Investigador CEIS20 Universidade de Coimbra; Diretor IEEI (1980-2007), Diretor Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia(2007-2012), Professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
A morte de Bassma Kdmani é uma enorme tristeza. Perco uma grande amiga, com quem muito colaborei ao longo de 40 anos. Ela gostava de lembrar que a sua primeira intervenção numa conferência tinha sido no início dos anos 80, num seminário do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais (IEEI) sobre as relações euro-mediterrâneas, tema, aliás, que nos uniria nas décadas seguintes. Bassma era então jovem investigadora do Instituto Francês de Relações Internacionais, país que acolhera seus pais, exilados sírios. Nos anos seguintes, Bassma Kodmani afirmou-se como uma das mais brilhantes analistas do Médio Oriente e tive o privilégio de poder contar com o seu saber, quer no IEEI, quer no Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia. Em 2011, assumiu plenamente a sua origem síria, mobilizando-se no apoio à luta pela liberdade contra a repressão de Assad e veio a assumir o papel de porta-voz do Conselho Nacional Sírio. Vivi de perto as suas angústias, a sua recusa do sectarismo, as suas esperanças num futuro democrático para o país dos seus antepassados. Nesse período ela dirigia a Arab ReformIniciative (ARI), que tinha fundado. Eu era investigador associado, a seu convite.
A melhor forma de homenagearmos Bassma é continuarmos a apoiar todos aqueles que nos países árabes lutam pela democracia e a exigir que a União Europeia abandone a política de apoio às ditaduras do Norte de África, em nome de uma suposta segurança que estas trariam. Como dizia Bassma, a Europa não devia ter medo da democracia, pois só ela pode trazer a estabilidade e o desenvolvendo sustentados, em liberdade.
Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra, atento às lições da Primeira.Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo.
Já lá vão 12 longuíssimos meses; a guerra, com a sua sede de morte, destruição e milhões de refugiados, voltou na sua forma mais brutal. Com a invasão imperial de um país soberano, Putin não só rompeu com a Carta das Nações Unidas como põe em causa a ordem europeia de paz, construída no fim da hecatombe que tinha sido a primeira metade do século XX.
No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI.
No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI.
Em plena Segunda Guerra Mundial, homens de boa vontade, conscientes de tudo o que não se tinha feito no período entre as duas guerras, ousaram pensar a construção de um sistema de paz democrática na Europa – construir uma Europa pacífica, onde pela cooperação e a interdependência económica a guerra fosse impensável. Este sistema concretizou-se na integração europeia e, com ela, na reconciliação franco-alemã. Foi –ainda é – uma construção lenta e difícil, cheia de imperfeições como todas as construções humanas, mas única num mundo ainda regido pela política de potência, temperada pelos princípios da ordem internacional. Primeiro, apenas na Europa ocidental, democrática, sem as ditaduras da Europa do Sul.
Na “Europa raptada”, das ditaduras, de que fala Kundera, o exército soviético invadiu a Hungria, em 1956, e a Checoslováquia, em 1968.
Após a queda do Muro de Berlim, a paz democrática estendeu-se para o centro e leste europeu. No início dos anos 1990, visitei Moscovo e a aspiração de muitos dos que rodeavam Ieltsin era fazer parte desse grande projeto europeu. Havia mesmo quem falasse da redução do arsenal nuclear russo ao nível da França e do Reino Unido, para que a Rússia fosse aceite nas comunidades europeias.
Foi também nos anos 1990, na antiga Jugoslávia, que despertaram os monstros adormecidos da Europa – um sério aviso de que o nacionalismo extremo identitário não tinha ficado sepultado nos escombros da Segunda Guerra. Mas isso não abalou a convicção no projeto europeu de paz. Os países dos Balcãs, passada a guerra, fizeram seu o sonho da integração europeia.
A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.
A chegada ao poder de Vladimir Putin, facilitada pela miséria criada pelas políticas neoliberais de Ieltsin, afastou a Rússia da democracia e da Europa.
A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.
O seu discurso comprova-o, enaltecendo a masculinidade guerreira, o nacionalismo identitário, o obscurantismo neofascista, justificando a invasão da Ucrânia como uma guerra de civilizações contra as democracias que descreve como decadentes, pedófilas e promotoras dos direitos das comunidades LGBTQ. Trata-se de uma ideologia iliberal, reacionária, que mina também por dentro, importa não esquecer, Estados da União Europeia.
Putin quer impedir que a Ucrânia se consolide como democracia e que o projeto de paz democrática volte a contaminar a Rússia.
Para que a paz volte à Europa, é preciso que a invasão da Ucrânia fracasse, que o país consolide a sua democracia, essencial à convivência numa sociedade multicultural, e integre a União Europeia.
Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra. Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo.
Na televisão, vejo analistas, com mais ou menos convicções democráticas, e compreendo que alguns são filhos da Guerra Fria. Passaram uma parte da sua vida em funções do aparelho de Estado, sobretudo no sector militar, a estudar geopolítica, a fazer jogos de guerra e a aprender a teoria do equilíbrio do terror. Olham para a guerra como um jogo de xadrez, em que as vítimas são apenas peões. Indigna-me que alguns deles não manifestem empatia humana pelas vítimas, que não denunciem os crimes contra a humanidade.
Como escreveram, numa célebre carta, Habermas e Derrida, o que levou milhões de europeus a manifestarem-se contra a invasão do Iraque, em 2003, foi a recusa das guerras de conquista, a memória da trágica experiência das guerras coloniais europeias.
