Cinquenta primaveras de Maio

Renato Janine Ribeiro

2013 foi um ano excepcional no Brasil. Em nosso país todo inverno neva uma vez em algum lugar do Sul. Naquele ano nevou duas vezes, em mais de cem cidades. Um cronista medieval, se relatasse esse evento, falaria em portentos, augúrios de algo surpreendente. Algo que estava mesmo acontecendo: em junho daquele ano, tivemos nosso maio de68.

Os protestos registrados há 50 anos na França tornaram-se referência para manifestações que, de forma espontânea e sem organização tradicional, eclodem com força e marcam um determinado momento histórico. Contudo, a crítica que mais se faz aos maios do mundo (em 2013 também houve um na Turquia e outro na Bulgária) é que não têm projeto convergente nem liderança com quem negociar. Ouviu-se isso aqui no Brasil.

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Crise da Democracia Brasileira: são as eleições presidenciais uma saída?

O Forum Demos, em colaboração com a Cooperativa a Árvore, convida para mais um debate, desta vez dedicado ao tema da “Crise da Democracia Brasileira: são as eleições presidenciais uma saída?”

O debate terá lugar na Cooperativa a Árvore, no dia 30 de Maio pelas 18h30 e contará com a participação de Helcimara de Souza Telles, Professora de Ciências Políticas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), contando ainda com a moderação de Álvaro Vasconcelos.

A entrada é livre mas a inscrição prévia é obrigatória e deverá ser realizada aqui

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O Brasil atravessa uma grave crise política. Presidente e Congresso perderam toda a credibilidade. Um antigo presidente (líder das sondagens) está preso e os juízes assumem cada vez mais um papel político. Será que as próximas eleições irão resolver ou, antes, agravar a crise? Será que o candidato populista de extrema-direita, Bolsonaro, pode ganhar as eleições presidenciais? Como travar a sua ascensão? Quais são os candidatos alternativos?   

 
Estes são alguns dos temas a ser discutidos neste forum.
 
Contamos com a vossa presença e participação.
 
Forum Demos 

Maio de 68: (ainda) um beco sem saída

Por Filipa M. Ribeiro

“Quando a gente quer olhar tudo, acaba descobrindo o que há de feio no mundo.”
Erico Veríssimo, in Música ao Longe

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O ambiente era de expectativa porque, apesar de haver uma certa dominância do passado, ali estava a oportunidade de descobrir ou discutir a crença num futuro, o da utopia da igualdade e participação. Foi esse o tema da primeira conferência do Ciclo “Utopias europeias: o poder da imaginação e os imperativos do futuro”, numa ambiciosa iniciativa de Álvaro Vasconcelos e da Fundação de Serralves. Continuar a ler “Maio de 68: (ainda) um beco sem saída”

Regionalização: Será este o tempo da decisão?

Por Maria Carlos Oliveira

   A ideia central de Popper é que, em política (como em ciência) é um erro básico perguntar «Como podemos ter a certeza?» e «Como podemos assegurar governantes perfeitos?»; o que devemos perguntar é «Como podemos minimizar os danos que os nossos governantes possam cometer?».[1]

Oliver Tamplin

 

                A regionalização é apresentada, pelos seus defensores, como uma solução promissora para a resolução das assimetrias do país e, simultaneamente, como uma forma eficaz de dinamizar as regiões a partir de uma maior capacidade para gerar sinergias, a diferentes níveis, melhorando consequentemente a resposta política às necessidades dos cidadãos.

                Karl Popper, com a lucidez de um olhar que tem por horizonte a sociedade aberta e as dificuldades que enfrenta, lembra-nos que não valerá a pena pedir certezas relativamente à garantia da eficácia das medidas políticas. Há propostas políticas que parecem promissoras e que terminam em fracasso, como por exemplo o referendo, a eleição direta dos líderes partidários, o fim do serviço militar obrigatório. Os referendos tornaram-se uma arma habilmente manejada pelos populistas contra a democracia, as diretas acabaram com o debate político, transformando os congressos partidários em desertos de ideias, o fim do serviço militar obrigatório fez descurar a defesa e restringiu a diversidade dos que se oferecem para integrar as forças armadas.

