1.Já dei este exemplo várias vezes ao longo dos anos, mas infelizmente ainda não chegámos lá. Quando, há mais de 20 anos, fui ao British Council apresentar a candidatura da minha filha mais velha a uma universidade britânica, fiquei de boca aberta quando a senhora que me atendia me disse que não precisava de apresentar certificados disto e daquilo. Bastava preencher os formulários com as informações necessárias sobre o percurso escolar e as respectivas médias, mais uma carta de um dos seus professores do último ano do liceu atestando, não o aproveitamento, mas a maturidade. A senhora explicou-me pacientemente que as instituições públicas do seu país confiavam nos cidadãos e que a percentagem daqueles que, eventualmente, poderiam tentar enganar o sistema era tão residual que não compensava nem merceia o esforço. Achei isto tudo admirável. Hoje, tantos anos depois, a desconfiança do Estado em relação aos cidadãos já não é tão grande, mas a desconfiança dos cidadãos nos chamados “poderosos”, com particular evidência para os políticos, continua a ensombrar a sociedade portuguesa.
Um bom exemplo que deve ser seguido foi a Comissão Parlamentar de inquérito do BES
O populismo justiceiro é um perigo grave para a democracia, alimentado pela corrupção e pela relação espúria, entre política e sector financeiro. As lições a tirar do caso brasileiro não passam pela abusiva colagem de Sócrates a Lula.
Circula, neste momento, no país, uma petição com 200 mil assinaturas a pedir a demissão do juiz Ivo Rosa. O seu primeiro subscritor é a mesma pessoa que fez uma petição contra Joacine Katar Moreira – por suposto ultraje à bandeira portuguesa. E, no entanto, tal não parece comover muitos.
Andam mal os que legitimam o discurso populista, confundindo o regime democrático com a corrupção. Esse foi o argumento para o golpe de 28 de Maio de 1926, que abriu caminho a uma ditadura de 48 anos.
A atual vaga populista começou após o mega-processo ‘Mãos Limpas’, em Itália. Berlusconi foi eleito em resposta ao clamor anticorrupção da opinião pública, apesar de ser tão ou mais corrupto do que os políticos que denunciava.
Eu estava no Brasil quando se iniciou o mega-processo Lava Jato.
Em Curitiba, o juiz Moro assumia as vestes do acusador. A sua ação era apoiada amplamente, com grandes manifestações convocadas por organizações bem financiadas, onde eram exibidos balões gigantes com Lula vestido de presidiário e t-shirts com a inscrição In Moro We Trust. Moro inspirava-se na estratégia de mobilização da opinião pública seguida por Di Pietro, em Itália.
Em São Paulo, nos bairros da classe média alta, as noites eram marcadas pelos panelaços. Os órgãos de informação eram alimentados pelos procuradores, aconselhados por Moro. O alvo principal era o PT acusado de ter abandonado a agenda ética que o levara ao poder. Políticos dos partidos de oposição pensaram que iriam ser os beneficiários do enfraquecimento do PT e da condenação de Lula. O resultado, porém, foi a eleição de Bolsonaro.
Sabemos que Moro, inebriado pela sua popularidade, sonhou ser Presidente, acabou ministro de Bolsonaro e que a operação Lava Jato, o mega-processo que devia pôr termo à corrupção no Brasil, acabou por se fragilizar.
Em democracia, a opinião pública julga pelo voto e elege os deputados que fazem as leis. A justiça deve ser independente não só do poder executivo, mas também da pressão popular.
As ditaduras negam o direito à presunção da inocência, pedra basilar dos direitos humanos, e quem é considerado criminoso é humilhado na praça pública e condenado antes de ser julgado. O discurso da extrema-direita nas questões penais é de uma enorme barbaridade, de rutura com o humanismo jurídico penal de que Portugal se orgulha. Ventura defende a prisão perpétua e a castração química ,que afirma corresponder à vontade popular. O mesmo afirma a candidata do PSD à Câmara da Amadora, prova de que o discurso populista pode contaminar os partidos democráticos.
O discurso da extrema-direita nas questões penais é de uma enorme barbaridade, de rutura com o humanismo jurídico penal de que Portugal se orgulha.
Aqueles que são considerados responsáveis pelas nossas misérias, são alvos de ódio e de um desejo de vingança que já não se exprime pelo linchamento, mas antes pela exigência de que seja satisfeito pelos tribunais.
A extrema-direita aparece como justiceira, mas a sua aversão ao sistema judicial e ao Estado de direito é a mesma quando está na oposição e quando está no poder.