Foi a oposição às guerras imperiais que levou muitos da minha geração a abraçar a causa da luta contra a guerra colonial portuguesa.
O projeto de paz democrática na Europa poderá servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.
Hoje, 74% dos europeus concorda com o apoio da União à Ucrânia, convicta do imperativo de combater a guerra imperial de Putin.
A União Europeia não pode ser uma grande Suíça rodeada pelas tragédias do mundo e com uma Rússia imperialista nas suas fronteiras.
Durante a Guerra Fria a NATO, e os Estados Unidos, tiveram o papel crucial de dissuadir qualquer aventura militar de Moscovo para além das fronteiras do Pacto de Varsóvia.
Hoje, a União tem que ser capaz de se defender militarmente e preservar os valores da associação pacífica entre os Estados. Um dilema, como esta guerra demonstra, que ainda não foi capaz de resolver, daí a dependência do aliado americano para garantir o destino europeu democrático da Ucrânia. Um aliado americano de futuro incerto, como Trump, mas também Bush, demonstraram.
O apoio indefetível à Ucrânia deve servir para uma visão europeia autónoma, não só de um sistema que garanta a paz no continente, mas também da ordem internacional. Se o fizer, fracassada a aventura militar russa, a sobrevivência do projeto de paz democrática na Europa poderá então servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.
A tentativa de golpe de 8 de janeiro é, depois do assalto ao Capitólio, mais um alerta das ameaças que a democracia enfrenta na sua luta existencial contra a extrema-direita. A democracia está em risco e o combate é internacional, tanto mais que as redes do neofascismo digital são globais. Lula tem hoje a duplo desafio de impedir que o golpe tenha sucesso e de assumir a sua dimensão internacional.
A 8 de janeiro convergiram duas correntes golpistas e antidemocráticas: a clássica, do autoritarismo militar brasileiro, e a nova, a do neofascismo digital.
Desde a campanha pelo impeachment de Dilma, cresceu nas redes sociais uma corrente fascista, que partilhou entre si, sobretudo em redes como o WhatsApp ou Facebook, notícias falsas, conspirativas, criando uma comunidade virtual ultraconservadora, ligada à ideologia da supremacia branca, do machismo, do culto da violência e das armas, numa mistura entre práticas de correntes evangélicas e as milícias fascistas italianas.
O neofascismo digital é um movimento político próprio da sociedade em rede. Foi ele que levou ao poder Bolsonaro, com a cumplicidade dos que se recusaram a ver a ameaça que representava para a democracia.
A 8 de janeiro convergiram duas correntes golpistas e antidemocráticas: a clássica, do autoritarismo militar brasileiro, e a nova, a do neofascismo digital.
No poder, Bolsonaro promoveu a infiltração das estruturas do Estado pelos grupos do neofascismo digital, incluindo no seio das Força Armadas. Foram esses grupos que lançaram a campanha de contestação à fiabilidade do processo eleitoral brasileiro, que não impediu a vitória de Lula.
Só um golpe de Estado poderia reverter o resultado eleitoral, o que obrigou à saída do mundo virtual.
Desde a campanha pelo impeachment de Dilma, cresceu nas redes sociais uma corrente fascista, que partilhou entre si, sobretudo em redes como o WhatsApp ou Facebook, notícias falsas, conspirativas, criando uma comunidade virtual ultraconservadora, ligada à ideologia da supremacia branca, do machismo, do culto da violência e das armas, numa mistura entre práticas de correntes evangélicas e as milícias fascistas italianas.
As Forças Armadas brasileiras são a segunda componente deste golpe. Aceitaram a democracia a troco de uma amnistia, o que lhes deu um sentimento de impunidade. Nenhum dos governos democráticos foi capaz de alterar a sua convicção de que são um poder paralelo. As tentativas de internacionalização e de desconstrução da doutrina de segurança nacional, segundo a qual o inimigo é sobretudo interno, foram tímidas e fracassaram. O General Heleno, comandante da operação de paz das Nações Unidas no Haiti, continuou a elogiar a ditadura militar e era o responsável pelo gabinete de segurança de Bolsonaro. A “pacificação das favelas do Rio” pelo exército manteve o inimigo interno na agenda. Com Bolsonaro, milhares de militares na reserva assumiram postos nas estruturas do Estado.
Os assaltantes esperavam que, perante a fraqueza da resposta do executivo, o caos de Brasília se propagasse a outras cidades. Em São Paulo, a estratégica Avenida 23 de Maio estava bloqueada pelos bolsonaristas. Perante o caos e a impotência, os militares seriam chamados ou interviriam para repor a ordem. A consequência poderia ser uma junta militar, sem Bolsonaro. Esta tese é partilhada por analistas brasileiros, como o filósofo Renato Janine Ribeiro ou o jurista Pedro Dallari, que foi Presidente da Comissão da Verdade.
Perante o caos, alguns defenderam que Lula deveria fazer um discurso conciliador, “compreender a ira popular que se manifestava “, para unir o povo brasileiro. Lula e o poder judiciário brasileiro fizeram exatamente o contrário. Classificaram os assaltantes de fascistas e golpistas. Foi decretada a intervenção do poder central no Distrito Federal, retirando competências ao Governador. O resultado foi imediato: as sedes dos 3 poderes foram evacuadas, com muitos golpistas detidos; os acampamentos à frente dos quartéis foram desmantelados, e muitos dos contestatários foram alvo de mandados emitidos pelo Juiz do Supremo Tribunal, Alexandre de Moraes.
