sarah Maldoror em 1979. Andamos muito por aí, ele e eu.

A Sarah Maldoror nessa altura lançou o filme À Bissau, le Carnaval. 

Eu fui assistente dela, estive com ela nesse filme logo depois da independência, e ainda num dos filmes de Sarah em Cabo Verde (Fogo, l’île de Feu, 1979). Cheguei a substui-la, porque não se sentia bem, quando escalámos o vulcão de Fogo. Os seus técnicos aceitaram a minha direcção na filmagem do Vulcão de Fogo que, por sorte, não estava activo. 

Sana e Sarah Maldoror. Base de Camdjambary, entrega de Credenciais dos Embaixadores da OUA ao Presidente Luís Cabral. Sana e Sarah Maldoror. Base de Camdjambary, entrega de Credenciais dos Embaixadores da OUA ao Presidente Luís Cabral.

O Chris Marker teve um papel essencial na sua vida.

Veio com a Sarah e eu tinha que transportar a equipa técnica dela: a própria Sarah, o operador de câmera e o engenheiro do som, para Cassacá, no sul. Nós íamos de helicóptero. Eu levei a equipa para o aeroporto. Volto ao hotel para buscar o Chris, afim de o acompanhar ao helicóptero para seguir a Sara. Era o próximo voo, mas só havia um lugar no helicóptero. Eu quis que o Chris fosse, mas ele não quis ir sem mim, e eu não quis ir sem ele. Então ficámos. A Sara foi e filmou a graduação dos militares que se vêem em posição em Cassacá. Foi assim que levei de volta Chris Maker ao seu hotel, mas o seu quarto já tinha um novo ocupante e não havia outra hipótese de encontrar alojamento para o meus hóspede.

Ainda fomos a minha casa, onde eu lhe ofereci alojamento enquanto Sarah não regressava de Cassacá. Apresentei-lhe a minha mulher e o meu filho; ele aceitou o jantar mas  declinou a minha oferta de alojamento dizendo-me “Vamos ao teu trabalho”. Assim foi que ele começou a ensinar-me a técnica de montagem na nossa moviola Steenbeck.

Como correu esse exercício de montagem?

Eu tinha classificado as imagem que tínhamos, algumas coisas bem distinguidas, tudo anotado, classificado no papel. Os meus colegas e eu fizemos um primeiro filme sobre as mulheres, sobre a Titina Sylla. O Chris Marker ensinou-me os truques da montagem.  

No primeiro dos 3 dias contínuos da lição, às 03 horas da manhã, eu morto de sono e o Chris nem por isso, propus uma pausa, mas ele nem queria ouvir o meu argumento, ele nunca mais dormia! Foi muita sorte minha e, em guisa de agradecimento, eu disse ao Chris que já sabia como não filmar. 

Na época eu tinha muita película; as pessoas que vinham aqui filmar deixavam uma ou duas bobines, eu ia pondo tudo na geleira, porque queria fazer um filme sobre a pesca artesanal, seguir os pescadores, nas suas frágeis canoas, à noite. Tinha película mas as marcas e os lotes eram muito misturadas, estavam mal conservadas e eu queria ter certeza que a película realmente valia alguma coisa. Então pedi ao Chris para levar algumas bobines a testar, só para ver se a película ainda servia para alguma coisa. Felizmente, ela estava boa e as imagens que eu filmei serviram ao Chris no seu filme Le Fonds de l’Air Est Rouge.

Há coisas que se resolvem logo à partida na filmagem. Ele fez isso espontaneamente, não veio com essa missão, foi uma coisa de simpatia?

Para já eu não estava a ver a dimensão do Chris Marker, só percebi depois é que entendi a verdadeira envergadura do homem. Ele veio com a Sarah e a situação caricata em que nos encontrávamos nos obrigou a uma certa intimidade. 

Chris Marker na Guiné em 1979Chris Marker na Guiné em 1979

E e o Sana já falava um bocadinho francês por causa de Conacri?

Aprendi francês em Bissau porque o Mário Andrade tinha um conselheiro, o Sérgio Michel, com quem andei muito tempo a preparar os estatutos do Instituto de Cinema, depois íamos discutir com o Mário Pinto de Andrade, e ainda com o presidente Luís Cabral. Depois, ainda, é que se mandou para o governo de Francisco Mendes promulgar.  Passei muito tempo com o Sérgio Michel. Eu fui lendo em francês os clássicos como Victor Hugo, do Rabelais; conhecia alguns desde Cuba. Bom, aprendi a falar com pessoas. E eu tinha aprendido um pouco inglês no Liceu. No Senegal também. Mas no Senegal o nosso estágio era em crioulo interpretado por um descendente de cabo-verdianos que estava lá, o Orlando Lopes, que fala crioulo. No Senegal comunicamos pouco porque estávamos muito isolados. Nas Actualités Senegalaises não podíamos trabalhar muito porque não havia orçamento. Davam-nos tarefas para fazer aquilo que já tínhamos visto em Cuba. O estágio era interpretado de francês para crioulo. O estágio não era muito instrutivo. Mas aprendemos sempre alguma coisa. 

