O caminho do renascimento europeu

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O plano de reconstrução aprovado pelo Conselho Europeu, indispensável para enfrentarmos a recessão económica,  pode ser o ponto de partida para um renascimento democrático, da União e dos seus Estados, capaz de pesar na configuração de uma ordem multilateral ao serviço do bem viver da humanidade de que fala Edgar Morin. 

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A utopia como a melhor maneira de superar a crise do coronavírus

por Renato Janine Ribeiro, Filosofia, Universidade de São Paulo, Brasil

A crise do coronavírus mostra que a utopia é mais necessária do que nunca. Por utopia, quero dizer uma sociedade cujos objetivos principais serão a felicidade e a justiça (a última pode ser sinônimo de justiça social). Uma série de políticas públicas e valores sociais deve, portanto, ser redefinida. Antes de tudo, devemos limitar seriamente o consumismo. Ele é fortemente responsável pela destruição do meio ambiente. Recentemente, alguns estudos sérios sugeriram que, à medida que nós, humanos, elevamos nosso padrão de vida, também destruímos as fronteiras entre nós e a natureza, especialmente o mundo selvagem. A hipótese de que as atuais pandemias se tenham originado de humanos comendo morcegos em Wuhan é bastante simbólica: o habitat dos animais, incluindo os selvagens, teria sido ocupado e até devastado pelo homem. O equilíbrio entre a humanidade e a natureza foi comprometido. Em relação aos alimentos, sabemos que os grãos são mais saudáveis ​​que a carne e requerem menos água e outros nutrientes, mas nem por isso alteramos nossa dieta cotidiana para torná-la mais respeitosa da natureza.

Obviamente, esse modo de vida humano não pode durar. Como a Terra tem atualmente a maior população humana de sua história e esses bilhões de humanos comem e consomem mais do que nunca, o planeta está fortemente estressado: é possível que doenças de vários tipos constituam uma das reações de autodefesa do organismo vivo que chamamos de nosso planeta.

Mais de um pensador disse que o animal mais perigoso da Terra é o homem. Se a natureza nos ataca, pode se tratar de um contra-ataque, significando que a Terra estaria tentando salvar-se da agressão humana. Então, precisamos parar nossa guerra contra a natureza. Devemos considerar nosso planeta como nosso lar, não como um estoque de mercadorias de que podemos dispor à vontade. Ele existe para ser valorizado, não para ser pilhado.

Na verdade, não há grande distinção entre nosso comportamento em relação aos pobres e em relação à natureza. A abundância é alcançada ao custo de destruir o planeta e de despojar os humanos mais pobres. Certamente, não devemos considerar a humanidade homogênea. Desde milênios, ela tem sido fortemente hierárquica. Os ricos sempre sobrepujaram e espoliaram os que não têm. Nos últimos dois séculos e meio, desde as revoluções democráticas do final do século XVIII, nos últimos 70 anos, desde a Segunda Guerra Mundial, no entanto, houve um forte movimento em direção à igualdade. Mas esse fenômeno também implica que todo mundo tenta consumir tanto quanto os ricos. Devemos entender que isso é impossível. Portanto, devemos nos comprometer com uma série de mudanças importantes.

Antes de tudo, precisamos criar uma sociedade mais igualitária. Nosso passo inicial seria entender que precisamos de uma igualdade de oportunidades. Ainda que as diferenças de renda persistam, elas não devem decorrer da herança, mas da capacidade. Devemos também limitar as diferenças de renda e propriedade. Sempre que se tornam grandes demais, implicam muito desperdício. Por exemplo, se você tem duas ou três residências secundárias, irá gastar recursos naturais e sociais muito mais do que se tiver apenas uma casa e pernoitar em albergues ou hotéis quando viajar. Se o tráfego se torna monopólio de carros particulares, como acontece em muitos países, incluindo alguns pobres, a paisagem urbana é destruída e a poluição do ar aumenta. Um dos poucos pontos positivos das pandemias atuais é que, como as pessoas foram impedidas de sair de suas casas, a qualidade do ar melhorou.