A situação atual é bem diferente da que permitiu o sucesso do golpe de 1964. Hoje, Lula tem apoio nos sectores chaves do poder no Brasil, nos congressistas, no poder judiciário, nos governadores dos Estados, nas organizações patronais e nos média tradicionais – a TV Globo classificou os assaltantes como terroristas, quando em 1964 a grande imprensa apoiava o golpe.
O envolvimento de militares no ativo no golpe está comprovado. Não só protegeram os que acampavam à frente dos quarteis, como o Batalhão da Guarda Presidencial do exército facilitou a ação dos assaltantes do Palácio do Planalto. Em entrevista à Folha de São Paulo, Lula afirmou que recusou decretar uma operação militar, proposta pelo Ministro da Defesa, de “Garantia da Lei e da Ordem” para afastar veleidades de “algum general assumir o governo”.
Lula é um grande político, com capacidade de forjar grandes coligações, e optou pelo diálogo com as Forças Armadas, procurando que afastem os elementos diretamente comprometidos com o golpe. Há quem defenda que este é o momento, quando Lula goza de tanto apoio político, para reformar as Forças Armadas, colocando-as claramente sob dependência política. Lula parece hesitar, o que indica que não está ainda seguro da reação dos militares.
Lula encontrou pronto apoio nas democracias liberais, em Biden e nos líderes europeus. Os Estados Unidos. que em 1964 tinham participado no golpe, fazem hoje da luta contra a extrema-direita e o fascismo digital uma questão central da sua política internacional. O fascismo digital não tem fronteiras e é conhecido o apoio que Trump e Steve Bannon dão ao bolsonarismo. Lula irá continuar a confrontar-se com a ameaça do fascismo digital e das suas relações obscuras com as Forças Armadas. Paradoxalmente, talvez seja mais fácil resolver a questão militar.
A defesa internacional da democracia irá marcar, apesar da relutância brasileira, a agenda da política externa do terceiro mandato. Contamos com Lula e com a sociedade civil brasileira para esse combate.
A cerimónia de passagem da faixa presidencial foi um momento de grande emoção. Uma afro-brasileira, descendente de escravos, ter colocado a faixa no Presidente Lula ficará para a História.
A tomada de posse de Lula é um acontecimento de repercussões globais na afirmação da vitalidade da democracia liberal, do triunfo dos ideais do iluminismo, da justiça social , da defesa do ambiente e da diversidade. Lula é uma esperança para o Brasil e o Mundo.
Lula é uma esperança para o Brasil e para o Mundo
A 30 de outubro, Lula foi eleito Presidente , com 50,9% dos votos. Bolsonaro contestou o resultado das eleições, seguindo o exemplo do seu mentor Trump. Assim que os resultados foram conhecidos, para travar qualquer tentativa de golpe, os Presidentes americano e francês e o Chanceler alemão felicitaram o presidente eleito. Biden declarou imediatamente as eleições “livres, justas e credíveis” e Macron realçou mesmo que a eleição de Lula abria “uma nova página na História do Brasil “.
O dilema internacional do Brasil será o de sempre: como conciliar a sua pertença ao mundo das democracias liberais, o chamado Ocidente, sendo simultaneamente um ator importante do Sul global, membro dos Brics (com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul). Esta dupla identidade poderá ser um trunfo, desde que assumida com equilíbrio – algo que é mais difícil agora que a Rússia de Putin invadiu a Ucrânia e continua a sua brutal guerra de conquista.
Após ter condenado a invasão russa numa primeira fase, Lula passou a fazer um discurso mais ambíguo, embora não alinhado com as posições de setores do PT que ainda têm uma visão bipolar do mundo, marcada pelo antiamericanismo. O Brasil será chamado, pelo menos nas Nações Unidas, a tomar posição. Se não se espera que alinhe a sua posição pela dos Estados Unidos e da União Europeia, não apoiar as resoluções condenando a violação pela Rússia da Carta, de que é um dos primeiros subscritores, seria afastar-se da sua tradição multilateralista e do campo das democracias liberais – numa altura em que é reconhecido como um dos seus.
Alguns conselheiros de Lula consideram que o Brasil poderia ter um papel de mediador na guerra da Ucrânia, uma ideia que não creio que possa ter qualquer sucesso. Não é no campo da segurança internacional que o Brasil é um ator de peso, algo que Lula deve saber.
Já no campo ambiental, o Brasil pode ser um ator muito relevante. Daí, aliás, que Lula tenha participado na Cimeira do Clima, apenas quinze dias depois de ser eleito. O entusiasmo com que Lula foi recebido na Cimeira é indicativa não só do prestígio de Lula, mas do domínio onde a ação do Brasil é considerada vital: a proteção da biodiversidade e a luta contra as alterações climáticas. É no ambiente que o Brasil é uma superpotência, é na questão climática que a sua posição é decisiva, sobretudo pela importância da Amazónia. A indicação de Marina Silva para Ministra do ambiente é a confirmação de que o desmatamento da Amazónia será revertida.
É no ambiente que o Brasil é uma superpotência, é na questão climática que a sua posição é decisiva, sobretudo pela importância da Amazónia. A indicação de Marina Silva para Ministra do ambiente é a confirmação de que o desmatamento da Amazónia será revertida.
O Brasil poderá ter um papel decisivo na construção do consenso entre os países do chamado Sul global e os membros da OCDE, fundamental para a saída do impasse em que se encontram as conferências do clima e para o cumprimento dos acordos de Paris.