O INSTITUTO NACIONAL DE CINEMA E A SUA FILMOGRAFIA

E no Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau reuniu algum material?

Começamos a arquivar essas películas que estavam confusas. Mas nunca houve apoio consistente para poder fazer um bom arquivo. Mas sabíamos o conteúdo de cada bobine, grande ou pequeno, tínhamos anotado em papel. E estávamos a fazer outros filmes, por exemplo Guiné Bissau seis anos depois, uma espécie de balanço do que o governo do país estava a fazer durante os primeiros seis anos pós-independência. Havia a fábrica de açúcar, fábrica de plástico, fábrica de oxigénio, a construção de um novo liceu que agora é Universidade Amílcar Cabral, a fábrica de sumos de caju em Bolama, tudo isso existia.

Esse filme existe?

Estávamos a terminar o filme quando houve o golpe de Estado de Nino Vieira (novembro de 1980). Passei boa parte desse ano em Catió, em Bafatá e no mato, a filmar. Eu voltei a Bissau para apresentar ao ministro da informação e ao presidente Luís Cabral, aquilo que, seguindo a minha impressão, dava para fazer um filme de 52 minutos. Íamos fazer essa reunião no próprio dia em que houve o golpe de Estado. Fiquei com a película. Mas como o nosso Nagra estava com problemas porque andou à chuva e à pancada, precisava de reparação. Havia um convite de Mário P. Andrade para ir Paris a uma conferência do que é agora a Organização Internacional da Francofonia, como ele já não estava cá no país e o seu sucessor não estava interessado em viajar nessa altura, aproveitei o bilhete e levei a película que tínhamos filmado e a Nagra para reparar. Deixei lá a película para revelar, e hoje temos esse material, foi uma sorte, mas não foi possível fazer o filme porque já não havia orçamento.

As dificuldades para fazer os seus filmes foram muitas, mas conseguiu fazer muitas coisas como funcionário do Instituto.

Para fazer reportagens sobre política, sempre houve dinheiro. Para acompanhar o presidente Luís Cabral, ou Nino Vieira, para tudo isso havia dinheiro. Era chamado e como funcionários do Instituto tínhamos que fazer, é claro. Mesmo assim fiz O Regresso de Cabral (1976) que é produção de Estado, em 1979 fiz Os Dias de Anconó, para o ano internacional da criança de 1979, com a ajuda de Sérgio Michel, arranjamos financiamento da UNICEF. Em 1984, com as bobinas películas que fui colhendo aqui e acolá, fiz o filme Fanado, filmei o Fanado Balanta que é um pouco mais espetacular, com cânticos, de norte a sul, em sete aldeias diferentes. Em 2004 fiz o filme A nossa Guiné, sobre o estado de degradação social, económica e os transportes. Filmei um boi enorme a ser içado para um barco de carga à mão, no sul. 

O esforço hercúleo para levantar o país…

Pois! O filme foi financiado pelo Centro Cultural Francês, pedi para me arranjarem uma canoa para seguir o barco com mulheres e filhos às costas, que tinham que subir para um barco enorme por uma escada de corda, como os pára-quedistas. Uma mulher que sobe com a filha, outra que soube com uma cabra, com um porco. O barco vai até Cacine e volta. Disseram-me “não, isso é muito caro, não temos dinheiro para isso”. Bom eu fui por via terrestre, subo no barco que vai de Catió a Cabochangue; dou uma volta, espero o próximo barco no porto de Cachil. O filme foi difundido na TV Cinco de França. Cá o filme foi proibido, como alguns outros meus. Em 2005 o Luís Correia, da Lx Filmes, dizia que havia uma verba para fazer um documentário em cada país dos PALOP. O prazo era curto mas fiz, um pouco de improviso, o Bissau d’Isabel, onde acompanhamos as dificuldades económicas de Guiné-Bissau.

E colaborou com outros realizadores.