Devemos entender que há estratégias ganha-ganha e perde-perde. Apostar em imensas residências sumptuárias, carros caros, comida de luxo significa que as vantagens serão poucas e para apenas alguns – enquanto, se entregarmos as ruas aos pedestres, como Paris tem feito nos últimos anos, a qualidade de vida melhorará. É um erro grave, pior, é uma mentira séria apresentar o progresso material como beneficiando a todos (ou a maioria das pessoas) ou mesmo como um jogo de soma zero, no qual alguns vencem na mesma proporção que outros perdem. Cientistas, filósofos, artistas têm mostrado que todos nos beneficiamos da boa qualidade da comida, do ar e do tráfego. Devemos lembrar Rousseau, que entendeu que mesmo aqueles que, à primeira vista, parecem ganhar com a exploração do homem pelo homem, acabam perdendo sua qualidade humana, ou humanitária (no original inglês: human – humane).

Há outras etapas a serem seguidas. Hoje é possível produzir comida suficiente para todos no mundo. A fome agora decorre de dificuldades no acesso a alimentos, não de escassez. O problema está na distribuição, não na produção. Deveríamos, assim, garantir que todos tenham acesso a alimentos. Depois de resolver o problema da quantidade (de alimentos), devemos resolver o problema de sua qualidade. Temos que tomar as medidas necessárias para melhorar a qualidade da nutrição. Gordura e açúcar devem ser fortemente reduzidos se quisermos ter populações mais saudáveis. Felizmente, nas últimas décadas, houve uma melhoria significativa no sabor e sabor dos chamados alimentos orgânicos.

A boa notícia é que, muito provavelmente, a população mundial está chegando a um limite, de modo que as demandas humanas por recursos naturais possam ser contidas no decorrer do próximo século. Mas, como a expectativa de vida está aumentando, é provável que a população ainda cresça por algum tempo. Poderíamos esperar ter de 10 a 20 bilhões de seres humanos vivendo ao mesmo tempo em nosso planeta até o século XXI. Portanto, é absolutamente necessário mudar o que extraímos do nosso planeta.

Isso significa que precisamos de uma mudança filosófica e espiritual que não será fácil de realizar. Se olharmos para as crises políticas e econômicas das últimas décadas, vemos que a maioria delas decorreu da escassez ou (talvez?) da incapacidade dos governos de satisfazer uma demanda crescente de produtos a serem consumidos. O consumismo se tornou um grande valor – talvez o mais importante em nossas sociedades. Devemos deter e reverter esse processo. A boa notícia é que agora temos os meios técnicos e econômicos para fazer isso. Por exemplo, afirmei acima que possuir várias residências secundárias não é uma coisa boa; bem, tanto a indústria de hospedagem como aplicativos como o AirBnb nos fornecem meios para acolher mais pessoas, mantendo o mesmo número de salas ou prédios. Um aplicativo como o Uber facilita a vida de muitas pessoas sem ter um carro. Elas podem empregar transporte público e recorrer apenas ocasionalmente a um carro que pagarão pelo uso exclusivo. (Evidentemente, tem que se pôr cobro ao caráter predatório desses aplicativos, bem como à precarização que acarretam das relações de trabalho). Mas, se meios técnicos e econômicos são necessários para mudar nosso modo de vida, meios nunca são suficientes para mudar fins. Nós devemos trabalhar nos nossos fins.

Fins significa, aqui, valores, ética, moralidade. Estamos nos acostumando aos quatro R’s da sustentabilidade: repensar, reduzir, reutilizar e reciclar. Decorrem de uma forte consciência de que devemos respeitar a natureza e outros seres humanos. Eu disse acima que as diferenças de renda e propriedade devem sofrer alguns limites éticos e aceitáveis. Todos devem ter direito a boa educação e saúde pública, acesso à água potável e ao ar, a um uso pelo menos moderado das comunicações, incluindo a Internet, e talvez, para resumir tudo, a uma renda básica universal. Esses direitos devem ser independentes da capacidade ou mesmo da disposição dos cidadãos de pagar por eles. Uma justificativa simples para isso será: se as pessoas perderem esses direitos ou bens, o custo social de tais perdas será muito maior do que se a sociedade entender que deve (e é claro que pode) pagar por eles. Sem água limpa, as pessoas ficam doentes. A sociedade arca com o custo do tratamento ou deixa que morram e assim se perde todo o investimento feito em suas vidas, às vezes por muitos anos.

Outro motivo para garantir esses direitos ou bens para todos é que as crianças não devem sofrer com a incapacidade ou a falta de vontade de seus pais de lhes dar o mínimo para uma vida decente. Na verdade, não devemos vincular o que acontece com uma criança ao que seus pais fizeram. Elas não têm mérito ou demérito pelas ações de seus genitores.