A União Europeia deveria tirar partido do efeito Lula para concluir o acordo UE-Mercosul. Como defende o manifesto promovido pela Casa Comum da Humanidade e pelo Fórum Demos, o acordo deveria integrar um anexo com uma nova orientação estratégica, fazendo-o evoluir de uma relação essencialmente comercial para uma parceria que coloque o objetivo do clima estável no centro das relações birregionais, no que deveria ser um passo para o clima estável ser considerado património comum da Humanidade.
Em relação à China, o Brasil irá afastar-se da política americana, procurando ter as melhores relações possíveis com o seu principal parceiro comercial.
O Brasil continuará certamente a defender um multilateralismo mais inclusivo, que tenha em consideração o mundo policêntrico, pós-hegemónico, em que vivemos, no que poderá convergir com a visão da autonomia estratégica da Europa defendida pela França, o que não significa assumir uma visão ideológica da multipolaridade.
O Brasil não tem a sua ação internacional, onde ela pode ser significativa, entravada pelos Estados Unidos ou a União Europeia. Pelo contrário, será um ator bem-vindo, tanto no ambiente como na estabilização da situação económica e política na América do Sul (a normalização das relações entre os Estados Unidos e a Venezuela é uma boa notícia para a diplomacia brasileira). Certamente que será saudada o relançamento do Mercosul e da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica.
A presidência brasileira do G20, em 2024, poderá ser uma ocasião para dar um novo alento ao multilateralismo e fazer do combate à pobreza uma prioridade mundial.
A presidência brasileira do G20, em 2024, poderá ser uma ocasião para dar um novo alento ao multilateralismo e fazer do combate à pobreza uma prioridade mundial.
A coroar a presidência Lula, em 2026, quando Guterres for substituído por um latino-americano, porque não, enfim, uma Secretária-Geral, quem sabe uma brasileira.
É fundamental sublinhar que a consolidação da democracia no Brasil terá um efeito mundial, que, por si só, irá expandir a influência do país, que voltará a ser um exemplo a seguir – tanto mais que o sucesso do governo brasileiro depende da sua capacidade de demonstrar que é possível combater a pobreza e recusar os imperativos das políticas neoliberais.
Finalmente, o Brasil terá um papel decisivo, com repercussão mundial, no combate à extrema-direita e ao obscurantismo e na defesa dos direitos humanos. Por isso a vitória de Lula é saudada, como uma vitória do iluminismo contra a barbárie, por cientistas e homens de cultura do mundo inteiro.
O destino comum luso-brasileiro, para além da saudade, poderá então finalmente começar a cumprir-se .
A diplomacia cultural do Brasil acompanhará a da sua sociedade civil, cuja luta pela igualdade, contra o racismo, tem um enorme eco na Europa. Já em 2023 teremos em Portugal um bom exemplo disso mesmo com a entrega do prémio Camões de 2019 a Chico Buarque, que Bolsonaro tinha bloqueado.
O destino comum luso-brasileiro, para além da saudade, poderá então finalmente começar a cumprir-se.
O futuro da democracia e do planeta vão ser decididos pelos eleitores brasileiros neste domingo
Não se pode subestimar o que está em jogo nas eleições brasileiras. O resultado da disputa eleitoral entre Lula e Bolsonaro não só é decisivo para a democracia brasileira como terá um impacto significativo na capacidade de enfrentarmos os desafios do mundo contemporâneo. É o futuro da democracia e do planeta que vão ser decididos pelos eleitores brasileiros.
O Estado de direito democrático sobreviveu a quatro anos de exercício de poder por um Presidente que elogia a ditadura militar, porque as suas instituições judiciais, nomeadamente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, preservam a sua independência.
Se o Estado de direito mostrou uma solidez superior ao que muitos pensavam, o mesmo não se passou ao nível das políticas públicas, dependentes do Governo e do legislativo.
Foram anos marcados pela catástrofe sanitária, com Bolsonaro a fazer campanha contra a vacina, o uso de máscara e as medidas de confinamento decretadas pelos governadores dos estados; pelo desmatamento da Amazónia e o negacionismo das mudanças climáticas, ao serviço dos sectores mais retrógrados do agro-negócio. Nos anos Bolsonaro foram destruídos 40.000km2 de floresta – um ecocídio.
Foram anos também de retrocesso social. Paulo Guedes, ministro das Finanças, procurou aplicar a receita ultraneoliberal de Pinochet, travando a ascensão social dos pobres, particularmente dos descendentes dos escravos africanos. Hoje, 62,9 milhões de brasileiros, cerca de 30% da população, vivem abaixo do limiar da pobreza, mais 15 milhões do que em 2014. O orçamento secreto de 19 mil milhões de reais retirados às políticas sociais e colocados à disposição dos membros do Congresso, que o utilizarão sem transparência, é um astronómico Mensalão.
Eleito com uma pauta securitária e de demagogia anticorrupção, como é próprio da extrema-direita populista, Bolsonaro armou as milícias do crime organizado e aumentou a insegurança. As imagens de Roberto Jefferson, ex-deputado, aliado do Presidente, a disparar e lançar granadas contra a polícia são o retrato da insegurança que o ódio bolsonarista criou.
Bolsonaro é fiel servidor, como ficou provado, dos três B: Boi (agro-negócio), Bala e Bíblia. Mitificado por pastores evangélicos pentecostais, procurou fazer avançar a pauta reaccionária de destruição das conquistas dos direitos das mulheres e da igualdade de género – projecto bem retratado no filme brasileiro Divino Amor, de Gabriel Mascaro, obra de ficção científica sobre um futuro dominado pela “ordem moral” teocrática. O projecto distópico do bolsonarismo enfrentou a oposição de uma poderosa sociedade civil que se mobilizou em defesa dos direitos garantidos pela Constituição democrática – as instituições culturais e científicas brasileiras, como as universidades, enfrentaram abertamente o obscurantismo, apesar dos cortes brutais no seu orçamento.