Com a Sarah Maldoror, e nos anos 1980 até 1990 trabalhei para um programa de 10 minutos na televisão sueca, da Antena 2, com a senhora Leila Assaf-Tengroth. Com ela, filmámos a África ocidental sob diferentes temas, lixos tóxicos, projetos agrícolas. Na fronteira do Senegal e do Mali, fui ao festival de cinema Fespaco, em Ouagadougou, como convidado e como repórter da televisão sueca; fiz outra sobre a praga dos gafanhotos no Senegal. Enfim, tínhamos dez minutos na televisão para falar da África Ocidental. Ainda assisti essa senhora em duas longas metragens sobre temas sociais aqui em Bissau. Portanto, trabalhei como assistente de realização e de produção. Em 1987, o Flora Gomes fez a sua primeira longa-metragem, Mortu Nega, aí fiz de assistente de realização, diretor de produção. Tudo sem dinheiro: o filme não tinha orçamento próprio, ninguém foi pago aqui.

Como fazer acontecer um filme desses sem dinheiro?

Filmamos na mata muito perto daqui. Eu ia a Bissau, às dez horas da noite, requisitava frangos, arroz, óleo, coisa assim, para comer. Deixava lá, eles batiam à máquina, entregavam, depois na noite seguinte ia assinar as requisições, e eles batiam outra de novo, deixavam lá. Saía daqui onze horas da noite e assinava o que tinha deixado nas noites anteriores e saber se já tinham conseguido ou não aquilo que eu pedi às empresas para darem: víveres, combustível, viaturas. Pedi aos militares um voo de helicóptero para simular um ataque de helicóptero. O CEMFA foi simpático, ajudando muito a produção.

Tinha que ser alguém como o Sana que conhecesse bem o terreno. 

Sim, também conhecia o tipo de munições, de calibre, foguetes de 120 mm havia muitos do tempo luta, aquilo dá para guardar algum tempo.

Então é um milagre, o filme Motu Negra?

Sim e muito empenho do realizador. O orçamento só dava para os técnicos, e aproveitaram para pôr o equipamento como parte do contrato. Então, o governo pagou aquilo, mais nada. Um dia eles estavam a filmar e os pilotos começaram a fazer uma manobra militar com aviões a jato. O engenheiro do som, Pierre Donnadieu, me diz, “Faz-me calar aquela coisa” E eu pensei, “mas eu não posso dar ordens aos militares”. Bom, fui lá e afinal conheço o chefe deles, pedi “faça os voos um pouco mais longe, meia hora depois volta para cá.” Disse ao diretor de fotografia que podia filmar mas tão só durante 30 minutos

Mais tarde, o INCA ficou muito abandonado. Lembro-me de ir lá visitar em 2010 quando estava o Carlos Vaz na direção e o material estava todo abandonado, à chuva e às moscas.

Isso foi o resultado de alguém (um Secretário de Estado para Cultura e Desportos, por sinal um licenciado em História, que o PAIGC mandou estudar na Rússia), que disse que precisava do nosso pequeno quartinho, a nossa sala de montagem, para criar uma agência de notícia. Por isso tínhamos de tirar toda a película para fora. Mas para onde? Tivemos de tirar o nosso arquivo de onde estava e ele deixou tudo no átrio, o material passou a época seca com poeira e a chuva molhou tudo. Enfim, perdemos sessenta por cento daquilo que nós tínhamos como arquivo.  Foi o descalabro, quase me levava ao suicídio. A única coisa que o  INC fazia era pagar combustível e os salários, estávamos a ganhar como serventes. 

Destruir um arquivo que fora salvo em parte com tanta dificuldade.

Nessa altura eu estava meio maluco, não podia dormir, bebia muito café, depois eu ia para o Centro Cultural Francês ler alguma coisa, eu estava desesperado. 

Mas percebeu como podia ser feito de outra maneira.

Nas várias viagens de Chris Marker para aqui, mandou para cá a Anita Fernandez para nos ensinar a montar filmes realmente. Então no fim deste estágio escrevemos um guião juntos e ela fez um filme que se chama Le Balcon, com o Flora na câmara e eu como operador de som. Chris começou a falar-me de uma coisa privada porque tem uma produção em França, que fosse falar com ele. Certa vez, quando eu vinha da Suécia, passo por Paris em 84 e mostro-lhe o meu filme Fanado para ele ver. Ele começa a falar-me que, em vez de uma coisa de Estado que não nos leva a lado nenhum, pensarmos em coisas  assim. O resultado disso é a carta sobre a Videoteca que a Filipa César mandou tecer em panu-de-penti. Falámos muito, Chris e eu; levei-o a Bafatá, a casa nativa de Amílcar Cabral Cabral, ao forte de Cacheu, onde estavam as estátuas derrubadas dos heróis portugueses, que tinham sido levadas para lá. Filmei as estátuas do colonialismo caídas que descobri em Bissau, antes de as levarem para Cacheu.