No poder, a extrema-direita, não promove uma agenda anticorrupção, antes lidera um ataque à independência da Justiça, como se viu na Hungria ou na Polónia, apesar de o partido no poder se chamar “Verdade e Justiça”.
No Palácio do Planalto, Bolsonaro elege o supremo tribunal como inimigo e procura controlar o poder judiciário para proteger os seus filhos.
A extrema-direita aparece como justiceira, mas a sua aversão ao sistema judicial e ao Estado de direito é a mesma quando está na oposição e quando está no poder.
Em Portugal, a corrupção no tempo da ditadura era endémica, mas a censura e a falta de independência da justiça abafavam os crimes. Da imagem que Salazar divulgava de um país de “pobres, mas honestos”, só era verdadeiro o “país de pobres”.
O que a experiência brasileira mostra é que a pressão popular sobre a justiça resulta das omissões das instituições democráticas no combate à corrupção, e da legítima indignação dos cidadãos.
Um pouco por toda a parte, a expansão do neoliberalismo fez com que os partidos políticos ficassem demasiado dependentes do sector financeiro e das suas exigências- os paraísos fiscais são a prova disso. Não é por acaso que um banqueiro era conhecido como o ‘dono disto tudo’.
Assim, compete aos verdadeiros democratas exigir que governo e parlamento dotem o país do quadro legal necessário para dificultar a promiscuidade entre negócios e política, dando à justiça os meios necessários para se tornar muito mais célere e eficaz.
O Parlamento, em particular, tem de assumir um papel central no escrutínio dos políticos e do sector financeiro. Um bom exemplo do que pode e deve ser feito foi a comissão de inquérito do BES, que valeu a Mariana Mortágua o reconhecimento por parte de cidadãos de vários quadrantes políticos.
O Parlamento, em particular, tem de assumir um papel central no escrutínio dos políticos e do sector financeiro. Um bom exemplo do que pode e deve ser feito foi a comissão de inquérito do BES, que valeu a Mariana Mortágua o reconhecimento por parte de cidadãos de vários quadrantes políticos.
Entretanto, esperemos, serenamente, pelas decisões da justiça, que quanto ao julgamento político de Sócrates, esse há muito que está feito.
O Forum Demos, em colaboração com a Casa Comum da Universidade do Porto, a Cooperativa Árvore, o Centro Nacional de Cultura e a a Universidade Lusófona do Porto, iniciou um novo ciclo de debates luso-brasileiros sob o título “Memória e Democracia”, comissariado por Álvaro Vasconcelos. O terceiro debate do ciclo terá lugar quinta-feira, dia 15 de abril, pelas 18h30 (Lisboa)/ 14h30 (São Paulo) e terá transmissão pelo Youtube, através do canal do Forum Demos.
Neste debate abordaremos a temática da “Direitos Humanos”, com Irene Pimentel, historiadora, e Pedro Dallari, jurista e antigo Presidente da Comissão Nacional da Verdade.
As ditaduras portuguesa e brasileira são responsáveis por crimes graves contra os direitos humanos, como a prisão arbitrária, a tortura e o homicídio. A forma como decorreram as transições democráticas nos dois países explica, talvez, o facto de não ter sido exposta toda a verdade sobre esses crimes, bem como o porquê de não terem sido julgados, nem, consequentemente, condenados os seus principais responsáveis.
Em 1977, foi criada pelo governo português a Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista, cujos trabalhos tiveram um impacto público muito reduzido e não levaram a quaisquer consequências jurídicas.
Em 2011, o Estado Brasileiro constituiu a Comissão Nacional da Verdade (CNV), destinada a resgatar, mesmo que tardiamente, a memória do período autoritário, embora, uma vez mais, sem que produzisse consequências jurídicas significativas.
O combate à impunidade e o direito à verdade são, desde os anos 90 do século passado, considerados essenciais pela comunidade internacional para prevenir o revisionismo. A história dos crimes cometidos contra o povo português e contra o povo brasileiro pertence ao seu património.
À luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos que tipo de crimes foram cometidos em Portugal e no Brasil, durante a ditadura? Como se explica a impunidade que gozaram e gozam os responsáveis por crimes graves contra os direitos humanos, durante as duas ditaduras? Porque é que, no atual contexto político, é importante um trabalho de “memórias” sobre as ditaduras portuguesa e brasileira? Estas são algumas das questões que iremos discutir.
Por razões da agenda político-judicial atual, o debate “Memória e Democracia – Direitos Humanos” foi adiado para a próxima quinta-feira, dia 15 de abril, às 18h30 (Lisboa) / 14h30 (São Paulo).