Mais quatro anos de poder neofascista no Brasil poriam em risco a independência das instituições e as liberdades, e aprofundariam a crise ecológica, social, securitária e a divisão entre os brasileiros.
Bolsonaro e seus aliados alimentam o projecto de controlo sobre o Supremo Tribunal, por via do aumento do número de membros. Para isso terá de ter o apoio do Senado, onde a sua influência aumentou e onde o orçamento secreto compra votos.
Lula e os seus aliados, como Simone Tebet e Marina Silva, são a alternativa a tudo que Bolsonaro representa. São defensores da separação de poderes, essência da democracia, simbolizados em Brasília pela Praça dos Três Poderes, desenhada por Lúcio Costa e onde ficam situados os três belos edifícios de Oscar Niemeyer, o Palácio do Planalto (sede do executivo), o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.
Uma nova presidência Lula irá continuar a construir o Brasil que o fim da ditadura em 1986 prometeu e a Constituição de 1988 consagrou. O Brasil da liberdade e da democracia que precisa de ser consciente que “só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”, como afirmou Ulisses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, por ocasião da promulgação da Constituição.
Também o impacto internacional da vitória de Lula não deve ser subestimado. Seria mais um golpe na “internacional iliberal”, já enfraquecida pela derrota de Trump, que mostrou o perigo que representa para a paz com a guerra imperial de Putin na Ucrânia.
A derrota de Bolsonaro seria a afirmação do Brasil como uma voz da democracia no conjunto das potências que emergiram neste século, os BRICS: a Rússia rompeu brutalmente com os princípios da carta das Nações Unidas, a deriva identitária de Modi está a destruir a democracia indiana e Xi Jinping subverteu o limite dos dois mandatos.
É vital que o Brasil retome o seu lugar como actor prestigiado e influente do multilateralismo, num mundo policêntrico, indispensável à sua eficácia e necessária reforma.
As opções ambientais do Brasil são críticas para proteger o sistema terrestre e preservar a vida na terra. O envolvimento activo de Marina Silva, referência ecológica, na campanha de Lula é a prova da prioridade que o seu Governo dará às questões ambientais. Como Lula declarou, em artigo no Le Monde, “a Amazónia e a biodiversidade serão protegidas”.
A União Europeia poderá, com o Governo de Lula, construir com o Brasil uma parceria estratégica, aprofundando ao mesmo tempo as relações com o Mercosul, para promover um pacto global verde para travar o aquecimento global.
Para nós, portugueses, ter o Brasil como parceiro que partilha o mesmo credo democrático, humanista, social e ecológico será a ocasião para pensarmos seriamente o nosso futuro comum, rompendo com a retórica racista lusotropicalista.
[Este artigo foi publicado hoje no site do jornal Público. Encontra-se disponível aqui.]
D.Pedro proclama a independência do Brasil, Museu do Ipiranga
A comemoração do bicentenário da independência do Brasil foi uma ocasião de afirmação, nomeadamente em Portugal, da importância da herança liberal, hoje ameaçada na Europa e no mundo por uma vaga autocrática, que se assume, como afirmou o Viktor Orbán, como iliberal.
Na Europa, as referências ao bicentenário, com excepção de Portugal, embora poucas, foram significativas. A cerimónia foi considerada pela maioria dos analistas como uma exploração grotesca de um momento que deveria ter sido de comemoração dos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade. No Le Monde, as comemorações foram classificadas como um acto sexista e putchista.
A maioria dos artigos reflectem a deterioração da imagem do Brasil na opinião pública europeia. Apesar do significado histórico da data, ninguém esperava que o Governo brasileiro a comemorasse com dignidade.
O Brasil era visto, nos últimos anos de Lula e no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, como uma potência em ascensão e com enorme prestígio internacional. Eram reconhecidos os enormes progressos no domínio do combate à pobreza e na educação, e crescia a convicção de que o Brasil estava a emergir como uma potência indispensável à regulação multilateral de um mundo policêntrico. No relatório do EUISS para a União Europeia “Cidadãos num Mundo interconectado e policêntrico”,pode ler-se que, num índice que integre não só indicadores económicos, mas também outros, mais subjetivos – “como soft power, unidade política e o efeito multiplicador da cooperação regional” –, o Brasil é apontado como umas das cinco grandes potências de 2030 [1]
O soft power, isto é, o poder de atracão do Brasil, era um factor relevante da influência do Brasil na cena internacional. Um inquérito mundial sobre o poder de atracão de diferentes países do mundo, levado a cabo pela BBC, em 2010, colocava também o Brasil em quinto lugar, a seguir à União Europeia, Japão, Canadá e Estados Unidos.
Hoje, quando a preocupação com a emergência ecológica é uma questão central da política europeia, o Brasil é visto como um país dominado pelo populismo, que está a destruir a Amazónia e a matar os seus habitantes. O Parlamento Europeu aprovou por larga maioria, em Setembro de 2022, uma resolução para travar as importações brasileiras que resultem do desmatamento da Amazónia e o acordo EU- Mercosul continua congelado.
As comemorações do bicentenário em Portugal deram continuidade às que, há dois anos, assinalaram a revolução liberal de 1820, no Porto. Nessa altura, salientou-se que é hoje um imperativo defender a herança liberal de “separação de poderes” e de “libertação do povo”, de que é herdeira o Estado de Direito Democrático.