AS ESTÁTUAS DERRUBADAS DO COLONIALISMO E O NASCIMENTO DO PAÍS 

Já usou essas imagens nalgum filme?

Vou usar agora neste filme. Tenho outra ideia para fazer o nascimento deste país, eu e Flora filmamos a Proclamação do Estado (nessa reportagem eu filmei apenas curtos retratos dos deputados e convidados, porque eu tinha problemas de baterias), faz cinquenta anos disso, o centenário de Amílcar Cabral. Mas tenho de terminar a longa-metragem que estou a fazer. Penso que podemos fazer muita coisa com essas imagens. Em Bissau havia uma fábrica de espuma para colchões, perto da minha casa. Eu fui lá enquanto estava à espera de comprar um colchão de espuma. Por puro hazard vejo umas coisas, eram as estátuas de Teixeira Pinto, Nuno Tristão. Estavam lá abandonados à sua sorte, em Bafatá deitaram abaixo tudo. Fui buscar a câmera e filmei aquilo como está, com ervas a nascer. Depois tive a ideia de filmar tudo aquilo no porto de Chim, no porto de Bafatá, no porto de Bissau, no quartel da Marinha em Bissau, filmei tudo. Daí que surge a ideia da Guiné, seis anos depois. Eu queria fazer disso um filme, como é que este país nasceu.

Lennart Maalmer. Madina Boe. Proclamação do Estado. foto de Bruna Amico (Itália) ou Ingela Romare (Suécia)Lennart Maalmer. Madina Boe. Proclamação do Estado. foto de Bruna Amico (Itália) ou Ingela Romare (Suécia)

E como precisa de ter maturidade. 

Neste filme que estou a montar já abordo isso. O filme chama-se Nome e Tótala. É uma longa-metragem O resumo da ideia é o que nos custou muito a criação deste país e o que estamos a fazer dele. Vão-me cair à porrada. Em crioulo dizemos que “um peixe seco não tem medo da água quente”, portanto…

COLABORAÇÃO COM FILIPA CÉSAR E A MEDIATECA ABOTCHA

A partir de 2011 a Filipa César ajudou a reabilitar o arquivo com apoio da Alemanha. Como tem sido a vossa colaboração ?

Eu costumo dizer que o surgimento da Filipa César em Bissau foi uma espécie de milagre para o nosso arquivo; para mim a Filipa foi uma oportunidade incrível. Estivemos a promover as nossas imagens de arquivo pela Europa, pelas Américas, pela Guiné-Bissau e mesmo no Egipto. A Filipa fez com elas um documentário comentado aos jovens por mim e por Flora Gomes.

Marta Lança, Sana Na 'Hada e Filia CésarMarta Lança, Sana Na ‘Hada e Filia César

Inaugurámos a Mediateca Abotcha numa comunidade balanta, em Malafo, que conhece muito bem. Quais são as suas ambições e inquietações quanto ao funcionamento? 

Se houver acontecimentos aqui como uma grande avalanche, tenho medo que isto submerja. Quero que possamos digerir bem tudo isto; que ela sirva como informação para a comunidade. Que haja também pessoas nacionais que venham do exterior da região. Que eles se lembrem de tudo aquilo que podem valorizar;  a natureza daqui, as potencialidades económicas agrícolas, ecológicas. Temos que valorizar. Por exemplo, fizemos um workshop sobre abelhas. Tinha que ver como eles reagem. Porque as pessoas vão buscar o mel e matam a abelha com fogo. Como é tratada assim, a abelha passou a ser muito furiosa, muito agressiva.

Na Alemanha a multa é alta se se mata uma abelha, é um crime.

Claro, estamos a extinguir-nos. Sem isso não há agricultura. Mas eu quero que eles digiram tudo pouco a pouco, não vamos acelerar muito. Porque também têm coisas para nos ensinar. 

Quais são os pontos fortes da Mediateca? 

A Mediateca como tal, a parte que toca aos filmes, não só eu, como a Filipa, o Flora, o Suleiman, outras pessoas que estão na televisão vão ter que se empenhar em fazer filmes curtos que não implicam muito orçamento. Coisas sempre a fazer a partir daqui, pode-se fazer muita coisa aqui sobre agricultura. Para já eu quero fazer um filme sobre como é que o arroz chegou a ser o alimento de base na Guiné Bissau. Quero fazer coisas curtas que provocam reação. Como é que isso se tornou possível porque essa gente balanta habitualmente não migra, se migrar é porque está à procura de uma planície alagada. Se migra é porque descobriu uma bolanha. Uma forte comunidade migrou para o norte e para o sul. 