Podemos acrescentar que pessoas mais ricas geralmente exigem mais do que pessoas pobres de recursos naturais e sociais. Por último, mas não menos importante, vários pagamentos, como os descritos acima, consistem em investimentos, não em despesas: quanto melhor a educação, a saúde, o acesso à informação, a capacidade de se comunicar, maiores serão os benefícios para a sociedade. O Bolsa Família conseguiu reduzir drasticamente as doenças no Brasil. Nos países nórdicos, as longas licenças de maternidade e paternidade reduziram as doenças (inclusive as mentais), o crime e melhoraram o desempenho educacional. Uma discussão importante que deveríamos começar antes do final das pandemias atuais será até onde devemos ir no financiamento do novo estado de bem-estar social que definimos nos últimos parágrafos.

Quando mencionei uma utopia como a melhor saída para a crise da atual pandemia, quis dizer um Estado de Bem-Estar modernizado. É claro que a ciência e a tecnologia devem priorizar a luta contra novas pandemias. Nossa aliança com a natureza foi quebrada, devemos repará-la. Mas não podemos discutir ciência, tecnologia ou meio ambiente sem levar em consideração as relações sociais e humanas. Até agora, tenho insistido nos ingredientes da justiça social. Agora devo mudar para o que é necessário para a felicidade. Utopia significa, desde Thomas More: o que causa injustiça causa infelicidade. O que é necessário para tornar os humanos felizes? Eu me deteria em dois fatores. Primeiro de tudo, atividade física. Isso não deve ser confundido com esporte competitivo. O esporte profissional é o domínio de um número bastante pequeno de pessoas – no Brasil, algumas dezenas de milhares de pessoas. Os atletas frequentemente acabam sofrendo de sua atividade física excessiva, devido à necessidade de obter constantemente novos recordes. A atividade física, pelo contrário, é uma necessidade universal. Em vez de milhares de pessoas por país, é necessário para todos – no Brasil, mais de duzentos milhões de pessoas. Melhora a saúde, reduz doenças, aumenta o prazer.

A atividade cultural é a outra prioridade. Nos dois casos, atividade física e cultural, não estamos lidando com profissionais, mesmo que estes sejam necessários e mereçam ser admirados. Em vez disso, é necessário dar a todos uma boa saúde e uma boa quantidade de criatividade. Em nossa sociedade, o entretenimento substituiu a cultura, e isso deve ser discutido. Tanto o entretenimento quanto o esporte como espetáculo levam as pessoas a uma atitude passiva. Pelo contrário, atividades culturais e físicas tornam as pessoas mais ativas, o que implica que suas vidas serão mais significativas. Um dos problemas atuais no que tange à felicidade é que as pessoas mais velhas perdem o interesse em quase tudo. Se enfatizarmos sua capacidade de lidar com seus corpos e mentes, podemos mantê-las realmente ativas, vivas, despertas, por longos períodos de tempo. Isso pode torná-las mais felizes. Uma sociedade mais justa e feliz é possível; na verdade, é necessária.