A participação nas comemorações do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, e a decisão da Câmara do Porto de emprestar o coração de D. Pedro ao Brasil, provocaram uma intensa polémica. A maioria dos artigos publicados sublinhava que o que estava em causa, mais do que a independência do Brasil, há muito consolidada, era a defesa dos ideais liberais, de novo ameaçados por autocratas absolutistas. Foi, por isso, quase unânime a crítica à Câmara da cidade do Porto pela sua decisão. O autor de uma dessas críticas sintetizou a opinião de muitos, quando escreveu não ser compreensível ter-se permitido “que uma grande figura do liberalismo seja usada para compor a narrativa de um amante de ditaduras”[2]. Em relação à participação do Presidente da República, as opiniões dividiram-se, considerando muitos que as relações com o Brasil são independentes das circunstâncias e que Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter recusado o convite.
As circunstâncias aziagas em que se deu esta comemoração impediram que tivesse sido uma ocasião para lembrar os duzentos anos da luta difícil pela consolidação do ideal liberal nos dois países, que viveram longos períodos de ditadura. Perdeu-se uma ocasião para se assumir o crime contra a Humanidade que foi a escravatura e o passado colonial português. Também não se valorizou os que lutaram pela independência do Brasil, como os heróis da Inconfidência Mineira.
As comemorações do bicentenário da inserção da Bahia na unidade brasileira, que decorrem em 2023, podem ser uma boa oportunidade para reafirmar os valores da liberdade, no Brasil e em Portugal.
A presença em Portugal de uma vasta comunidade de emigrantes brasileiros cria as condições propícias para essa iniciativa. As comemorações podem ter como actores principais os afrodescendentes dos dois países, que hoje são particularmente ativos na vida pública, cultural e universitária.
Depois de 4 anos de governo que confirmaram Bolsonaro como neofascista, não apoiar Lula já não é só uma falta política grave, é uma falta ética.
Ao ouvir alguns comentários chega a parecer-nos que Bolsonaro partiu para a segunda volta, tendo ganho a primeira. Lula precisa de obter mais 1,6% dos votos para ganhar, Bolsonaro necessita de mais 6,8 %; por cada voto a mais de Lula, Bolsonaro terá que ter três.
Não façamos o jogo de Bolsonaro – o triunfalismo, mesmo quando derrotado, é arma dos populistas.
Não façamos o jogo de Bolsonaro – o triunfalismo, mesmo quando derrotado, é arma dos populistas. Mesmo assim, Bolsonaro recolheu 51 milhões de votos (43%), um resultado que nos surpreende, ocultando os mais de 57 milhões de votos de Lula.
Como é que um candidato incapaz, com uma linguagem racista e machista, que nega a pandemia, que faz a apologia das armas e da mentira, tem tanto apoio? Escapa à nossa compreensão que um homem que representa tudo o que nos repugna não seja esmagado nas urnas.
Na Europa já devíamos ter compreendido melhor a força da corrente neofascista. As vitórias de Meloni e Salvini na Itália, a força de Le Pen, os resultados eleitorais da extrema-direita na Suécia estão aí para o provar. Mas talvez fiquemos mais espantados com o apoio do populismo brutal e bronco, de Bolsonaro ou Trump. A extrema direita europeia parece mais polida, mas não é por isso que deixa de representar a mesma tentativa de desconstrução do Estado de Direito. Partilham o mesmo credo da superioridade do homem branco e do apelo, ao conservadorismo religioso – inscrevem-se na mesma corrente etnonacionalista religiosa de Putin.
O discurso racista e patriarcal encontra apoio no Brasil, sustentado nas correntes reacionárias evangélicas, num vasto sector da classe média de remediados, que vive nos arredores das grandes cidades, que vira o seu ódio contra os descendentes dos escravos e, em parte, contra a elite urbana. Essa realidade ficou patente no voto paulista: Lula ganhou na cidade de São Paulo, mas perdeu no Estado. A escolha de Geraldo Alckmin para vice-presidente, duas vezes eleito como governador de São Paulo, pelo PSDB, não bastou para conquistar esse eleitorado. Encontrou eco a narrativa dos sectores da elite que apoiaram Bolsonaro em 2018, culpando a corrupção de políticos do PT pelo empobrecimento. O facto do PT , apesar de ter tomado medidas para garantir a independência do judiciário, ter abandonado a agenda ética com que tinha sido eleito facilitou esse discurso.
O significado político da vitória de Lula na primeira volta, com mais 6 milhões de votos, não deve ser subestimado. O PT e o seu líder sobreviveram à destruição dos outros partidos democráticos porque não abandonaram a agenda social e continuaram a defender os interesses dos pobres e a combater a trágica herança da escravatura.
O significado político da vitória de Lula na primeira volta, com mais 6 milhões de votos, não deve ser subestimado. O PT e o seu líder sobreviveram à destruição dos outros partidos democráticos porque não abandonaram a agenda social e continuaram a defender os interesses dos pobres e a combater a trágica herança da escravatura.
Os governos de Lula foram uma experiência singular de social-democracia na América Latina, com políticas sociais capazes de tirarem milhões da miséria, garantir o crescimento económico, e ao mesmo tempo acalmar os mercados internacionais, uma política que nada tem a ver com a de governos populistas como os de Perón, Chávez ou Maduro.
