«Quatro D pelo hino nacional: debater, descolonizar, desracializar, democratizar», por André Barata e Mamadou Ba

O presente artigo foi publicado no Jornal Económico, em 22 de fevereiro, às 00h10

O Abril que falta cumprir não tem no hino uma letra à altura. O elogio à gesta imperial é uma legitimação das consequências do colonialismo donde emana as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade.

O debate sobre a letra do hino nacional, relançado, com visibilidade, pelo músico Dino D’Santiago no passado mês de Janeiro (depois de António Alçada Baptista em 1997 e um de nós em 2020), e que fez ressoar o apoio, na imprensa nacional, de António Brito GuterresDaniel OliveiraMiguel Esteves Cardoso, não deve perder-se na voragem da actualidade, assunto relevante um dia, esquecido no seguinte.

O debate público tem de ter a seriedade da insistência quando está em causa um símbolo, a que é devido respeito, legalmente protegido, e que, não apenas por isso, deveria convocar um consenso alargado entre os cidadãos.

Simplesmente não é esse o caso. Por duas razões cada vez mais prementes. Porque, por um lado, a letra do hino faz silêncio sobre as vilanias da história colonial – nomeadamente a Escravatura –, os valores da Constituição da República Portuguesa (CRP) e os acontecimentos que estiveram na sua origem e a história de quase meio século que o país leva desde então. Nenhum heroísmo ou valor, cantados em “A Portuguesa”, é dedicado à luta pela democracia contra a ditadura, à luta contra o colonialismo e o racismo, à liberdade contra a opressão.

Por não cantar os pressupostos da 3.ª República, regime de estado direito assente na soberania popular, “A Portuguesa” não cumpre democraticamente com o seu propósito. É um símbolo nacional que irradia pouco o país que queremos ser de acordo com a Constituição. O Abril que falta cumprir não tem no hino uma letra à altura. O elogio à gesta imperial é uma legitimação das consequências do colonialismo donde emana as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade.

Na verdade – e estas são outras razões também por si só mais do que bastantes – pode dizer-se com fundamento que “A Portuguesa” canta valores que contradizem, pelo menos tacitamente, a Constituição. A letra do hino é incompatível com as menções no Artº. 7 da CRP à “solução pacífica dos conflitos internacionais” e à “abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos”.

Hino superlativamente bélico escrito em reacção à humilhante conformação do Rei D. Carlos I ao ultimato britânico, que impôs a segmentação e redução do império colonial português (pelo corte da continuidade da África austral, entre Angola e Moçambique, de maneira a garantir um corredor até à África do Sul ao império colonial britânico), “A Portuguesa” associou à vontade do fim da Monarquia e de implantação da República o repto “Levantai hoje de novo. O esplendor de Portugal!”.

Inegavelmente, esse esplendor caído é o do império colonial. Para alguns saudosistas o esplendor retomado é o do império colonial de novo, como atesta o debate sobre os brasões na Praça do Império em Lisboa, por exemplo. Restaurar o esplendor é sempre restaurar uma perspectiva simbolicamente expansionista e colonialista, “sobre a terra, sobre o mar”, “que há-de guiar-te à vitória”, reconhecida pelos outros através da sua derrota e subjugação, presumivelmente muito além do território nacional. Não é coincidência que nas décadas em que este país persistia, orgulhosamente só, numa guerra colonial “A Portuguesa” era cantada obrigatoriamente nas escolas.

Em suma, além do tom bélico, na verdade comum a hinos de outros países, há uma dupla tarefa cívica que deveria interpelar-nos cidadãos portugueses: descolonizar e democratizar o hino nacional. E ligar as duas através do debate é também uma forma de ligar gerações de portugueses: os que lutaram por Abril e os que lutam hoje contra aspectos segregadores estruturais que subsistem e até reemergem na sociedade portuguesa, nomeadamente o racismo. Estas são razões incontornáveis para mudar versos com 133 anos de um hino nacional com 112 anos e que atravessou três repúblicas.

Nos 50 anos de Abril que se avizinham, continuando a cumprir Abril, por uma sociedade livre, plural, inclusiva, haveria que fazer este debate. A Presidência da República ou a Assembleia da República (no quadro das competências que lhes cabem) podiam tomar a iniciativa. Se não, os próprios cidadãos através de uma petição pública. Nenhum símbolo, por mais importante que seja, deve escapar a mudanças que aspiram tornar as sociedades e a vida coletiva melhores. Os hinos não têm de mudar apenas quando mudam os regimes.

André Barata, Filósofo, Universidade da Beira Interior 

Mamadou Ba, Militante antirracista decolonial 

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Apresentado no Porto o livro «Memórias em Tempo de Amnésia. Uma campa em África», de Álvaro Vasconcelos

No passado dia 5 de dezembro, o novo livro de Álvaro Vasconcelos foi apresentado na Casa Comum, da Reitoria da Universidade do Porto.

A organização da apresentação do livro «Memórias em Tempos de Amnésia. Uma campa em África» contou com o apoio da Casa Comum, das Edições Afrontamento e a parceria do Forum Demos.

