Por Ricardo Sant’Ana Moreira*

Já discuti noutros artigos muitas das objeções que tenho à implementação de um Rendimento Básico Incondicional (ver aqui, aqui e aqui), pelo que queria que esta crítica se centrasse no facto dos defensores de um RBI de esquerda apresentarem a medida fora da luta de classes, como uma ideia puramente técnica ou mesmo como um passo paralelo mas no sentido do socialismo.
O primeiro problema deste desiderato é, claro, tentar definir um RBI de esquerda. Aliás, este é sempre o primeiro problema quando se discute o RBI com seja quem for e não se trata de um problema menor porque na mesma sala podem estar defensores de coisas diferentes, muitas vezes totalmente opostas, mas usando a mesma sigla para defender coisas antagónicas. É o estranho caso de uma palavra para utopias contrárias.
Definamos um RBI de esquerda simplesmente como uma ferramenta para permitir uma maior emancipação dos homens e das mulheres, para diminuir a sua exploração e aumentar a igualdade social. Repare-se: se este for o objetivo dos defensores de um RBI de esquerda ele coincide com o objetivo dos progressistas, sendo o RBI apenas a ferramenta para atingir o mesmo fim.

Isso também quer dizer que quem defende um RBI de esquerda se oporá às propostas dos RBI liberais em que o Estado social é simplesmente substituído por um rendimento. Infelizmente, esse debate no interior do movimento pelo RBI não tem sido claro, tratando-se tudo como se da mesma coisa se tratasse.
Um RBI de esquerda, como advogam muitos dos seus defensores em Portugal, seria complementar à Escola Pública e ao Serviço Nacional de Saúde e refundaria, sem reduzir rendimentos dos pensionistas, a Segurança Social. Essencialmente seria um Estado social 2.0, onde para além do que hoje temos se adicionaria um rendimento fixo em dinheiro para todos os indivíduos.
Tendo em conta que o Estado social tipicamente consome entre 25% e 30% do PIB e que um RBI de 420€ (seria este o calor para viver dignamente?) representaria um gasto de 27,3% do PIB (!!), um Estado social com RBI, esse Estado social 2.0, representaria um gasto de mais de 50% do PIB. A recolha desses recursos só poderia ser feita através de impostos sobre o rendimento fortemente progressivos e de uma taxação gigantesca sobre as empresas.
E é neste ponto que o RBI sai da política e da história: para os advogados do RBI o debate é sempre técnico e sobre as vantagens (sempre pouco claras) da sua aplicação. É sempre um debate tecnocrático: provando-se a bondade da medida, resta-nos – sociedade – decidir a sua aplicação.
Assim, o RBI põe-se de lado de todo o movimento popular, de toda a tradição socialista, de todas as lutas dos trabalhadores ao longo dos últimos 200 anos que criaram o Estado social. Os defensores do RBI tornam-se, assim, sujeitos fora da luta de classes, pós-modernos radicais.
Fica então criado um enorme paradoxo: para que o Estado arrecadasse mais de 50% do PIB para medidas redistributivas seria necessário uma Revolução; no entanto, esta Revolução social não nos traria a emancipação social, mas tão-somente um reforço do mercado e uma maior monetarização das relações sociais.
Recorde-se que no período recente de austeridade vimos o impacto que uma ligeira alteração do rácio trabalho/capital teve para toda a população, imaginemos então que impacto e oposição teria uma alteração tão forte no sentido inverso.
Infelizmente, aquilo que tem ocupado muito do debate da esquerda ao longo dos últimos dois séculos, o debate sobre estratégias e táticas para a mobilização social, está totalmente ausente do debate do RBI.
Mais, porque haviam os progressistas de embarcar numa empreitada desta magnitude se o melhor resultado que dela podia ocorrer seria mais recursos para o mercado “regular”? Não faria mais sentido juntarmos forças pelo aumento do salário e pela melhoria do nosso salário indireto? Aquilo que Sérgio Godinho sintetizou simplesmente em: a paz, o pão, habitação, saúde, educação?
Sejamos então claros, o RBI como passo intermédio para o socialismo é um projeto sem sentido nem futuro e os seus defensores que apreciam a confusão pós moderna e positivista – alguns até recusando a ideia de que existe “esquerda” ou “direita” – são um cavalo de Tróia para o RBI liberal que é a antítese do Estado social.
Outros caminhos para a utopia comum ainda estão em aberto, em disputa e mesmo todas e todos somos poucos.
*Ricardo Sant’Ana Moreira é investigador em trabalho e segurança social. Escreve uma coluna quinzenal para o Jornal Económico.