O centro e a direita democrática, como em países europeus, foi canibalizado pela extrema-direita. Simone Tebet, apoiada pelo PSDB e pelo PMDB, partidos que dominaram, com o PT, a política brasileira e ocuparam a presidência desde o fim da ditadura, obteve 4,16% dos votos. Os partidos que a apoiavam perderam muita da legitimidade que alcançaram com a democratização do Brasil, ao embarcarem na campanha de destruição do PT, ajudando, em 2018, a eleição de Bolsonaro. O mesmo aconteceu a Ciro Gomes, do PDT, que obteve 3% dos votos. A fraqueza do centro-direita é um dos graves problemas da democracia brasileira.
Depois de 4 anos de governo que confirmaram Bolsonaro como neofascista, não apoiar Lula já não é só uma falta política grave, é uma falta ética.
O que resta dos partidos do centro e da direita democrática, no Brasil, são coligações de personalidades, algumas delas prontas a vender a sua dignidade. Por isso o MDB e o PSDB declaram a sua neutralidade, o que permitiu ao governador de São Paulo (PSDB)negociar com Bolsonaro o apoio que lhe dá.
Depois de 4 anos de governo que confirmaram Bolsonaro como neofascista, não apoiar Lula já não é só uma falta política grave, é uma falta ética.
Fernando Henrique Cardoso, fundador do PSDB, ao contrário do que fez em 2018, declarou inequivocamente o seu voto em Lula, em defesa do Estado de Direito democrático. O mesmo fez Simone Tebet, que se afirma como uma alternativa para o futuro, no campo do centro-direita, ao declarar a participação na campanha de Lula.
A tomada de posição em favor de Lula de muitas personalidades políticas, económicas e religiosas, mostra uma crescente consciência em sectores da elite brasileira de que Bolsonaro está a destruir o legado da democracia brasileira. Que o Estado de Direito, nomeadamente a independência do Supremo Tribunal, está ameaçado. Que mais quatro anos de extrema-direita no poder representam um risco existencial para as liberdades e para o lugar do Brasil no Mundo.
A vitória contra Bolsonaro, como mostram as eleições francesas, impõe uma aliança entre a esquerda e o centro-direita (apesar da sua fraqueza atual). No Brasil, os movimentos sociais, como foram na derrota de Trump , são vitais também para travar o projeto autocrático.
Para vencer Bolsonaro, Lula terá que unir todas as forças do campo democrático, sem ceder na agenda da inclusão social, da ecologia e da defesa dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, terá que combater as campanhas de fake news de Bolsonaro que o acusam, por exemplo, de tencionar fechar as igrejas e perseguir os padres, apesar de ser católico praticante. O Supremo Tribunal Eleitoral tem procurado conter a onda de mentiras, mas a desinformação irá ser cada vez mais monstruosa.
Essas campanhas de fake news encontram apoio na extrema-direita internacional que tem manifestado o seu apoio a Bolsonaro, como fez Trump. O Senado norte-americano, pelo contrário, numa resolução sem precedentes, declarou que romperia relações com o Brasil se o resultado das eleições não fosse respeitado.
Nos BRICS, hoje dominados por dirigentes autocráticos, a voz de um Brasil democrático é essencial.
O combate é difícil, mas o mais provável é que Lula vença – uma vitória da democracia contra a autocracia, no Brasil e no mundo.
Numa altura em que a extrema-direita ganha as eleições na Itália e o espetro de Trump continua a pairar na América, é do Brasil que vem a esperança de uma derrota clara do populismo e, com ela, do credo herdeiro do fascismo – “Deus, Pátria e Família”.
As comemorações do bicentenário tinham trazido para o debate o futuro do Brasil. Miguel Sousa Tavares, no Expresso, considerou que a forma como se comemorou o bicentenário é a prova de que o Brasil é um projeto falhado.
O Brasil que encontrei, nas vésperas de eleições decisivas para o seu futuro democrático, nada tem a ver com o que Bolsonaro personifica. A tragédia social, sanitária, cultural e ética, que o seu governo representou, despertou uma vaga cívica que o Estado de Direito conseguiu proteger. Bolsonaro assumiu-se como herdeiro dos golpistas que em 1964 derrubaram o governo progressista de João Goulart.
A unidade construiu-se na convicção de que Bolsonaro representa uma ameaça existencial para o Brasil. É esse consenso, que não existiu em 2018, que tudo indica o vai derrotar, talvez logo na primeira volta das eleições.
A unidade construiu-se na convicção de que Bolsonaro representa uma ameaça existencial para o Brasil. É esse consenso, que não existiu em 2018, que tudo indica o vai derrotar, talvez logo na primeira volta das eleições.
Lula, pelo seu passado, representa essa vaga de reafirmação democrática e social – a esperança da maioria da população, que vive na pobreza, e de uma parte significativa dos remediados, que acreditaram no discurso contra as elites e racista de Bolsonaro e encontraram nas correntes evangélicas reconhecimento e conforto moral. Sectores importantes das elites que detêm os grandes órgãos da informação, que dominam a vida económica, cultural e universitária, que, em 2018, facilitaram a vitória de Bolsonaro porque queriam ver-se livres do PT, constataram a sua incompetência e viram-no como uma ameaça ao seu credo liberal. Acabaram por conformar-se com a ideia de que o candidato dos que nada têm é a única hipótese de se verem livres de Bolsonaro. Sinal do reconhecimento da gravidade do momento são as declarações de muitos quadros do PSDB, o partido de Fernando Henrique Cardoso, de que irão votar Lula logo na primeira volta. A candidata apoiada pelo PSDB, Simone Tebet, tem 4% das intenções de votos.
