Justo equilíbrio europeu, por Guilherme d’Oliveira Martins

Mario Telo (1950-2023) foi um incansável estudioso da Europa, natural de Cremona (Itália), doutorado por Florença, foi uma referência consagrada, em especial da Universidade Livre de Bruxelas e do Instituto de Estudos Europeus aí sedeado. Foi um grande amigo e uma presença assídua em Portugal, em especial nos anos noventa, nos Encontros Internacionais de Sintra da SEDES, ao lado de José Vidal-Beneyto, Adam Michnik, Jacek Wosniakowski, Paolo Flores d’Arcais, Michael Walzer, Timothy Garton Ash, Olivier Mongin, Marc Olivier Padis e Jean Claude Eslin. Era uma pessoa sempre disponível e não perdia ocasião para um bom debate e para procurar pistas novas de pensamento e ação…. Seguia com cuidado e inteligência as questões mundiais, designadamente as chinesas e considerava a Europa social como preocupação prioritária. Tinha uma cultura vastíssima, debatia a pintura, a filosofia, a literatura, o cinema, de Gramsci a Pier Paolo Pasolini. Cultivava, segundo o senso comum, o pessimismo da inteligência e o otimismo da vontade. O diálogo só valeria a pena se da troca de ideias resultasse algo de novo. Um dia, em Sintra, junto do Palácio da Vila, numa amena caminhada de Primavera, perdi-o de vista por um momento. Procurei-o intrigado, pelo súbito desaparecimento, e eis que o descubro, entre grande algazarra, com um grupo de crianças a jogar à bola, numa ruela antiga da vila, para grande gáudio de todos…. Pouco depois, agradeceu, despediu-se e retomámos a nossa caminhada, ele estava deveras satisfeito, e regressámos à preparação do sério debate do dia seguinte. Era assim Mario, amante sincero da vida e de uma genuína alegria.

Para ele era sempre fundamental compreender a História com pessoas e acontecimentos, para entender as incertezas. O paradigma de Vestefália (1648), centrado na soberania dos Estados, evoluíra e a Europa é agora um laboratório de novas formas de cooperação, com a coexistência de fatores e forças fragmentárias, de movimentos centrífugos e centrípetos. A Europa de hoje confronta-se com cinco crises, todas relevantes: económica, de legitimidade democrática, de migrações e refugiados, de tendências eurocéticas e a das ameaças terroristas. Os regionalismos foram emergindo, em três vagas: o regionalismo autoritário dos anos 30 e 40; o regionalismo multilateral do pós-guerra num mundo bipolar, com influência norte-americana e, por fim, um regionalismo anti hegemónico. Este último manifesta-se nos vários continentes de modo assimétrico, mas com influência significativa. Num tempo, como o nosso, de polaridades difusas, Mario Telo previa 4 cenários possíveis para o futuro: (a) um regionalismo económico liberal; (b) um reforço da politização nas relações comerciais, económicas e diplomáticas internacionais e inter-regionais; (c) um neo-mercantilismo comercial competitivo com um regionalismo instrumentalizado pelas políticas das potências; e (d) uma fragmentação anárquica, tribal e protecionista. Ora, entre a lógica da fragmentação protecionista e o regresso das potências, a Europa, mercê da coesão social, deverá constituir uma alternativa de multilateralismo e de equilíbrio global. Sendo o futuro sempre incerto e inseguro, a União Europeia deverá dispor de flexibilidade, de uma geometria variável, como o Brexit e as repercussões da Guerra da Ucrânia têm demonstrado. De facto, há muitos motivos, várias forças e razões que importa considerar, em lugar de qualquer determinismo. Deste modo, para Mario Telo, um justo equilíbrio de demarcação entre o protecionismo e as políticas de potência torna-se necessário num contexto europeu baseado na democracia supranacional e na subsidiariedade. O panorama da guerra a leste obriga a mais e melhor Europa.

