* Texto originalmente publicado no PÚBLICO, em 13 de julho de 2019.

O artigo de Fátima Bonifácio no Público é a afirmação brutal, rara entre nós, de que o racismo está bem vivo em Portugal. Não se trata de uma opinião, como a secção onde foi publicado poderia indiciar, mas de uma declaração de ódio [racial] que se insere numa tendência mais vasta de ressurgimento da extrema-direita que em Portugal busca expressão política. O artigo rompeu com o património político da democracia portuguesa que tornou ilegítimo o discurso racista, mas não pode ser o “ovo da serpente” que, como no resto da Europa, nos Estados Unidos e no Brasil, vemos vingar, emergindo, na cumplicidade e no medo, o nacionalismo identitário, ameaça séria às democracias liberais.
A sua evocação da superioridade da civilização ocidental inscreve-a nas correntes da supremacia branca, da extrema-direita. O artigo retoma, sem qualquer pudor, preconceitos contra ciganos e negros que séculos de intolerância, de medo pelo desconhecido e de violência colonial enraizaram na sociedade portuguesa. As suas afirmações racistas abrangem também os muçulmanos ao dizer, por ignorância, que impõem a prática da mutilação genital feminina.
Como em todos os discursos racistas, o artigo atribui aos ciganos e aos negros características essenciais, conferindo-lhes uma identidade única, excludente, construída sobre preconceitos e generalizações, que apresenta como prova da sua inferioridade. Repete os clichés sobre tribalismo e violência, tirados de livros do Estado Novo, e faz dos Direitos Humanos um privilégio da Cristandade, colocando-a não só em oposição frontal às posições da própria igreja que diz defender, como também aos das democracias liberais.
Relembremos que a Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu da tomada de consciência de que a tragédia e a barbárie da II Guerra Mundial tinham tido como causa o fascismo e a sua atitude de considerar inferiores (ao ponto de lhes negar o estatuto de pertença à Humanidade) todos aqueles que consideravam ser os “outros”, negando às suas culturas o contributo para a “civilização”. E faziam-no, é bom lembrar, em nome da alegada “superior” civilização ocidental.
Numa altura em que se multiplicam atos de discriminação racial por toda a Europa, a publicação em Portugal de um artigo tão obviamente racista não pode ser menosprezada. A luta contra o racismo tem de ser uma prioridade do governo e dos partidos políticos. Devem assim responder às preocupações das centenas de milhares de portugueses, com origem na imigração, a quem seria negado o direito de serem plenamente cidadãos da República por, alegadamente, não aspirarem à igualdade de direitos.
Qualquer sociedade decente deve providenciar uma igualdade de oportunidades aos seus cidadãos que seja real, e não meramente letra morta. Nesse contexto, comunidades que têm sido discriminadas historicamente devem ser objeto de especial atenção. E que a opinião contrária seja pretexto para um discurso racista diz muito sobre as intenções discriminatórias da autora.
Com o seu artigo, e na qualidade de professora universitária, FB procura conferir “legitimidade intelectual” aos racistas portugueses que se escondem no anonimato das redes sociais, temerosos do opróbrio que as suas posições acarretam.
É particularmente grave que declarações racistas, sem precedentes na imprensa no pós-25 de Abril, tenham sido publicadas por um jornal comprometido com os Direitos Humanos como o Público. Tal publicação facilita o processo de “banalização do racismo”, permitindo que ideias marginais, porque criminosas, se expandam e passem a ser consensuais em largos sectores da sociedade – a “banalidade do mal” de que falava Hannah Arendt. Só assim os nacionalistas identitários conseguem chegar ao poder pela via eleitoral e, uma vez eleitos, destruir as liberdades.
A liberdade de expressão não é argumento válido para defender a publicação de um artigo com conteúdo inequivocamente racista, pois o código penal português considera crime “Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional”. Para além de violar abertamente a linha editorial do jornal. Em suma: defender a posição que aqui assumimos não reside em qualquer preocupação com o suposto “politicamente correto”, mas com a defesa dos Direitos Humanos mais básicos.
É este o ponto a que chegamos: hoje, a defesa do caráter Universal dos Direitos humanos é o grande combate do nosso tempo, para que se evite uma situação semelhante à vivida na década de 1930 na Europa.
FB afirma que Nem uns nem outros [negros e ciganos] descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Ora, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [da Revolução Francesa] também proclama que os Homens nascem e são livres e iguais em direitos (…). O que, manifestamente, não descende da Revolução Francesa são os preconceitos dos racistas.
Álvaro Vasconcelos
Ana Benavente
Ana Drago
Irene Pimentel
João Teixeira Lopes
João Sebastião
Pedro Bacelar de Vasconcelos