Sobre a desigualdade social e o Novo Pacto Verde, por Leonardo Costa

A economia é apenas um meio/ferramenta criado por nós para nos servir. Não é uma maldição nem um destino traçado. Se não está a funcionar bem tem de ser corrigida (Yunus, 2020).
A crise é uma oportunidade para começar tudo de novo (Yunus, 2020), para implementar um Green New Deal. A economia, a vida material, tem de ser corrigida em duas vertentes: a ambiental e a social. As duas vertentes têm ligações entre si e devem constituir o quadro normativo da nova economia de mercado a implementar à escala global.
Olhando para a desigualdade de rendimentos e da riqueza, sejam quais forem as medidas utilizadas – a repartição do rendimento e da riqueza entre grupos de rendimento (ver World Inequality Database, https://wid.world/) ou a repartição do rendimento entre os fatores de produção capital e trabalho – a desigualdade, nos últimos 30 a 40 anos, tem vindo a aumentar nos países mais ricos da OCDE e também em países com economias emergentes, como a China, a Índia e a Indonésia. Neste panorama, o Brasil foi, de algum modo e há pouco tempo, uma exceção. Na União Europeia, não existem estatísticas que ilustrem a desigualdade ao nível europeu. Esta última, todavia, aproxima-se da dos Estados Unidos, por razões diversas.
Vários fatores explicam o aumento referido acima da desigualdade nos últimos 30 a 40 anos (Piketty, 2013; Gornick, 2014; Bourguignon, 2017). A globalização (com a deslocalização de indústrias) e um progresso tecnológico (4ª revolução industrial, mais recentemente) enviesado no que refere às qualificações são apontados como fatores principais. Em articulação com estes fatores, a financialização da economia, a desregulação dos mercados e a livre circulação de capitais e pessoas qualificadas justificam também esta evolução. Um baixo crescimento económico sem um acompanhamento de políticas redistributivas fortes, muito pelo contrário, também justificam a evolução a que se tem assistido da desigualdade. No que refere ao setor financeiro, os grupos de maior rendimento em sociedade estão bastante associados a este setor, o que não é um acaso.
A desigualdade excessiva tem custos. Há questões éticas associadas: a desigualdade excessiva é um mal. Com um baixo crescimento (que, por razões ambientais, pode ser inevitável), a posição de rendimento dos vários grupos de rendimento em sociedade é mais ditada pelas heranças do que pelo esforço ou mérito individual (Piketty, 2013). O capitalismo patrimonial inerente conduz ao desenvolvimento de uma sociedade de castas. A desigualdade também tem custos de eficiência e crescimento, pois reduz a procura e dá poder fazedor de preço às poucas mãos em que concentra os recursos em sociedade.
O que fazer, para corrigir a desigualdade e proteger o ambiente?
Os apoios ao investimento verde têm de ser não só verdes como socialmente inclusivos. Devem ser em grande parte dirigidos às PMEs. O pequeno [as PMEs] é bonito (Schumacher, 1973) e democrático.
É preciso também olhar para a governança das empresas, em geral, e apostar em modelos de governança socialmente mais inclusivos. As empresas não são só dos acionistas (ver os exemplos dos modelos de governança empresarial alemão e sueco, como alternativas ao modelo anglo-saxónico).
As missões dos bancos centrais têm de mudar, alargando-as a objetivos sociais e ambientais. O enquadramento institucional na governança dos mesmos também tem de mudar, no sentido de integrar outros atores para além dos oriundos do setor financeiro. O setor financeiro em si tem de ser reorganizado/regulado, no sentido de servir o bem comum.
O acesso à educação e às qualificações tem de ser generalizado e o sistema de impostos muito mais progressivo, em particular num contexto de baixo crescimento. É preciso encontrar formas de tributar o capital, nomeadamente em contextos de livre circulação de capitais. Com esse intuito, a harmonização fiscal transnacional e a existência de impostos supranacionais são alternativas possíveis.
Por fim, é preciso reinventar o Estado nos seus diferentes níveis (ONU, UE, Estados nacionais, regionais e locais). Precisamos de melhor Estado, mais bem organizado, menos burocrático, mais descentralizado (princípio da subsidariedade), mais debaixo do controlo democrático, mais participado pela sociedade civil, com uma maior capacidade de ter abordagens transversais e multinível às políticas públicas. Tudo isto se traduz numa preferência por abordagens ao desenvolvimento baseadas em territórios e lugares, em detrimento de políticas horizontais cegas, setor a setor, sem articulação nem rostos. Cada nível de Estado deve ser, o mais possível, financiado com recursos próprios (também a ONU, impostos mundiais?). Na União Europeia, a política regional pode assumir o papel da política industrial em falta.

Leonardo Costa
Forum Demos, 21 de julho de 2020

Referências
Bourguignon, F. (2017). World changes in inequality: an overview of facts, causes, consequences and policies. BIS Working Papers No 654, August. https://www.bis.org/publ/work654.pdf


Gornick, J. (2014, October 7). High and Rising Inequality: Causes and Consequences. Economic and Financial Committee (Second Committee), Keynote address by Professor Janet Gornick https://stonecenter.gc.cuny.edu/files/2014/10/gornick-high-and-rising-inequality-causes-and-consequences-un-address.pdf


Piketty, T. (2013). Capital in the Twenty-First Century. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press


Schumacher, E.F. (1973). Small is Beautiful: A Study of Economics as If People Mattered. New York: HarperCollins Publishers, 2010.


Yunus, M. (2020, Mai 5). La crise du coronavirus nous ouvre des horizons illimités pour tout reprendre à zéro. Le Monde https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/05/05/muhammad-yunus-la-crise-du-coronavirus-nous-ouvre-des-horizons-illimites-pour-tout-reprendre-a-zero_6038665_3232.html

Europa: um marco histórico?, por Pedro Bacelar de Vasconcelos*

1. Foi uma maratona longa, turbulenta, acintosa, mas ao cabo de cinco dias lá conseguiram o consenso indispensável para lavrar o comunicado da reunião do Conselho Europeu com suficiente ambiguidade para que cada um pudesse reclamar, no final, a sua fatia de sucesso.

