A simplificação do discurso tem como consequência o desprezo do pormenor. Reduzir realidades complexas a comparações diretas e descontextualizadas tem como resultado inevitável a incompreensão de um grande universo de realidades e situações. É assim que nasce o populismo, apoiado na propagação crescente de desinformação.
Na icónica obra de George Orwell, “1984”, esta realidade é assustadoramente bem retratada. No romance, o Partido apoiava a sua hegemonia na manipulação da verdade. A propaganda do Grande Irmão apoiava-se, não apenas em notícias manipuladas e repetidas até à exaustão, como napermanente alteração de arquivos e registos, por forma a que estes espelhassem a confirmação de cada movimentação do Partido.
Além do sufocante controlo de toda a “informação” e conteúdo cultural, estava a ser aperfeiçoada a Novilíngua, um novo idioma simplificado que resultava da supressão de palavras, que eram substituídas através da justaposição de outras. Esta ferramenta tinha como último propósito eliminar completamente conceitos ligados ao pensamento crítico individual, e simplificava cada vocábulo de forma a ser impossível exprimir ideias contrárias ao Partido. Funcionava como uma gradual e profunda alteração do raciocínio crítico, que tinha como último objetivo eliminá-lo por completo. O exemplo de “1984” como alegoria da realidade não é novo, mas revela-se sempre pertinente.
Também hoje presenciamos os efeitos da simplificação intencional do discurso, mas em vez da supressão de vocábulos, assistimos ao desrespeito flagrante pela verdade e à desconsideração de argumentos e informação relevante. Esvaziam-se explicações complexas, dando primazia à noção simplista e radical do mundo. A desinformação que prolifera nas redes sociais está apoiada em mensagens sensacionalistas apelativas, criadas e formuladas para serem facilmente perceptíveis.
A complexidade da ciência, da história e da política democrática é desvalorizada de forma a perder toda a sua credibilidade. O verdadeiro raciocínio crítico dos cidadãos está, por isso, a perder-se aos poucos. A procura da verdade tornou-se subjetiva. Há uma realidade alternativa no “feed” de cada um, potenciada por algoritmos desenhados para agradar a todos.
A capacidade de filtrar e julgar conteúdos e opiniões está a dissolver-se no meio do ensurdecedor fluxo de informação no meio digital, que dá prioridade à rápida captação de atenção do utilizador. A rapidez de acesso e partilha nos meios digitais não é compatível com a necessária demora da análise crítica e comparativa. O discurso simplificado e redutor – típico de populistas e demagogos – acaba por dominar. Na era da informação, aumenta a iliteracia mediática, apoiada na personalização de conteúdos.
A grande diferença entre a sociedade contemporânea ocidental e o mundo de “1984” é a crença atual no poder individual. O acesso aos conteúdos digitais, à informação, às notícias é virtualmente possível a todos, o que reforça a ideia de julgamento crítico e democrático. Mas, sendo que cada conteúdo é adaptado a comportamentos digitais individuais (muitas vezes irrefletidos), a avaliação da informação está sempre sob inevitável influência, potenciada pela ideia de pertença a uma comunidade like-minded (veja-se o exemplo dos “terraplanistas”).
A liberdade de informação fica, por isso, fortemente condicionada. O necessário debate tolerante, que possibilita a democracia, fica colocado em causa pela ausência total de cedências. Os indivíduos vêm nos factos versões distintas da realidade. A informação não é mais analisada, mas adaptada conforme as crenças já existentes.
O discurso moderado desaparece gradualmente, sendo substituído por posições extremistas, apoiadas na simplificação radical. A pluralidade, a complexidade e diversidade sociais são desvalorizadas e descredibilizadas. Gera-se medo da diferença. Nasce o radicalismo, o negacionismo, o cepticismo perante as instituições democráticas, que perdem força face ao facilitismo aparente do populismo.
Não é viável simplificar um mundo que se quer complexo e plural. A sociedade democrática carece de debate profundo e rigoroso. Simplificar a realidade minimiza a sua compreensão e conduz ao radicalismo. É tempo de alargar o pensamento, e não de reduzi-lo.