Os tempos que vivemos nas democracias europeias “consolidadas” também mostram que, ontem como hoje, não temos forma de assegurar governantes perfeitos. Os resultados eleitorais parecem estar a transformar-se numa autêntica roleta russa. Parece haver uma estranha perceção do conceito de bem comum e, apesar da cultura de entretenimento (haverá o intuito de esquecer os poderosos 1%?), parece ser possível que, a qualquer momento, algum ponto branco se possa vir a revelar como um enorme icebergue que nos afunde num mar de ódio, intolerância e sangue. Não porque sejamos maus por natureza, apenas porque somos humanos e consequentemente vulneráveis e impreparados para lidar com mudanças profundas, num mundo tão desigual, que colidem com as expectativas do cidadão comum relativamente ao futuro.

É oportuno regressar à antiguidade clássica, ao berço da democracia, e lembrar o que nos diz Werner Jaeger, “O mal social é como uma doença contagiosa que se estende a toda a cidade. E atinge sem vacilar toda a cidade onde surjam discórdias entre os cidadãos, afirma Sólon. Isto não é visão profética, é saber político”[2]. Acrescenta ainda ser “evidente que Sólon pressupõe uma conexão legal de causa a efeito entre os fenómenos da natureza e estabelece expressamente uma legalidade paralela nos acontecimentos sociais, quando noutra passagem diz: A chuva e o granizo vêm das nuvens, do relâmpago resulta necessariamente o trovão; a cidade sucumbirá ente homens poderosos e o demos cairá nas mãos do ditador.[3]

Como podemos [então] minimizar os danos que os nossos governantes possam cometer?

A resposta a esta pergunta é crucial num tempo e que as democracias liberais atravessam um período difícil. Restaurar a confiança política, criando condições para que os cidadãos estabeleçam uma nova relação com os poderes democráticos, é um imperativo. É necessário que os cidadãos sejam, efetivamente, capazes de exercer, com maior eficácia, a crítica relativamente discurso político e, sobretudo, relativamente aos que se propõem moralizar a política, apesar dos recorrentes “valores imorais” em que sustentam os seus discursos e projetos políticos(?).

O debate sobre a regionalização não pode ficar prisioneiro de interesses obscuros nem contribuir para aumentar a entropia do sistema político. As suas intenções são, em princípio, nobres, mas a realidade é dura e por vezes demasiado crua.

Hoje, muitos cidadãos têm uma perceção mais clara (não pelo facto de o fenómeno da corrupção ser novo, mas pela sua dimensão e constatação da dificuldade em travá-lo) da fragilidade dos mecanismos reguladores e da própria legislação para prevenir e controlar a corrupção. Tal como Sólon, que “Vê a cidade caminhar para o abismo a passo acelerado e procura travar a ruína que a ameaça. Movidos pela avareza, os chefes do povo enriquecem injustamente; não poupam os bens do Estado (…)”[4], também hoje existe uma tomada de consciência da proliferação de polvos que se alimentam e reproduzem democraticamente, fragilizando o sistema e criando condições para igual proliferação de escorpiões populistas, que, por fazer parte da sua natureza, não resistem à tentação de picar o povo!

O grande legislador Sólon era um profundo conhecedor da natureza humana, o que os legisladores de hoje não parecem ou não querem ou não podem ser, prisioneiros que estão dos que os levaram até ao poder. Diz Sólon, “A essência da riqueza, que é objeto de todas as aspirações humanas, é não ter medida nem fim. São precisamente os mais ricos de nós, exclama Sólon, quem demonstra esta asserção, pois aspiram continuamente a duplicara sua riqueza.”[5] E esta tentação é transversal à sociedade. Todos nos lembramos, por exemplo, da subtileza das preposições na lei da limitação de mandatos autárquicos[6], cuja relevância decorre de algo mais profundo e por isso a recupero, o apego ao poder e a dificuldade em travar a corrupção que, inevitavelmente, gera. Não porque os políticos tenham uma natureza pérfida, mas apenas porque são humanos.