A CULTURA COMUNITÁRIA DOS BALANTA 

As bolanhas (arrozais) aqui estão ameaçadas? 

Porque o habitual é conquistarem o mangal para fazer a bolanha. Mas as coisas são difíceis porque os diques não são bem feitos… O dique tem de ser feito na época seca, com a lama ainda mole, quando ainda o solo é mole, a argila se cola, bate-se muito com o arado. Depois aquilo seca e aguenta quando começa a chover.. Então o dique tem o inimigo que é o caranguejo que o fura. Quando há águas vivas e o nível de água sobe, esses buracos que o caranguejo deixa é que fazem desmoronar os diques. Aqui as pessoas gostam muito da natureza, mas na ilha de Bubaque ainda são muito mais ecologistas do que no resto da vida. Respeitam muito a natureza. São muito bons em ecologia. Aquilo é nato entre eles. E os bijagós têm uma sociedade diferente da nossa, é hierárquica e cada um diz e faz aquilo que deve fazer, os papéis estão bem distribuídos. E aí é a mulher que decide com quem quer casar é ela que decide, quem toma a iniciativa e se não se sente bem arruma outra coisa e muda. E são muito fortes. Eles têm uma estrutura muito forte, muito hierarquizada, muito fechada. Aqui a mulher balanta, em relação a outras etnias também é muito mais livre, parecida aos bijagós mas aqui o trabalho é dividido. Cortar árvores, subir às árvores, ir pescar, é trabalho de homem. Lavrar a terra na bolanha para fazer o canteiro, é o homem que faz. Aqui e lá. Sim. Para fazer viveiro é o homem que faz. Arrancar as plantas, transplantar para a bolanha é a mulher. Mas se o homem já terminou de fazer o canteiro, ajuda a mulher. 

Quais são os outros papéis da mulher? 

Uma mulher faz muita coisa, nunca descansa. Tem de fazer a comida, tem de descascar e pilar o arroz. Em todas as etnias o pilão é da mulher. O homem não faz isso. A cozinha é da mulher. Mas todos os dias temos de comer. Então todo o dia a mulher trabalha. A mulher bijagó é que constrói a casa, ela é que faz a casa. 

Os balanta são muito bons construtores, não é?

Sim, e todos colaboram. O homem corta o capim mas a mulher ajuda a transportar. Eu nasci numa casa dessas tradicionais. Mas nessa altura não se fazia com blocos, era com lama ou uma faixa de lama assim, põe em cima, vai moldando moldando, espera que o sol seque. E depois outra camada. Uma vez de manhã, uma vez à tarde. Tem de se ir devagar, não se pode construir rapidamente. Mas é muito bom e não faz calor lá dentro. Nunca sentes calor lá dentro. Tem uma estrutura de paus do mangal, depois cruza umas lianas, depois faz-se uma escada de capim, não há pregos, é tudo amarrado. O teto é feito de tal maneira, que você pode dormir lá em cima. Tem uma abertura aqui para evitar que os felinos, as hienas, entrem de noite, faz uma pequena escada e os pintos e a galinha sobem com os filhos lá para cima e de manhã descem. Todos em harmonia. E os galos são emasculados depois tornam-se muito bons, têm uma carne macia. A mulher é que cria os animais como as galinhas, os porcos. O homem só se interessa por bodes para o casamento. Se tem uma cerimónia em que é preciso um boi, então mata um. Está aí. O homem que foi já ao Fanado então já só pode criar vacas. 

Como é a relação com gado, nessa divisão de tarefas?

Os rapazes devem criar as vacas porque ele é que vai tocar o choro. E a mulher tem que vestir os filhos. No trabalho coletivo da família quem manda é o homem. Mas depois da colheita, aquilo é guardado num cilo para grão. Por acaso é enorme. Há aqui vários. Para a semente, para a comida. No fim da colheita, divide-se arroz para cada membro da família, para as suas necessidades, para comprar roupa, para suas necessidades pessoais. Depois fica o arroz que toda a gente vai comer. Então quando se lavra, pensa-se na reserva anual, quando essa reserva acaba, acabou-me o arroz coletivo, a mulher, o filho pode fazer uma lavra particular para ele. A mulher cria o gado menor. Quando vês numa família uma cabra, uma galinha, um pato, é assunto da mulher. Mas às vezes o homem pode tomar emprestado um animal, se há necessidade, mas tem de pagar. Vestir uma rapariga é assunto de mulher. Para o homem é o Fanado, mas tem de ser no mato, onde ninguém vai, a não ser os iniciados. Aquilo requer muita sabedoria e muito sigilo. Depois da iniciação, não se pode comentar. Fica o segredo. De acordo com o comportamento deles, sabemos quem foi à iniciação ou não. 