Diga-se de passagem que sempre tem sido assim. De facto, avançando aos solavancos, o projeto europeu foi traçando o seu caminho até aqui, esclarecendo na prática subsequente as imprecisões proclamatórias solenemente assumidas. A mutualização da dívida, apesar de todos os travões e armadilhas congeminadas pelo grupo de países liderados pela Holanda, representa um feito inédito e constitui, sem dúvida, um marco histórico.

2. Contudo, sabemos bem que as divergências exibidas ao longo dessa atribulada reunião são mais profundas e antigas. São expressão da mesma desconfiança e dos mesmos egoísmos que impuseram as políticas de austeridade aos “preguiçosos” do Sul, a indiferença cínica perante as vagas de refugiados e imigrantes, a complacência obscena que aceita a impunidade das violações graves dos princípios democráticos, da separação dos poderes e do Estado de direito, na Hungria ou na Polónia. Testemunho também da espantosa ausência de um mínimo de solidariedade que tivesse garantido, enfim, uma resposta pronta ao pedido urgente de socorro da Itália, em fevereiro, quando o primeiro impacto da pandemia atingiu o continente europeu.

3. Esta já não é a Europa a que aderimos com entusiasmo em 1985, na expectativa de consolidar o regime democrático emergente, de blindar a proteção dos direitos fundamentais e romper definitivamente com o país “orgulhosamente só” – mesquinho, trauliteiro e paroquial – da era salazarista dos “pobrezinhos mas honrados!”. Este já não é o tempo cavaquista do “bom aluno” de mão estendida, ávido dos fundos europeus, pronto a substituir os tratores por carros todo-o-terreno e a mandar para as urtigas toda a frota pesqueira, no afã de se transformar rapidamente numa estância exótica de turismo e num espaço qualificado de prestação de serviços.

4. Era um passo inevitável e a hiena financeira dos Países Baixos estava bem consciente disso! Não aceitar a partilha de responsabilidades e condenar metade da Europa ao agravamento incomportável das respetivas “dívidas soberanas” significava precipitar a desagregação imediata de toda a construção europeia. Um risco logo sinalizado pelo eterno regulador: os mercados financeiros internacionais. Foi um “marco histórico”? Sim. Mais propriamente, o “canto do cisne”. Outra Europa há de renascer desta terra de ninguém.

*Deputado e professor de Direito Constitucional

Artigo publicado no Jornal de Notícias de 23 de junho de 2020

O renascimento da União Europeia

Merkel Macron ii 

A decisão do Conselho Europeu é uma muito boa notícia. É um salto necessário para uma Europa mais federal. Como disse o Presidente francês na Conferência de Imprensa conjunta com a Chanceler alemã : “ é preciso saudar um mecanismo que permite a emissão de dívida conjunta”. Ainda não é a refundação da União Europeia, a questão democrática continua para resolver, os populistas continuam à espreita e o egoísmo nacional tem os seus campeões, mas é um grande passo na boa direcção

Muitos louvores e merecidos vão agora para Merkel, mas creio que o ator decisivo para se alcançar este resultado foi o Presidente Macron e a coligação que criou com os países da Europa do Sul, em defesa da mutualização da dívida.

A carta assinada por nove Estados da União, em Março de 2020, entre os quais França, Itália, Espanha – três das quatro maiores economias do Euro, 39,8% do produto da UE – e Portugal, mostrou a determinação de um grupo importante de Estados membros de não aceitar a repetição do cenário da resposta europeia à recessão de 2008. Nessa carta os nove escreviam “Nós precisamos de um instrumento de dívida comum emitida por uma instituição europeia”. Foi o que aconteceu. 

Como escrevi na altura, essa proposta teve a oposição da Alemanha, o que permitiu então que  os holandeses vetassem no Eurogrupo (9 de Abril) o projeto de coronabonds, ou seja, que a dívida que está a ser contraída por todos, fosse garantida por todos. A constituição do grupo dos nove isolou  a Alemanha  e contribuiu para o resultado final. Foi a proposta dos nove que acabou por triunfar. 