A herança da escravatura
É um absurdo sugerir, como o fez Miguel Sousa Tavares, que o Brasil poderia ter ganho alguma coisa com uma mão-de-obra de escravos. Os cinco milhões, arrancados a África e vendidos como animais de carga, são uma pesada herança e o crime mais tenebroso da história colonial portuguesa.
Um futuro governo Lula terá de retomar as políticas que, desde os governos de Itamar e FHC e, sobretudo, dos seus próprios governos, retiraram 40 milhões de brasileiros da miséria e lhes deram poder por via da educação. Isso talvez queira dizer que, pela primeira vez na história do Brasil, conseguiram de forma eficaz começar a pôr em causa o racismo estrutural, que condena os negros brasileiros à miséria, essa herança da escravatura. Foram tempos que permitiram progressos significativos na emancipação social dos pobres que são, maioritariamente, os descendentes dos escravos, negros e mulatos (mais de 50% da população brasileira). Mas muito restava a fazer e a situação agravou-se nos anos de Bolsonaro ; 43, 7 milhões vivem hoje na pobreza, mais 11 milhões que em 2018; 50% dos brasileiros ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos, contra 7 vezes em França.
Hoje, os descendentes dos escravos, negros, mestiços, e os descendentes dos povos primeiros, “os indígenas”, ocupam o espaço cultural e fazem ouvir a sua voz
Vi o futuro do Brasil em Salvador da Bahia. Fui lá pela última vez ainda no tempo de FHC. Nessa altura, o empoderamento de uma parte significativa dos mais pobres pela ascensão social e a educação, nomeadamente a política de quotas no acesso ao ensino universitário (adoptada com Lula) ainda não se tinha feito sentir. Hoje, como em muitas outras regiões do Brasil, os descendentes dos escravos, negros, mestiços, e os descendentes dos povos primeiros, “os indígenas”, ocupam o espaço cultural e fazem ouvir a sua voz.
Vi o futuro do Brasil naquela jovem que fala das estórias que a sua avó tinha ouvido da sua mãe escrava. Nos que se mobilizam no apoio às candidaturas negras, nos jovens que se entusiasmam com a peça Dandara, heroína do quilombo de Palmares. Também no MASP, em São Paulo, a cidade da elite, na exposição Retratos Brasileiros, de Dalton Paula, com as pinturas das personagens negras a que a história do Brasil não tinha dado rosto. No movimento “Vidas negras e faveladas importam”, que exige que se descubra o assassino de Marielle. No renovado Museu do Ipiranga, eco do grito da liberdade, que exibe os que o construíram e abriram as estradas que permitem visitá-lo. Na literatura de resistência ao bolsonarismo, como a de Milton Hatoum ou de Djamila Ribeiro, que, na cerimónia de entrada na Academia Paulista de Letras, evocou o seu orixá e lembrou que os terreiros do candomblé foram e são focos de resistência cultural.
Mas o futuro tem de estar também na defesa do ambiente. O acordo que levou ao apoio a Lula da ecologista Marina Silva faz com que muita gente com quem falei esteja convencida de que, com um novo governo, haverá “uma virada ecológica”, que será possível acabar com o desmatamento da Amazónia e ouvir a voz e proteger a vida dos povos que a habitam.
Os desafios de um novo governo Lula
Os meus interlocutores também me avisam que, a confirmar-se a vitória de Lula, o seu governo enfrentará obstáculos gigantescos para tornar irreversível a política de inclusão social.
A prioridade das prioridades é derrotar Bolsonaro, garantindo a preservação do Estado de direito democrático, de que Lula, um metalúrgico, antigo sindicalista, formado na escola da vida, visto com desconfiança pela elite, se tornou no garante
Terá de vencer a resistência de uma das elites mais egoístas do mundo para conseguir taxar as grandes fortunas e encontrar os recursos financeiros para enfrentar o défice social e combater o racismo estrutural, sem assustar excessivamente os mercados.
Terá que proteger a Amazónia, contrariando os interesses de setores arcaicos do agronegócio e da madeira, apoiando-se na experiência de empresas que já operam de forma mais ecológica, para preservar a importância do setor na economia brasileira.
Terá que modernizar as forças armadas e militarizadas, garantindo a segurança dos cidadãos e fazendo dos direitos humanos e da defesa da democracia uma prioridade da sua formação, na linha das conclusões da Comissão da Verdade.
Um governo democrático terá que retomar a agenda ética e conquistar para o campo da democracia os mais de 30% de brasileiros que irão votar Bolsonaro.
Hoje, porém, a prioridade das prioridades é derrotá-lo, garantindo a preservação do Estado de direito democrático, de que Lula, um metalúrgico, antigo sindicalista, formado na escola da vida, visto com desconfiança pela elite, se tornou no garante. Então tudo voltará a ser possível, mesmo a utopia do Brasil país do futuro, que fará da sua apregoada unidade na diversidade, não um slogan destinado a branquear a desigualdade, mas um projeto da humanidade comum.
Compreender a essência e os objetivos das novas correntes que desafiam a nossa perceção dos conceitos jurídicos, de sujeito, objeto, direito subjetivo e de relação jurídica, como é o caso das correntes de personificação de bens naturais, implica percebermos a sua origem, história e o seu porquê.
Sob o ponto de vista da “grelha de leitura” ocidental, considerar um rio, uma floresta, uma árvore, um animal ou uma montanha como um sujeito jurídico titular de direitos com uma esfera jurídica própria, mesmo que com algumas limitações, é no mínimo estranho.