Pretende-se que este espaço da Mediateca obedeça à cultura balanta?

Vão ter de manter aquilo, mostrar coisas. Não são crianças. Sabem muito e têm de entender. Há muita coisa que vemos de uma maneira e eu sei como é que eles entendem, porque estou no ponto de vista deles, nasci aqui e conheço. O problema é que nós estamos a propor coisas que às vezes eles têm dificuldade de entender. Vocês são cartesianos, eu sou animista e cartesiano. A religião é melhor deixá-la para os outros. Não digo que não, não digo sim, mas evito.

Malafo 2022. foto de Marta LançaMalafo 2022. foto de Marta Lança

Então é fundamental ter esse empreendimento de dentro para que as coisas tenham fluidez sem ser uma imposição.

A todo o custo há que evitar imposições. Porque eles podem ver aquilo como uma espécie de prepotência. Pretender que sabemos tudo, quando não sabemos. 

E quais são as garantias que isso vai ser assim? 

É persistir. Persistir sim. 

Mas a equipa tem um bom entendimento. 

Eu sei como o Bedan percebe, porque vivo isso, sinto e sei convencer o Pereira, que também já esteve na universidade, na Romênia. Já falei com o Beden para aceitar a função do régulo que ele não quer. Mas na prática não pode fugir, as pessoas vêm buscar aqui tudo aquilo que necessitam, que não sabem. Aqui já tivemos que resolver problemas da minha aldeia, que é maior e mais povoada. É um problema étnico e religioso. No dia seguinte o Pereira e o Bedan foram lá e já estavam todos amigos. Eles já viram o que a guerra faz, pois as guerras ninguém as ganha. Têm mania que vencemos os portugueses, não vencemos, ninguém venceu nada, o país existe mas não tem uma estrutura. 

Sem falar nos efeitos da guerra, em termos psicológicos… 

Somos todos neuróticos e toda a gente pensa que ganhou a guerra. Eu tento fazer ver isso com o filme que estou a montar. Uma guerra não se ganha. Você fica com problemas sociais, problemas psicológicos. Há muita gente que ficou marcada de vez. Vai à minha aldeia vê assim vestígios de famílias que a guerra levou, por inteiro.

Já foi há tantos anos e ainda não regenerou.

Regenera de outra forma. A vegetação é muito resiliente. As árvores rápido cicatrizam, a alma humana já não!

por Marta Lança | Trabalhadora independente em várias linguagens da área da cultura, como programação, tradução, jornalismo, investigação, cinema. Desde 2010, edita o portal BUALA

Bassma Kodmani (1958-2023), por Álvaro Vasconcelos

A morte de Bassma Kdmani é uma enorme tristeza. Perco uma grande amiga, com quem muito colaborei ao longo de 40 anos. Ela gostava de lembrar que a sua primeira intervenção numa conferência tinha sido no início dos anos 80, num seminário do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) sobre as relações euro-mediterrâneas, tema, aliás, que nos uniria nas décadas seguintes. Bassma era então jovem investigadora do Instituto Francês de Relações Internacionais, país que acolhera seus pais, exilados sírios. Nos anos seguintes, Bassma Kodmani afirmou-se como uma das mais brilhantes analistas do Médio Oriente e tive o privilégio de poder contar com o seu saber, quer no IEEI, quer no Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia. Em 2011, assumiu plenamente a sua origem síria, mobilizando-se no apoio à luta pela liberdade contra a repressão de Assad e veio a assumir o papel de porta-voz do Conselho Nacional Sírio. Vivi de perto as suas angústias, a sua recusa do sectarismo, as suas esperanças num futuro democrático para o país dos seus antepassados. Nesse período ela dirigia a Arab ReformIniciative (ARI), que tinha fundado. Eu era investigador associado, a seu convite.

A melhor forma de homenagearmos Bassma é continuarmos a apoiar todos aqueles que nos países árabes lutam pela democracia e a exigir que a União Europeia abandone a política de apoio às ditaduras do Norte de África, em nome de uma suposta segurança que estas trariam. Como dizia Bassma, a Europa não devia ter medo da democracia, pois só ela pode trazer a estabilidade e o desenvolvendo sustentados, em liberdade.