Creio que o trabalho de casa, em matéria de regionalização, para responder à pertinente pergunta de K. Popper, está por fazer. A regionalização levada a cabo na Madeira e nos Açores consolidou-se num tempo diferente, facilitada pela respetiva condição insular. É preciso identificar cuidadosamente as áreas a priorizar e os mecanismos legislativos que favoreçam a transparência e consequentemente a confiança dos cidadãos. Investir na descentralização parece-me, neste momento, mais aconselhável, uma vez que se pretende fortalecer um Estado coeso e simultaneamente mais próximo. Um estado mais próximo é necessariamente um Estado mais transparente e esta tarefa é uma tarefa hercúlea num país prolixo em leis, que tem dificuldade em cumprir e em regular. Sem esse esforço não será fácil convencer os cidadãos.

Talvez seja oportuno perguntar quantos legisladores estarão dispostos a seguir o exemplo de Sólon. Escreve Werner Jaeger: “Jamais um estadista se ergueu tanto acima da mera vontade de poder como Sólon, que deixou o país e partiu em longa viagem, assim que deu por finda a sua obra legislativa. Não se cansa de salientar que não aproveitou a sua situação para enriquecer ou tornar-se um tirano, como em seu lugar teria feito a maioria, e preza-se de ser alcunhado de néscio por não ter aproveitado a ocasião.[7]

[1] TAPLIN, O. (1990), O Fogo Grego, RTC/Gradiva, p. 215.

[2] JAEGER, W. (1979), Paideia, Lisboa , Aster, pp. 166-67.

[3] Idem, ibidem, p. 167.

[4][4] Idem, ibidem, p. 166.

[5] Idem, ibidem, pp. 171-72.

[6] Ricardo Araújo Pereira, relata o episódio com o seu humor corrosivo: “onde se lê um «de» deve ler-se «da». Não é apenas a preposição «de» que deve estar na lei, é a contração da preposição «de» com o artigo definido «a». A mudança implica o seguinte: um presidente «de» câmara não pode candidatar-se depois de três mandatos, pelo que a carreira autárquica acaba aí; já um presidente «da» câmara não pode recandidatar-se à câmara específica a que preside. Mas pode recandidatar-se à do lado ou a outra qualquer. Há 23 letras no alfabeto, mas Cavaco indicou a única que podia beneficiar os dinossauros autárquicos.” [Reaccionário com dois Cês, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, 2ªed., pp 25-26].

[7]JAERGER, W., ibidem, p. 173.

REGIONALIZAÇÃO: A INSTITUIÇÃO DA DEMOCRACIA PORTUGUESA QUE FALTA?

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Após mais o debate, publicamos agora algumas das ideias partilhadas e posições debatidas sobre o tema REGIONALIZAÇÃO: A INSTITUIÇÃO DA DEMOCRACIA PORTUGUESA QUE FALTA?

O debate, moderado por Álvaro Vasconcelos, decorreu na Cooperativa a Árvore, no dia  23 de Abril e contou com a participação de Luís Braga Cruz (Antigo Ministro da Economia), Pedro Bacelar de Vasconcelos (Deputado e Docente Universitário), Isabel Valente (Investigadora integrada do Ceis20- Universidade de Coimbra) e Teresa Sá Marques (Professora Associada no Departamento de Geografia DA FLUP).

Para além dos textos do nosso painel de oradores que se seguem, podem encontrar aqui o vídeo com parte das intervenções do debate.

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Feminismo(s), assédio e a geração de 60 em França

Por Ana Rodrigues

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O movimento #MeToo, surgido no ano passado nos EUA, teve a virtualidade de abrir os olhos de muitos quantos escolhiam ignorar que abuso e assédio ocorrem sistémica e transversalmente nas sociedades actuais, e causou ondas de choque que estão ainda longe de abrandar. Ao fazê-lo, quebrando consequentemente com a espécie de omertà vigente, houve quem – aqui e ali – se tivesse deixado contaminar pela comoção e por alguma perturbação, tendo esta contaminação, de certo modo, toldado a verdadeira discussão. Porque, como está bom de ver, um movimento colectivo alavancado na comoção com facilidade desemboca no exagero e no excesso. Acabaram, portanto, por se dar alguns episódios mais discutíveis (como o caso do comediante Aziz Ansari, que se viu no meio de acusações de agressão sexual em virtude de uma experiência sexual pouco gratificante) a suscitarem prontamente acusações de caça às bruxas e de renovação do tradicional puritanismo americano.

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Maio de 68, 50 anos depois: onde para a crítica?