Guilherme d’Oliveira Martins Nasceu em Lisboa, 23 de Setembro de 1952. É Administrador Executivo da Fundação Calouste Gulbenkian (desde 16 de Novembro de 2015)

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17/Março: Álvaro Vasconcelos vai apresentar as «Memórias em Tempos de Amnésia» (I) na Livraria Travessa, em São Paulo

No próximo dia 17 de março, Álvaro Vasconcelos vai estar na Livraria Travessa, em São Paulo, Brasil, para apresentar as «Memórias em Tempos de Amnésia. Uma campa em África», publicado pelas Ed. Afrontamento.

O Forum Demos associa-se a esta iniciativa pública. A apresentação será feita por Renato Janine Ribeiro, Professor de Ética da USP e Presidente do Conselho Brasileiro para a Promoção da Ciência, e também por Rita Chaves, Professora de Estudos Africanos da USP, com a moderação de Celso Lafer, membro da Academia Brasileira de Letras .

Apareçam!


Quando: 17 de Março, 19h
Onde: Livraria Travessa, Rua de Pinheiros 513


«Quatro D pelo hino nacional: debater, descolonizar, desracializar, democratizar», por André Barata e Mamadou Ba

O presente artigo foi publicado no Jornal Económico, em 22 de fevereiro, às 00h10

O Abril que falta cumprir não tem no hino uma letra à altura. O elogio à gesta imperial é uma legitimação das consequências do colonialismo donde emana as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade.

O debate sobre a letra do hino nacional, relançado, com visibilidade, pelo músico Dino D’Santiago no passado mês de Janeiro (depois de António Alçada Baptista em 1997 e um de nós em 2020), e que fez ressoar o apoio, na imprensa nacional, de António Brito GuterresDaniel OliveiraMiguel Esteves Cardoso, não deve perder-se na voragem da actualidade, assunto relevante um dia, esquecido no seguinte.

O debate público tem de ter a seriedade da insistência quando está em causa um símbolo, a que é devido respeito, legalmente protegido, e que, não apenas por isso, deveria convocar um consenso alargado entre os cidadãos.

Simplesmente não é esse o caso. Por duas razões cada vez mais prementes. Porque, por um lado, a letra do hino faz silêncio sobre as vilanias da história colonial – nomeadamente a Escravatura –, os valores da Constituição da República Portuguesa (CRP) e os acontecimentos que estiveram na sua origem e a história de quase meio século que o país leva desde então. Nenhum heroísmo ou valor, cantados em “A Portuguesa”, é dedicado à luta pela democracia contra a ditadura, à luta contra o colonialismo e o racismo, à liberdade contra a opressão.

Por não cantar os pressupostos da 3.ª República, regime de estado direito assente na soberania popular, “A Portuguesa” não cumpre democraticamente com o seu propósito. É um símbolo nacional que irradia pouco o país que queremos ser de acordo com a Constituição. O Abril que falta cumprir não tem no hino uma letra à altura. O elogio à gesta imperial é uma legitimação das consequências do colonialismo donde emana as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade.

Na verdade – e estas são outras razões também por si só mais do que bastantes – pode dizer-se com fundamento que “A Portuguesa” canta valores que contradizem, pelo menos tacitamente, a Constituição. A letra do hino é incompatível com as menções no Artº. 7 da CRP à “solução pacífica dos conflitos internacionais” e à “abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos”.

Hino superlativamente bélico escrito em reacção à humilhante conformação do Rei D. Carlos I ao ultimato britânico, que impôs a segmentação e redução do império colonial português (pelo corte da continuidade da África austral, entre Angola e Moçambique, de maneira a garantir um corredor até à África do Sul ao império colonial britânico), “A Portuguesa” associou à vontade do fim da Monarquia e de implantação da República o repto “Levantai hoje de novo. O esplendor de Portugal!”.