A iniciativa franco-alemã de 18 de Maio, traçou um plano ambicioso para a recosntrução Europa, foi possível porque a Chanceler percebeu a gravidade da situação e também porque Schäuble já não era o ministro das finanças da Alemanha.  Os Estados egoístas ao perderem o apoio da Alemanha estavam condenados a perder. Os Estados do grupo de Visegrado, com Orban á cabeça, cantam vitória, mas nada indica que as referências ao Estado de direito na resolução do Conselho não venham a ser aplicadas.Os Estados “egoístas” , com a Holanda à cabeça, também cantam vitória porque vão diminuir significativamente  o seu contributo financeiro para a União, mas talvez venham a seguir o caminho do Reino Unido.

O debate que se segue é como garantir que os milhares de milhões que vão ser injetados na economia sejam utilizados para defender o Estado de Direito, os valores fundadores da União,  combater as desigualdades e os desafios sociais, sanitários e ecológicos atuais, ou seja no âmbito de um Novo Pacto Verde, Social e da Saúde. É preciso também garantir que nem um cêntimo desse plano seja despendido na especulação financeira e nas energias poluentes.

No Mundo de Trump, Putin, Bolsonaro  e Modi, o renascimento da União Europeia  é um sinal de esperança. 

Impacto da Pandemia nas Minorias, por Cláudia Coelho

A pandemia da Covid-19 veio evidenciar ainda mais as desigualdades sociais e em saúde que existem na nossa sociedade.

A batalha é comum: conseguir quebrar as cadeias de transmissão e reduzir os impactos nos serviços de saúde, na economia e na sociedade. Porém, o acesso à saúde e as condições laborais variam consoante os grupos.

Em Portugal existe uma grande heterogeneidade nas populações migrantes, quer em termos de origem, situação socioeconómica, quer em acesso aos serviços de saúde e sociais. Para estas pessoas que de uma forma geral têm empregos onde há contato com o público ou grupos de risco (empregados de limpeza, cabeleireiros, funcionários de lares, construção civil etc) acresce ainda a necessidade do uso de transporte públicos, sendo o risco de infeção muito maior.

A situação não é muito diferente em outros países. Michelle Bachelet, Alta Comissária dos Direitos Humanos da ONU, afirmou que descendentes de africanos e outras minorias étnicas sofrem mais com a pandemia em países como Brasil, França, Reino Unido e Estados Unidos devido à sua situação socioeconómica.

 No Estado de São Paulo, as estatísticas apontam para que os negros tenham mais 62% de chance de morrer de Covid 19 do que pessoas de cor branca. No Rio de Janeiro, as populações das favelas denunciam falta de água e sabão, medida preventiva básica à qual não têm acesso. Em finais de maio, havia 15 estados brasileiros que tinham menos mortes do que aquelas ocorridas nas favelas cariocas. Os números da Covid-19 em todo o estado do Rio de Janeiro são igualmente expressivos quando comparados com dados da criminalidade. Em apenas dois dias, o estado registrou mais mortes pela doença do que o número de assassinatos de qualquer mês de 2020.

Atualmente (dia 17 de julho) no Rio de Janeiro, segundo a plataforma “Painel Unificador COVID-19 Nas Favelas do Rio de Janeiro” ocorreram 751 óbitos e 5410 casos confirmados apenas nas favelas cariocas.

O Brasil é o segundo país com maior número de infeções e óbitos, sendo preocupante a desigualdade social existente que aumentará com as consequências da crise económica e o descrédito feito pelo presidente Jair Bolsonaro quanto à doença.

Nos Estados Unidos, o país mais afetado pela pandemia, a taxa de morte de afro-americanos é mais que o dobro da de outros grupos étnicos. É o caso da área metropolitana de Milwaukee, em Wisconsin que no começo de Abril, em 49 mortes tinha 72% que eram de cidadãos negros mesmo que a população afro-americana fosse de 26%.  Para os especialistas, esta disparidade nos números é fruto de desigualdades estruturais que fazem com que comunidades negras no país fiquem mais suscetíveis ao contágio e tenham mais chances de desenvolver formas graves da covid 19. Muitos americanos negros não têm acesso ao plano de saúde, acrescendo ainda mais o risco numa situação de emergência como esta. Nos EUA, ainda não há números oficiais relativos ao país inteiro, uma vez que muitos Estados e cidades não divulgam a etnia dos pacientes infetados ou que faleceram com o vírus.

No Reino Unido, há já estudos que comprovam que pessoas de minorias étnicas morreram em maior número do que compatriotas brancos. A Direção Geral da Saúde de Inglaterra reconheceu a discrepância, mas não apresentou nenhuma recomendação e o governo não ofereceu nenhuma alternativa. As populações de origem engra, asiática e de outras minorias enfrentam um risco maior no caso de uma segunda vaga. Segundo o Guardian, os grupos minoritários estão representados nas mortes de Covid-19, correspondendo a 27% do total. São estes que estão mais sujeitos a contágio por não terem opção de ficar em isolamento ou sem trabalho.