Por Gonçalo Marcelo

Maio de 68 não foi um só fenómeno, mas vários. Não pode ser interpretado como se se tivesse tratado de um evento exclusivamente parisiense, estudantil ou operário, embora Paris tenha sido o seu epicentro e nele confluíssem movimentos e reivindicações sociais, políticas e culturais diversas.

Porém, se algo havia de comum àqueles que saíram à rua, festejaram e se manifestaram, isso era, sem dúvida, a afirmação de uma atitude crítica. Até certo ponto, Maio de 68 foi o expoente máximo, posteriormente tornado simbólico, da atitude de toda uma geração que rejeitava o controlo social, a autoridade e uma moral vista como opressiva e arcaica. Não se pode compreender Maio de 68 a não ser no contexto dos movimentos estudantis dos anos 60, da influência do movimento hippie, do pacifismo, e da luta pelos direitos civis e de libertação sexual. Mas, na verdade, Maio foi muito mais. Porque o que Maio representa é a erupção violenta, (simbolicamente violenta) da crítica numa sociedade que, poucos meses antes, poderia parecer mais ou menos mergulhada na anomia.

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Maio de 68: a revolta ameaçada

Por Álvaro Vasconcelos 

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As grandes reivindicações de Maio de 68 – pela liberdade, contra o autoritarismo, pelo direito a ser ouvido e a participar nas decisões – continuam hoje de uma enorme atualidade. Ao contrário de 68, marcado por ideais progressistas, a contestação é hoje assumida por forças diametralmente opostas: pelas correntes progressistas do #Metoo e de defesa da hospitalidade; e pelas correntes populistas.

Paul Ricœur, então reitor da Universidade de Nanterre, onde a revolta começou, escreveu na revista Esprit, referindo-se aos acontecimentos de 68: “O Ocidente entrou numa revolução cultural (…) porque questiona a visão do mundo, a conceção de vida subjacente à economia, à política e ao conjunto das relações humanas. Uma revolução que ataca o capitalismo não apenas porque ele fracassa na realização da justiça social, mas também porque consegue seduzir os homens (…). Uma revolução que ataca o niilismo de uma sociedade que, tal como um tecido canceroso, não tem outro objetivo que não seja o crescimento.” Dificilmente se poderia explicar melhor o que foi Maio de 68 em França e os anos 60 de muitos Maios, das manifestações pelos direitos cívicos e contra a guerra do Vietname, nos Estados Unidos, à Primavera de Praga. Continuar a ler “Maio de 68: a revolta ameaçada”

Uma Maria que seja sua

Por Filipa M. Ribeiro

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A cultura não tem credo nem regime, não é de esquerda nem de direita, quer ser livre, inovadora e sustentável, diversa, emancipada, responsável, harmoniosa e socialmente responsável.

Conforme terá afirmado Louis-Ferdinand Céline, na sua Viagem ao Fim da Noite, o esquecimento é o único ‘pecado’ que não tem perdão. Porque é imperdoável esquecer o que homens e animais sofreram durante a II Guerra Mundial, da mesma forma que é igualmente inolvidável a experiência por que passaram os “hóspedes” dos campos de concentração nazi, as mulheres violadas nos Balcãs, os “apartados” da África do Sul e da Síria ou os torturados de Cuba e de Angola. A luta pela liberdade é a dignificação da aventura humana.  Nessa luta contra o esquecimento – que é uma outra forma de desigualdade e de boicote à participação pública – a literatura assume um papel fundamental e timoneiro na construção da nossa identidade presente e futura. Senão, vejamos:

“Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras” é a primeira frase de um dos melhores exemplos da excelente literatura portuguesa sobre feminismo: o Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro. Mas também sei de personagens do Eça que pensam e agem como o Jacinto de A cidade e as serras, que fazem caçadas e caminhadas pelos campos, empanturram-se das singelas criações e tecem loas ao viver saudável do campo e acham que a suprema beleza feminina está num corpo rechonchudo e anafado, encimado por rosto redondo e rosado. Que avaliam as mulheres pelos sintomas de fertilidade como se faz com os animais da quinta, ou a escrava da sanzala. E vêem a fidelidade e recatos femininos tão naturais e obrigatórios como a tendência masculina para o jogo, domjuanismo e desregramentos competitivos ou de prazer. Isto até chegarem as Três Marias.

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