Inegavelmente, esse esplendor caído é o do império colonial. Para alguns saudosistas o esplendor retomado é o do império colonial de novo, como atesta o debate sobre os brasões na Praça do Império em Lisboa, por exemplo. Restaurar o esplendor é sempre restaurar uma perspectiva simbolicamente expansionista e colonialista, “sobre a terra, sobre o mar”, “que há-de guiar-te à vitória”, reconhecida pelos outros através da sua derrota e subjugação, presumivelmente muito além do território nacional. Não é coincidência que nas décadas em que este país persistia, orgulhosamente só, numa guerra colonial “A Portuguesa” era cantada obrigatoriamente nas escolas.

Em suma, além do tom bélico, na verdade comum a hinos de outros países, há uma dupla tarefa cívica que deveria interpelar-nos cidadãos portugueses: descolonizar e democratizar o hino nacional. E ligar as duas através do debate é também uma forma de ligar gerações de portugueses: os que lutaram por Abril e os que lutam hoje contra aspectos segregadores estruturais que subsistem e até reemergem na sociedade portuguesa, nomeadamente o racismo. Estas são razões incontornáveis para mudar versos com 133 anos de um hino nacional com 112 anos e que atravessou três repúblicas.

Nos 50 anos de Abril que se avizinham, continuando a cumprir Abril, por uma sociedade livre, plural, inclusiva, haveria que fazer este debate. A Presidência da República ou a Assembleia da República (no quadro das competências que lhes cabem) podiam tomar a iniciativa. Se não, os próprios cidadãos através de uma petição pública. Nenhum símbolo, por mais importante que seja, deve escapar a mudanças que aspiram tornar as sociedades e a vida coletiva melhores. Os hinos não têm de mudar apenas quando mudam os regimes.

André Barata, Filósofo, Universidade da Beira Interior 

Mamadou Ba, Militante antirracista decolonial 

24 JAN, 18h, no Centro Nacional de Cultura: Conversa à volta do livro «Memórias em Tempo de Amnésia», de Álvaro Vasconcelos

«O livro trata, sobretudo, do que era proibido lembrar, do que era subversivo memorizar. Os crimes deviam ser esquecidos para todo o sempre. Podia-se ser preso e torturado por ter visto o crime que nenhum registo podia guardar e ficava, apesar de todo o esforço dos fazedores de silêncio, na memória dos homens. Nos contadores de histórias, nos que pela tradição oral preservam as lembranças dos seus antepassados. Mas as dificuldades do presente funcionam como uma droga que apaga a memória e propaga como um vírus a amnésia coletiva, tornando a sociedade mais frágil perante ameaçadas já conhecidas pela humanidade. Uma Campa em África, o primeiro volume, aborda os caminhos que me levaram, ainda menino, para África. Aí vivi entre 1953 e 1967, primeiro em Moçambique, depois na África do Sul. Pretende ser um testemunho da viagem às trevas que era viver em África no tempo em que o racismo era política de Estado, quer fosse na mentira lusotropical ou no horror do apartheid. É um testemunho em nome do dever de memória, contra a política do esquecimento e o revisionismo histórico sobre o crime contra a humanidade que foi o colonialismo» 

Autor do Livro: Álvaro Vasconcelos

Oradores convidados:
Sheila Khan (socióloga)
Valter Hugo Mãe (escritor)

Moderação: Guilherme d’Oliveira Martins

Dia 24 de janeiro de 2023 (terça-feira), às 18h00
no Centro Nacional de Cultura – Galeria Fernando Pessoa
Morada: Largo do Picadeiro, n.º 10, 1º . 1200-445 Lisboa
(porta do lado esquerdo da esplanada do Café No Chiado)
Mapa de localização | GPS: 38.709292,-9.14199
Entrada livre

FONTE https://www.cnc.pt/conversas-a-volta-do-livro-memorias-em-tempo-de-amnesia/

Brasil: neofascismo digital e golpe militar

 

A tentativa de golpe de 8 de janeiro é, depois do assalto ao Capitólio, mais um alerta das ameaças que a democracia enfrenta na sua luta existencial contra a extrema-direita. A democracia está em risco e o combate é internacional, tanto mais que as redes do neofascismo digital são globais. Lula tem hoje a duplo desafio de impedir que o golpe tenha sucesso e de assumir a sua dimensão internacional.