O regresso de Bond, por Francisco Seixas da Costa

Eles aí estão, pelo mundo, de volta à ribalta. Nos jornais, na política, na academia, nas fardas. Os viúvos da Guerra Fria.

Desde o início dos anos 90, quando a implosão da União Soviética tinha garantido uma vitória ao ocidente, percebia-se já a sua inquietação. Tinham tido um êxito, claro, mas, às vezes, em tom de desabafo, deixavam cair: “Nesses outros tempos, as coisas eram bem mais claras, éramos nós e eles”. E o facto de “eles” se terem só formalmente transmutado, de ter passado a ser necessário fingir que se acreditava na sua conversão, criava um ambiente estranho, um faz-de-conta em que passaram a ser obrigados a viver.

Por uma trintena de anos, esses saudosos das sombras de um mundo a preto e branco, sentiram-se desconfortáveis, por terem sido forçados a sair da velha e cómoda trincheira maniqueísta.

Tal como James Bond tinha abandonado a caricatura vinda do frio e derivara para novos alvos, também eles se dedicavam a genéricos estratégicos, aos atores não-estatais, como o terrorismo de várias matizes, ou os jihadistas, tudo imerso numa pouco subliminar islamofobia, sucedânea do anticomunismo do antanho.

Agora, o velho Bond já pode regressar. O que se passou no último ano trouxe esse pessoal de volta aos velhos tempos, ao faroeste da vida internacional, à guerra dos bons contra os maus, mesmo que se sintam obrigados a conceder, em privado, referindo-se a alguns incómodos companheiros de jornada, que surgem no apoio à causa da conjuntura, aquilo que um dia Roosevelt disse de Somoza: “He is a son of a bitch, but he is our son of a bitch”. Direitos humanos, liberdade partidária, independência dos tribunais, liberdade dos media -enfim, passam a ser coisas que outros valores mais altos obrigam a pôr entre parêntesis.

Devemos ficar inquietos quando, na partilha de solidariedade com causas anunciadas como essenciais, descobrimos, ao nosso lado, gente que, em tudo resto, não partilha o nosso quadro de valores. Quando, sob o alibi da “force majeure”, nos encontramos de mão na mão com pessoal nada estimável, é muito mau sinal. Ou melhor, no plano internacional, é sinal de que entrámos, alguns felizes, outros descontentes, muitos hipócritas, outros sem mais soluções, na lógica de uma inelutável confrontação. Que é sempre a soleira de uma possível guerra a sério, com tudo ao molho e fé no nuclear.

Agradecer a Putin

Vladimir Putin é o outro lado da moeda dos “cold warriors” de extração ocidental. A Rússia de Gorbachev e Yeltsin, de que o ocidente morre de saudades, acabou por decantar um “apparatchik” que, nem por um segundo, aceitou de bom grado o fim da URSS, que o mesmo é dizer, o saldo da Guerra Fria que essa mesma URSS, goste ela ou não de admitir, perdeu. E, quando se perde uma guerra, há consequências a suportar.

Contudo, Putin sabia que, nessa Rússia humilhada, não estava sozinho, muito longe disso. E, sem surpresas mas com inesperada clareza, deu-nos a conhecer a doutrina subjacente à sua leitura de uma espécie de hierarquia das nacionalidades que a União Soviética federara. As intervenções públicas com que o senhor de Moscovo nos ilustrou, ao longo do ano desta guerra, foram, nesse aspeto, de extrema utilidade didática.

É certo que a Rússia fora acossada pelo ocidente – chamando as coisas pelos nomes, pelos Estados Unidos – com o assumido objetivo de provocar o seu enfraquecimento, mesmo a sua anulação como potencial ameaça. Mas foi ele próprio, Putin, com o seu mutante e cada vez mais preocupante comportamento, ao longo dos anos, quem gerou o caldo de cultura que adubou essa mesma deriva.

Aparentemente, a Rússia de hoje não consegue perceber que os governos dos países que engrossaram as fileiras da NATO, que se foram chegando às fronteiras russas, o fizeram porque quiseram, não foram marionetes, agindo sob a pressão de modernas baionetas americanas. Alguns têm ódios recalcados, uma russofobia evidente. Mas têm também fortes razões para estarem inquietos. São cúmplices, dessa forma, do cerco americano à Rússia, do incumprimento da promessa política americana de não alargar a NATO? É óbvio que sim, mas Moscovo tem aqui a paga da sua preocupante deriva autocrática.