Nas palavras da alta-comissária, “A luta contra essa pandemia não pode ser vencida se os governos se recusarem a reconhecer as flagrantes desigualdades que o vírus está a trazer à tona”. O acesso desigual a saúde e oportunidades econômicas por parte das minorias  é um fator crucial nas altas taxas de doenças crônicas nessa população que, por sua vez, faz com que sejam mais vulneráveis aos efeitos da covid 19.

Debate “o mundo pós-Covid 19, um novo Pacto Global Verde, Social e da Saúde” – 20 de julho

Webinar, 20 de Julho, 18h30 Lisboa -14.30 São Paulo

Garantir que a prioridade da recuperação económica são os cidadãos

Forum Demos iniciou uma série de seminários, on-line, sobre um Novo Pacto Global Verde, Social e da Saúde, contribuindo assim para o debate essencial sobre o modelo de sociedade que queremos para o Mundo pós-Covid-19. O objectivo final deste exercício é publicar um relatório sintetizando as ideias essenciais desses seminários.

A pandemia e a recessão económica que a acompanha colocou na ordem do dia as políticas públicas de saúde, mas também a gravidade das desigualdades sociais, nomeadamente as resultantes da discriminação racial, ao mesmo tempo que a crise ecológica se aprofunda, as temperaturas médias não param de crescer e a biodiversidade é destruída.

O Green New Deal tem sido defendido por políticos progressistas como resposta à emergência ecológica e à necessidade de garantir a justiça social para todos, defendendo, ao mesmo tempo, sistemas de saúde públicos eficazes e universais. A pandemia obriga a repensar o âmbito, a ambição, os atores e as prioridades desses projetos. Obriga também a repensar o Multilateralismo num quadro de reemergência do Nacionalismo.

Neste [segundo] debate procuraremos compreender de que forma o Novo Pacto Global Verde deverá orientar as prioridades da recuperação económica, com o propósito de corrigir as desigualdades e promover a justiça social. As referidas prioridades passam por uma profunda alteração do modelo económico. Para esse efeito, o que é preciso mudar? Como garantir a condicionalidade social e ecológica dos apoios públicos a conceder ao investimento ? Como envolver os cidadãos na definição das prioridades da reconstrução económica’? É o modelo das convenções cidadãs o caminho? 

O debate será aberto por especialistas portugueses e brasileiros em questões sociais e económicas.

Todos os que queiram assistir, com possibilidade de colocar questões por chat aos participantes, deverão solicitar, via email (forumdemos.geral@gmail.com,) o link de entrada no zoom. O debate será também transmitido, em direto, pelo canal do Forum no YouTube.

O debate será moderado por:

Álvaro de Vasconcelos – fundador do Forum Demos;

Renato Janine Ribeiro – professor titular, ética e filosofia política, Universidade de São Paulo (USP);

O debate será introduzido por:

Eliane Trindade, Editora Prêmio Empreendedor Social, Coluna Rede Social, Folha de S. Paulo;

Leonardo Costa – docente e investigador da Universidade Católica Portuguesa;

Luiz Eduardo Bento de Mello Soares, antropólogo, cientista político e escritor;

Stefania Barca, investigadora doutorada do CES de Coimbra; integra o Conselho da campanha Green New Deal for Europe.

Artigos publicados no Forum sobre esta temática

https://forumdemosnet.wordpress.com/2020/05/24/a-global-health-and-green-new-deal/

https://forumdemosnet.wordpress.com/2020/06/02/que-futuro-tem-o-futuro-por-luisa-schmidt/

https://forumdemosnet.wordpress.com/2020/06/07/a-green-new-deal/

https://forumdemosnet.wordpress.com/2020/06/09/pouco-tempo-para-repensar-tudo-por-jorge-pinto/

Paulo Magalhães – O Mundo pós-Covid 19, Um novo pacto global verde, social e da saúde

Paulo Magalhães – Jurista e investigador do CIJE- Centro de Investigação Jurídico-Económica, da Universidade do Porto 

Na sua intervenção, Paulo Magalhães começa por destacar o problema estrutural do Direito do Ambiente, identificando-o como a ausência do reconhecimento jurídico do bem comum Global sem fronteiras – O Sistema Terrestre – e aponta como consequência principal desta inexistência legal, o facto de que as emissões negativas não serem compensadas nem incentivadas financeiramente. A questão é que retirar dióxido de carbono da atmosfera, é realizar um benefício num vazio legal, e que tem como consequência o facto de esse benefício também ser invisível para a economia. Isto leva a que só destruindo as floresta se possa criar riqueza.