A 8 de janeiro convergiram duas correntes golpistas e antidemocráticas: a clássica, do autoritarismo militar brasileiro, e a nova, a do neofascismo digital.

Desde a campanha pelo impeachment de Dilma, cresceu nas redes sociais uma corrente fascista, que partilhou entre si, sobretudo em redes como o WhatsApp ou Facebook, notícias falsas, conspirativas, criando uma comunidade virtual ultraconservadora, ligada à ideologia da supremacia branca, do machismo, do culto da violência e das armas, numa mistura entre práticas de correntes evangélicas e as milícias fascistas italianas.

O neofascismo digital é um movimento político próprio da sociedade em rede. Foi ele que levou ao poder Bolsonaro, com a cumplicidade dos que se recusaram a ver a ameaça que representava para a democracia.

A 8 de janeiro convergiram duas correntes golpistas e antidemocráticas: a clássica, do autoritarismo militar brasileiro, e a nova, a do neofascismo digital.

No poder, Bolsonaro promoveu a infiltração das estruturas do Estado pelos grupos do neofascismo digital, incluindo no seio das Força Armadas. Foram esses grupos que lançaram a campanha de contestação à fiabilidade do processo eleitoral brasileiro, que não impediu a vitória de Lula. 

Só um golpe de Estado poderia reverter o resultado eleitoral, o que obrigou à saída do mundo virtual.

Desde a campanha pelo impeachment de Dilma, cresceu nas redes sociais uma corrente fascista, que partilhou entre si, sobretudo em redes como o WhatsApp ou Facebook, notícias falsas, conspirativas, criando uma comunidade virtual ultraconservadora, ligada à ideologia da supremacia branca, do machismo, do culto da violência e das armas, numa mistura entre práticas de correntes evangélicas e as milícias fascistas italianas.

As Forças Armadas brasileiras são a segunda componente deste golpe. Aceitaram a democracia a troco de uma amnistia, o que lhes deu um sentimento de impunidade. Nenhum dos governos democráticos foi capaz de alterar a sua convicção de que são um poder paralelo. As tentativas de internacionalização e de desconstrução da doutrina de segurança nacional, segundo a qual o inimigo é sobretudo interno, foram tímidas e fracassaram. O General Heleno, comandante da operação de paz das Nações Unidas no Haiti, continuou a elogiar a ditadura militar e era o responsável pelo gabinete de segurança de Bolsonaro. A “pacificação das favelas do Rio” pelo exército manteve o inimigo interno na agenda. Com Bolsonaro, milhares de militares na reserva assumiram postos nas estruturas do Estado. 

 Os assaltantes esperavam que, perante a fraqueza da resposta do executivo, o caos de Brasília se propagasse a outras cidades. Em São Paulo, a estratégica Avenida 23 de Maio estava bloqueada pelos bolsonaristas. Perante o caos e a impotência, os militares seriam chamados ou interviriam para repor a ordem. A consequência poderia ser uma junta militar, sem Bolsonaro. Esta tese é partilhada por analistas brasileiros, como o filósofo Renato Janine Ribeiro ou o jurista Pedro Dallari, que foi Presidente da Comissão da Verdade. 

Perante o caos, alguns defenderam que Lula deveria fazer um discurso conciliador, “compreender a ira popular que se manifestava “, para unir o povo brasileiro. Lula e o poder judiciário brasileiro fizeram exatamente o contrário. Classificaram os assaltantes de fascistas e golpistas. Foi decretada a intervenção do poder central no Distrito Federal, retirando competências ao Governador. O resultado foi imediato: as sedes dos 3 poderes foram evacuadas, com muitos golpistas detidos; os acampamentos à frente dos quartéis foram desmantelados, e muitos dos contestatários foram alvo de mandados emitidos pelo Juiz do Supremo Tribunal, Alexandre de Moraes.