Talvez a Rússia possa agora perceber melhor que foi necessário um sismo estratégico para ver duas sólidas democracias, como a Suécia e a Finlândia, que tinham feito da neutralidade o DNA da sua identidade internacional, lançarem-se, por completo, nos braços da aliança militar ocidental. E que foi Putin, sem a menor sombra de dúvida, o detonador desse movimento.

Aqueles que, deste lado do mundo, se sentem agora mais à vontade com a dualidade estratégica que aí está reinstalada, devem assim um agradecimento à ajuda dada por Putin.

A invasão da Ucrânia e, no topo do bolo, a canhestra integração na Federação dos oblasts onde havia uma apreciável população russa, precedida de uns ridículos referendos, revela que Moscovo vive numa espécie de “second life” em matéria de direito internacional, de que já tinha dado mostras na questão da Abcásia e da Ossétia do Sul.

Por muitas voltas que as coisas possam dar, a Rússia pode esperar sentada se acaso tem a mínima esperança de que esta sua “nova” ordem internacional venha a prevalecer.

A China a bordo

A entrada das tropas russas na Ucrânia apanhou a China desprevenida? Talvez nunca venhamos a saber o teor da conversa entre Xi e Putin, nas vésperas da olimpíada de Inverno.

O que a China sabia, o que todos sabíamos, é que o mal-estar dos EUA em face da sua afirmação internacional caminhava num crescendo. E Pequim não ajudou: por exemplo, não se coibiu de alimentar a corda retórica, na tensão com Taiwan, porque lhe era essencial em ano de congresso do partido.

Os últimos anos pareciam apontar, contudo, para o interesse chinês de consolidar o seu projeto de financiamento de infra-estruturas, a Nova Rota da Seda, um plano que, tudo assim o indicava, seria favorecido por um mundo em relativa paz.

O ciclo de distração americana no Médio Oriente – inaugurado com o 11 de setembro, prolongado com a segunda guerra no Iraque e culminado na saída do Afeganistão – tinha dado a Pequim, entretanto, duas décadas de simpática desatenção por parte de Washington. Isso tinha acabado e era óbvio que os EUA iriam agora mobilizar os seus “compagnons de route” asiáticos para um cerco de suspeição face a Pequim.

O que não estava nas cartas é que a China se veria obrigada, na sequência da reação ocidental à entrada da Rússia na Ucrânia, a coreografar um relativo alinhamento com Moscovo. Mas era impossível à China furtar-se a ele, mesmo se o “timing” para este inevitável agravamento da relação com o ocidente não fosse, como não era, o seu.

Agora, a polarização com Washington é inevitável, restando a Pequim tentar encontrar prosélitos em todos os continentes, oferecendo-lhes razões e dinheiro para não se deixarem seduzir pelo poder americano. Enfim, uma espécie de “déjà vu” face ao período posterior à Segunda Guerra.

Ah! E há a Europa!

O parceiro dos americanos na nova Guerra Fria é, naturalmente, a Europa.

Nesta crise, ficaram provadas três coisas.

A primeira é que os EUA continuam a ser um poder europeu insubstituível, único verdadeiro provedor de resposta a ameaças da Rússia, com o Reino Unido à ilharga e os restantes a velocidades e vontades diversas.

A segunda é que a Europa de Bruxelas, depois do subliminar golpe de Estado institucional em que a Comissão subalternizou um aturdido Conselho, pela fragilidade conjuntural do eixo franco-alemão, quase pede meças à retórica jingoista da NATO, mobilizada pelo medo e pela subordinação ao clamor mediático, elevado à dignidade de legitimidade democrática.

A terceira é que, por muito que o velho continente continue a agitar-se em torno da ideia de obter uma autonomia estratégica, em matéria de segurança e defesa, esta guerra terá provado, pelo papel uma vez mais desempenhado pelos EUA no continente, que embora essa fosse porventura uma bela ideia, pode continuar a ser só isso.

Agora, a guerra

Os Estados Unidos, o dono do jogo, que até agora tem providenciado a esmagadora maioria do armamento dado à Ucrânia, mostra vontade de continuar a favorecer a resistência desta face à agressão russa, não forçando Kiev a qualquer cedência territorial. Com ou sem reserva mental por parte de alguns Estados, a Europa segue Washington, em ordem unida. Os EUA terão decidido que vale a pena correr o risco de contrariar a bravata russa de que pode vir a recorrer às armas nucleares. Só resta esperar, para a segurança coletiva, que as contas lhes (nos) não saiam furadas.

Francisco Seixas da Costa foi diplomata durante quatro décadas e, hoje, é consultor estratégico, investigador universitário e comentador de assuntos internacionais na comunicação social.