A apresentação pública do livro, que foi aberta com a projeção dos primeiros segundos do filme Hiroshima, Mon Amour, de Alain Renais, foi levada a cabo por Kitty Furtado, Alexandre Quintanilha e Danny Wambire, com a moderação de Fátima Vieira, e incluiu uma breve contextualização da obra, pelo Autor.

A próxima sessão de apresentação e discussão do livro será no próximo dia 13, às 18h, na UCCLA, Av. da Índia, 110, Lisboa.

Racismos, resistências e políticas públicas de segurança: Reflexões no inverno espanhol, por Mariana Matos

Na sequência da participação na Escola de Inverno 2022 do CES-Coimbra, «Resistências anticoloniais e racismo institucional», a autora partilha com o Forum Demos algumas discussões pertinentes que naquele tiveram lugar.

Foto 1: Espaço da Escola de Inverno

A Escola de Inverno dos Centros de Estudos Sociais de Coimbra (Portugal) reuniu em Madrid, no inverno de 2022, ativistas e acadêmicas de várias partes do mundo para aprofundar reflexões sobre temas relacionados com as diferentes vertentes de racismo nos contextos europeus e americanos. Os destaques da Escola foram as participações da ativista franco-algeriana Houria Bouteldja, do porta-voz do sindicato espanhol dos manteros Malick Gueye e da pesquisadora Silvia Rodríguez Maeso, que também foi uma das responsáveis pela organização do evento.

Um dos temas que recebeu grande atenção foi a relação entre racismo institucional e políticas públicas de segurança. A discussão explorou a temática em relação ao Brasil com base na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, processo conhecido como ADPF das favelas, segundo a organização não governamental Conectas e o renomado IBCCRIM. Trata-se de uma ação histórica ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Partido Socialista Brasileiro cujo julgamento terminou no início deste ano. Sua relevância é dita histórica não só pela temática apresentada para análise judicial como também pela inovação na formulação da demanda, que contou com a participação ativa de representantes das comunidades afetadas. O resultado foi também significativo, pois apontou na direção da garantia da vida e segurança da população das favelas do Rio de Janeiro.

Sem querer desmerecê-lo, é preciso entender que a ADPF 635 representa o paradoxo da “vitória/fracasso”. A professora Marie-Bénédicte Dembour propõe este viés de análise em seu artigo sobre o julgamento da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Sander contra Reino Unido (2000), que se refere ao processo criminal por tribunal do júri do cidadão britânico de origem asiática Kudlip Sander. Assim, Dembour demonstra que, não obstante os fatos deste caso estarem relacionados com comentários racistas do tribunal do júri; os méritos do julgamento não exploram as questões relacionadas ao racismo e muito menos fazem o escrutínio do Artigo 14 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estabelece o princípio internacional de jus cogens de proibição de discriminação. Por isso, apesar da decisão favorecer à vítima e condenar o Reino Unido por fatos relacionados à questão do racismo, ou seja, ser uma vitória judicial; ela é, ao mesmo tempo, um fracasso por deixar a questão do racismo institucional escondida nas entrelinhas.

Ao aplicar o constructo de Dembour à ADPF 635, nota-se que os méritos do acórdão trataram, de modo superficial, as denúncias de racismo. Portanto, configura-se o fracasso. No entanto, a ordem judicial de que o Estado do Rio de Janeiro elabore um plano de redução de letalidade policial, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes, entre outras medidas importantes, merece ser celebrada como uma vitória.

A Escola de Inverno terminou com uma visita de estudo guiada pelo bairro madrileno Lavapiés, um bairro pluriétnico por natureza, durante a qual se mapeou geograficamente as práticas de resistência frente ao racismo institucional. Antes de chegar a praça Nelson Mandela, que não esconde a tristeza pela recente evicção do edifício social La Quimera, o percurso revelou o valor simbólico como patrimônio cultural intangível da rua do Urso. De modo sucinto, este local é um lieu de mémoire orgânico em Madrid. Trata-se do sítio onde ocorreu o trágico falecimento do trabalhador informal e imigrante negro de origem senegalesa, Mame Mbaye, ocasionado por uma perseguição policial cruel, segundo organizações da sociedade civil de Madrid. Tal motivação foi negada pelo polícia e pelo poder judicial espanhol em decisão da Audiencia Provincial de Madrid, em 2019. A morte de Mbaye gerou uma grande comoção e é considerada um marco na luta contra o racismo institucional pelos movimentos sociais espanhóis, que não cansam de lembrá-la, apesar da falta brutal de qualquer materialidade simbólica na rua do Urso.

Foto 2: Bairro Lavapiés

Mariana Matos é Doutora em Direito e Investigadora em Direito e Antropologia no Max Planck Institute. Original de Belém do Pará, a autora tem vindo a desenvolver trabalho sobre os direitos das minorias e os direitos dos indígenas.

A pós-memória como coragem cívica, por Sheila Khan

Este artigo científico da autoria de Sheila Khan foi publicado previamente em Comunicação e Sociedade, vol. 29, 2016, pp. 353 – 364.

A Autora vai participar nos próximos debates sobre memória e anticolonialismo, a realizar entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023.