A situação atual é bem diferente da que permitiu o sucesso do golpe de 1964. Hoje, Lula tem apoio nos sectores chaves do poder no Brasil, nos congressistas, no poder judiciário, nos governadores dos Estados, nas organizações patronais e nos média tradicionais – a TV Globo classificou os assaltantes como terroristas, quando em 1964 a grande imprensa apoiava o golpe. 

O envolvimento de militares no ativo no golpe está comprovado. Não só protegeram os que acampavam à frente dos quarteis, como o Batalhão da Guarda Presidencial do exército facilitou a ação dos assaltantes do Palácio do Planalto. Em entrevista à Folha de São Paulo, Lula afirmou que recusou decretar uma operação militar, proposta pelo Ministro da Defesa, de “Garantia da Lei e da Ordem” para afastar veleidades de “algum general assumir o governo”.

Lula é um grande político, com capacidade de forjar grandes coligações, e optou pelo diálogo com as Forças Armadas, procurando que afastem os elementos diretamente comprometidos com o golpe. Há quem defenda que este é o momento, quando Lula goza de tanto apoio político, para reformar as Forças Armadas, colocando-as claramente sob dependência política. Lula parece hesitar, o que indica que não está ainda seguro da reação dos militares. 

Lula encontrou pronto apoio nas democracias liberais, em Biden e nos líderes europeus. Os Estados Unidos. que em 1964 tinham participado no golpe, fazem hoje da luta contra a extrema-direita e o fascismo digital uma questão central da sua política internacional. O fascismo digital não tem fronteiras e é conhecido o apoio que Trump e Steve Bannon dão ao bolsonarismo. Lula irá continuar a confrontar-se com a ameaça do fascismo digital e das suas relações obscuras com as Forças Armadas. Paradoxalmente, talvez seja mais fácil resolver a questão militar. 

A defesa internacional da democracia irá marcar, apesar da relutância brasileira, a agenda da política externa do terceiro mandato. Contamos com Lula e com a sociedade civil brasileira para esse combate.

Pelé, mais que um futebolista. Um homem como todos, ídolo de um povo soberano – Guilherme Giuliano Nicolau

Guilherme Giuliano Nicolau

Cientista Político

Nos últimos dias, estamos de luto pela morte do nosso ‘rei etíope’. Nosso rei que primeiro conquistou o Brasil e depois conquistou o mundo. Todos falam de Pelé. Entre eles, muitos estão cobrando o Rei por ser alienado politicamente, ou por decisões da vida pessoal de Edson Arantes do Nascimento.

Discordo em parte, não posso dizer que é possível ver dessa forma, mas eu peço para trocarmos as nossas lentes de ver o mundo por óculos escuros. Talvez estejamos ofuscados por tanta claridade. 

Defenderei Pelé, mas não é porque sou brasileiro. Antes disso, sou humano e internacionalista. Confesso também que me identifico muito mais com outros ídolos do futebol como Maradona (outro ídolo repleta de contradições). Venho falar sobre ser humano.

Parece-me injusto cobrar tanto de Pelé desconsiderando o seu contexto. Ele fez coisas fascinantes no futebol e é isso que ele pôde fazer, assim como nós nos destacamos em uma ou outra coisa.

O Brasil é um país extremamente desigual, com pobreza extrema, dificuldade de acesso à educação, com alta taxa de analfabetismo comparado aos seus vizinhos, em uma região pobre do mundo, um país extremamente religioso, com violência extrema e intolerância generalizada.

Se ainda é assim hoje, imagina nos anos 1960? A escravidão oficialmente havia acabado em 1888, não muito longe.