 No seguimento deste exemplo, Paulo Magalhães realça uma outra problemática: Um vez que o sistema é indivisível e não tem fronteiras, fica a questão de a quem pertence o sistema terrestre? É imperativo o reconhecimento jurídico deste sistema, já que é o único capaz de suportar vida, para que se possa construir uma economia capaz de o preservar e recuperar de uma forma justa. A única solução que parece ser adequada, é de reconhecer o Sistema Terrestre como Património Comum da Humanidade.

Sobre este conceito de sistema terrestre, Paulo Magalhães salienta que a falta de relação entre o Direito do Ambiente e o comum global é ainda mais acentuada por se encarar que o objeto da governança global é um território e não um sistema. Juridicamente reconhecem-se bens intangíveis no Espaço, como órbitas ou frequências magnéticas que são geridos de forma comum, e nessa perspetiva Paulo Magalhães questiona o porquê de ser possível reconhecer a existência de Bens Naturais Intangíveis no Espaço, e não ser no Planeta Terra.

Finaliza a sua intervenção reforçando que é preciso haver uma mudança jurídica para mais tarde seja possível criar efeitos cascata nas vertentes económicas, políticas e sociais relacionadas com o Ambiente.

Leonardo Costa – O Mundo pós-Covid 19, Um novo pacto global verde, social e da saúde

Leonardo Costa – Docente e Investigador na Universidade Católica Portuguesa

Se a economia não favorece o bem comum, talvez seja a altura de criar um “new deal” ambiental global. É com essa premissa que Leonardo Costa começa a sua intervenção. Porém, salienta que há um problema político: como colocar a economia a serviço do coletivo? Havendo uma grande diversidade de grupos na sociedade com diferentes interesses o maior desafio está na concretização de todos esses interesses, sendo ainda maior a dificuldade de entender as suas reivindicações.

Assim sendo, Leonardo Costa é da opinião que é do ponto de vista político que se tem de afirmar esta ideia sobre o ambiente. Relembra que já existe um pacto global, mas que não é seguido salientado os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2030. Afirma ainda que um dos maiores desafios está em conseguir garantir que a economia não prejudique o ambiente nem gere ainda mais desigualdades sociais, não esquecendo de referir que a economia ecológica é um conceito antigo. Sobre a questão da segurança, Leonardo Costa defende que deveria ser realizada mais no sentido da prevenção e não da vigilância policial.

Termina a intervenção dizendo que uma adversidade a vencer para que o pacto ambiental tenha sucesso está em que se consiga com que a vontade política se sobreponha à economia.

Luísa Schmidt – O Mundo pós-Covid 19. Um novo pacto global verde, social e da saúde

Luísa Schmidt  – Socióloga investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa)  

Na sua intervenção, Luísa Schmidt reforça a necessidade da criação de um novo pacto global verde que tenha em conta a questão da desigualdade social. A crise ambiental global – cuja emergência apenas vem a ser posta em segundo plano devido ao Covid 19 – associada às consequências da desigualdade sociais ameaça a paz e a sobrevivência da humanidade. Tal como se observa com o caso da escassez de recursos naturais e perda de biodiversidade.

Luísa Schmidt defende que é necessária uma globalização mais justa e equilibrada. Debate-se a utilização de critérios humanos e sociais na regulamentação do comércio internacional, que exige o reforço do papel das instituições internacionais. Esta regulamentação é uma das componentes para um pacto mundial  que garanta a proteção do ambiente e da natureza. 

A força motivadora deste pacto deveria ser a humanidade no seu conjunto, o humanismo e o pragmatismo da sobrevivência coletiva, na opinião de Luísa Schmidt, que acredita ainda que a causa ambiental não é devidamente financiada e que existem dois desvios graves da economia que poderiam ser realocados para a reconstrução ambiental: os subsídios para combustíveis fósseis e os offshore. Finaliza a sua intervenção relembrando os novos movimentos cívicos, como o Fridays for Future, que utilizam as redes sociais e web para divulgação e organização, e que funcionam como pressão política. Mesmo em plena pandemia, estes movimentos não param e isso demonstra determinação no objetivo da mudança.