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O Brasil do nosso contentamento

Por: Luis Faro Ramos

No dia 1 de janeiro tomaram posse em Brasília o Presidente e o Vice-Presidente da República Federativa do Brasil.

Perante mais de duas dezenas de delegações estrangeiras, entre as quais a de Portugal, liderada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Foi um momento muito aguardado e de elevado simbolismo. Representa o início de um novo ciclo político, que interessa ao Mundo e particularmente a Portugal. 

Porque, embora o relacionamento entre o nosso país e o Brasil vá muito além dos ciclos políticos, não lhes é indiferente.

O início de cada ano é tempo de fazermos balanços do que passou e prepararmos o que está para vir. Cheguei a Brasília em dezembro de 2020. Se 2021 foi um ano marcado pela pandemia, em que não parámos, tendo apenas conseguido fazer o possível dentro das circunstâncias, 2022 foi bem diferente. 

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O Regresso do Brasil

 

A cerimónia de passagem da faixa presidencial foi um momento de grande emoção. Uma afro-brasileira, descendente de escravos, ter colocado a faixa no Presidente Lula ficará para a História.

A tomada de posse de Lula é um acontecimento de repercussões globais na afirmação da vitalidade da democracia liberal, do triunfo dos ideais do iluminismo, da justiça social , da defesa do ambiente e da diversidade. Lula é uma esperança para o Brasil e o Mundo.

Lula é uma esperança para o Brasil e para o Mundo

A 30 de outubro, Lula foi eleito Presidente , com 50,9% dos votos. Bolsonaro contestou o resultado das eleições, seguindo o exemplo do seu mentor Trump. Assim que os resultados foram conhecidos, para travar qualquer tentativa de golpe, os Presidentes americano e francês e o Chanceler alemão felicitaram o presidente eleito. Biden declarou imediatamente as eleições “livres, justas e credíveis” e Macron realçou mesmo que a eleição de Lula abria “uma nova página na História do Brasil “.

O dilema internacional do Brasil será o de sempre: como conciliar a sua pertença ao mundo das democracias liberais, o chamado Ocidente, sendo simultaneamente um ator importante do Sul global, membro dos Brics (com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul). Esta dupla identidade poderá ser um trunfo, desde que assumida com equilíbrio – algo que é mais difícil agora que a Rússia de Putin invadiu a Ucrânia e continua a sua brutal guerra de conquista. 

Após ter condenado a invasão russa numa primeira fase, Lula passou a fazer um discurso mais ambíguo, embora não alinhado com as posições de setores do PT que ainda têm uma visão bipolar do mundo, marcada pelo antiamericanismo. O Brasil será chamado, pelo menos nas Nações Unidas, a tomar posição. Se não se espera que alinhe a sua posição pela dos Estados Unidos e da União Europeia, não apoiar as resoluções condenando a violação pela Rússia da Carta, de que é um dos primeiros subscritores, seria afastar-se da sua tradição multilateralista e do campo das democracias liberais – numa altura em que é reconhecido como um dos seus.

Alguns conselheiros de Lula consideram que o Brasil poderia ter um papel de mediador na guerra da Ucrânia, uma ideia que não creio que possa ter qualquer sucesso. Não é no campo da segurança internacional que o Brasil é um ator de peso, algo que Lula deve saber. 

Já no campo ambiental, o Brasil pode ser um ator muito relevante. Daí, aliás, que Lula tenha participado na Cimeira do Clima, apenas quinze dias depois de ser eleito. O entusiasmo com que Lula foi recebido na Cimeira é indicativa não só do prestígio de Lula, mas do domínio onde a ação do Brasil é considerada vital: a proteção da biodiversidade e a luta contra as alterações climáticas. É no ambiente que o Brasil é uma superpotência, é na questão climática que a sua posição é decisiva, sobretudo pela importância da Amazónia. A indicação de Marina Silva para Ministra do ambiente é a confirmação de que o desmatamento da Amazónia será revertida.

É no ambiente que o Brasil é uma superpotência, é na questão climática que a sua posição é decisiva, sobretudo pela importância da Amazónia. A indicação de Marina Silva para Ministra do ambiente é a confirmação de que o desmatamento da Amazónia será revertida.

O Brasil poderá ter um papel decisivo na construção do consenso entre os países do chamado Sul global e os membros da OCDE, fundamental para a saída do impasse em que se encontram as conferências do clima e para o cumprimento dos acordos de Paris. 

A União Europeia deveria tirar partido do efeito Lula para concluir o acordo UE-Mercosul. Como defende o manifesto promovido pela Casa Comum da Humanidade e pelo Fórum Demos, o acordo deveria integrar um anexo com uma nova orientação estratégica, fazendo-o evoluir de uma relação essencialmente comercial para uma parceria que coloque o objetivo do clima estável no centro das relações birregionais, no que deveria ser um passo para o clima estável ser considerado património comum da Humanidade.

Em relação à China, o Brasil irá afastar-se da política americana, procurando ter as melhores relações possíveis com o seu principal parceiro comercial. 

O Brasil continuará certamente a defender um multilateralismo mais inclusivo, que tenha em consideração o mundo policêntrico, pós-hegemónico, em que vivemos, no que poderá convergir com a visão da autonomia estratégica da Europa defendida pela França, o que não significa assumir uma visão ideológica da multipolaridade. 

O Brasil não tem a sua ação internacional, onde ela pode ser significativa, entravada pelos Estados Unidos ou a União Europeia. Pelo contrário, será um ator bem-vindo, tanto no ambiente como na estabilização da situação económica e política na América do Sul (a normalização das relações entre os Estados Unidos e a Venezuela é uma boa notícia para a diplomacia brasileira). Certamente que será saudada o relançamento do Mercosul e da   Organização do Tratado de Cooperação Amazônica.

A presidência brasileira do G20, em 2024, poderá ser uma ocasião para dar um novo alento ao multilateralismo e fazer do combate à pobreza uma prioridade mundial.

A presidência brasileira do G20, em 2024, poderá ser uma ocasião para dar um novo alento ao multilateralismo e fazer do combate à pobreza uma prioridade mundial.

A coroar a presidência Lula, em 2026, quando Guterres for substituído por um latino-americano, porque não, enfim, uma Secretária-Geral, quem sabe uma brasileira.

É fundamental sublinhar que a consolidação da democracia no Brasil terá um efeito mundial, que, por si só, irá expandir a influência do país, que voltará a ser um exemplo a seguir – tanto mais que o sucesso do governo brasileiro depende da sua capacidade de demonstrar que é possível combater a pobreza e recusar os imperativos das políticas neoliberais.

Finalmente, o Brasil terá um papel decisivo, com repercussão mundial, no combate à extrema-direita e ao obscurantismo e na defesa dos direitos humanos. Por isso a vitória de Lula é saudada, como uma vitória do iluminismo contra a barbárie, por cientistas e homens de cultura do mundo inteiro. 

O destino comum luso-brasileiro, para além da saudade, poderá então finalmente começar a cumprir-se .

A diplomacia cultural do Brasil acompanhará a da sua sociedade civil, cuja luta pela igualdade, contra o racismo, tem um enorme eco na Europa. Já em 2023 teremos em Portugal um bom exemplo disso mesmo com a entrega do prémio Camões de 2019 a Chico Buarque, que Bolsonaro tinha bloqueado. 

O destino comum luso-brasileiro, para além da saudade, poderá então finalmente começar a cumprir-se.

Fundamentalismo sectário impede o fortalecimento da economia da sociobiodiversidade, por Ricardo Abramovay

Este artigo foi publicado anteriormente na revista Estudos Avançados.

O autor é Professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP. Autor de “Amazônia: Por uma Economia do Conhecimento da Natureza” (Ed. Elefante/Terceira Via, São Paulo).