O Tribunal de Justiça e a questão do véu islâmico, por José Luís da Cruz Vilaça*

O recente acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (15 de julho de 2021) em dois casos que lhe foram submetidos por tribunais do trabalho alemães, relativos ao porte do véu islâmico no local de trabalho, deu lugar, mesmo antes de o seu texto estar acessível na íntegra na página web do Tribunal, a comentários díspares e, sobretudo, a títulos simplistas, enganadores e, no mínimo, levianos. Na generalidade dos casos, os comentadores limitavam-se a reproduzir – tant bien que mal – outros comentários publicados, a quente, em língua estrangeira online ou a tomar por jurisprudência autêntica o simples comunicado de imprensa do Tribunal de Justiça, necessariamente sintético e redutor, embora em geral muito bem feito. Além disso, demonstravam ignorar por completo que o Tribunal de Justiça já se havia pronunciado por duas vezes sobre o mesmo tema, em 2017, e que o acórdão atual se inscreve na mesma linha jurisprudencial dos acórdãos de então, baseados em “reenvios prejudiciais” dos supremos tribunais da Bélgica e da França.

Tendo-me sido solicitado um comentário pelo meu amigo Álvaro Vasconcelos, começo por esclarecer que o Tribunal de Justiça não se envolve em qualquer debate ideológico entre laicismo e religião. Em casos como estes (em que estão em causa litígios pendentes em tribunais de qualquer Estado-membro da UE e não, diretamente, recursos para o próprio Tribunal de Justiça), este é solicitado por aqueles tribunais nacionais  a fornecer-lhes os elementos de interpretação do direito da UE aplicável na circunstância, a fim de que os referidos tribunais possam aplicá-lo corretamente nos casos que lhe foram submetidos.

Os casos a que me refiro envolviam a interpretação da diretiva da União sobre a igualdade de tratamento em matéria de emprego e de trabalho, à luz, designadamente, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – em particular dos direitos, nela previstos, à liberdade de consciência e de religião e do direito de trabalhar, por um lado, e do direito à liberdade de empresa, por outro. Convém, a este propósito, sublinhar que a Carta dos Direitos Fundamentais faz parte do Direito Constitucional da UE – embora não integrada formalmente no TUE, é reconhecida expressamente como tendo valor igual ao dos Tratados. Além disso, a Carta não nasceu do zero: inspira-se em instrumentos de direito internacional, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (do Conselho da Europa) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, bem como nas tradições constitucionais comuns aos Estados Membros da UE. Além disso, é o resultado de uma evolução jurisprudencial promovida pelo próprio Tribunal de Justiça que, em sinergia com tribunais constitucionais dos países fundadores das Comunidades Europeias, foi formulando, ao longo dos anos, o núcleo de direitos fundamentais que, hoje em dia, se encontram expressos na Carta. 

Como é sua prática sistemática, o Tribunal de Justiça não dá – nem poderia dar -, em circunstâncias como as dos casos em preço, a prevalência absoluta a qualquer daqueles direitos. Com efeito, só existe, na Carta (como nos instrumentos internacionais e constitucionais que a inspiraram), um direito incondicional e absoluto: o direito fundamental à dignidade humana. Colocado perante as exigências, eventualmente contraditórias em determinado caso, de outros direitos fundamentais, o Tribunal de Justiça não pode deixar de proceder a um balanço equilibrado e fundamentado entre essas exigências, no quadro factual que lhe é exposto pelo tribunal nacional. Por isso é que o exercício é complexo e não se presta a simplificações fáceis. Daí que o Tribunal de Justiça deva ter em conta todas as circunstâncias do caso, por exemplo, saber se as regras internas que uma empresa pretende impor aos seus trabalhadores em nome da neutralidade no exercício da atividade e na relação com os clientes se aplicam sem distinção a todas as religiões e aos seus símbolos visíveis. Por isso também é que não compete ao Tribunal de Justiça decidir o caso no âmbito do qual lhe foi pedida a interpretação do direito da União: é ao tribunal nacional – que conhece todas as circunstâncias jurídicas e factuais que envolvem o caso – que compete fazê-lo. Àqueles que – não sem alguma razão – podem queixar-se da insegurança jurídica que daqui pode resultar, só tenho uma resposta a dar: a segurança jurídica perfeita ou absoluta só existe na ausência de liberdade, isto é, em ditadura!

*jurista, antigo juiz no Tribunal de Justiça da União Europeia

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O lenço da nossa liberdade

A congressista progressista Ihan Omar com a sua companheira Alexandra Ocasio- Cortez

Num editorial do Público, de 15 de Julho, assinado pelo seu diretor, lê-se que a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia de aceitar o despedimento de uma mulher que use o hijab seria uma manifestação de defesa da liberdade. 

Longe de uma análise rigorosa do acórdão, o editorial reflete uma visão da questão do lenço islâmico que éfruto da amálgama entre símbolos culturais e religiosos, extremismo político e subjugação das mulheres. Em suma, de uma pretensa incompatibilidade entre islão e libertação das mulheres, alimentada pelas trágicas desigualdades de género em ditaduras teocráticas como a Arábia Saudita.

“O Tribunal de Justiça não se envolve em qualquer debate ideológico entre laicismo e religião” afirma José Luís da Cruz Vilaça, antigo juiz europeu. O acórdão pondera direitos que podem entrar em conflito, “a liberdade de consciência e de religião e o direito de trabalhar, por um lado, e o exercício do direito à liberdade de empresa, por outro“. E “não dá – nem poderia dar –, em tais circunstâncias, a prevalência absoluta a qualquer destes direitos.” O Tribunal não decidiu, porque “é ao tribunal nacional – que conhece todas as circunstâncias jurídicas e factuais que envolvem o caso – que compete fazê-lo”. O Tribunal afirma que: “a empresa tem que demonstrar que sem a política de neutralidade, a sua liberdade empresarial sofreria consequências negativas”. O que não devia ter sido omitido.

O Tribunal não avaliza uma visão culturalista da identidade europeia. No discurso identitário confluem defensores da identidade cristã da Europa, como o governo polaco, com a extrema-direita laica que fez do anti-islamismo a sua bandeira. Le Pen declarou querer proibir o uso de véu no espaço público, acrescentandoque um dano colateral seria proibir também o uso do quipá judaico. A extrema-direita instrumentaliza uma suposta salvaguarda dos direitos das mulheres, quando tem uma agenda profundamente patriarcal. 

O futuro da democracia não está na defesa de uma conceção identitária, excludente, da cultura europeia,supostamente ameaçada por quem não é completamente de cá, apesar de, em muitos casos, ser nacional de um Estado membro. O que nos une são os valores universais proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, que no seu artigo 18º declara que toda a pessoa tem direito à liberdade de religião e que este direito implica “a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado”. A União Europeia fez desses valores o seu alicerce e integrou-a nos tratados com a Carta Europeia dos Direitos Humanos. São os valores fundamentais que protegem a dignidade humana de todos, nacionais ou migrantes, contra a discriminação e todas as formas de violência.

A Europa é cada vez mais terra de múltiplas crenças e culturas, por isso a laicidade aberta é essencial para garantir a inclusão na diversidade. A laicidade não é a religião civil de Robespierre, um substituto às crenças religiosas, mas sim a neutralidade do Estado perante todas as religiões, o garante de que podem ser livremente praticadas no espaço privado e público. A laicidade quer-se aberta, não excludente.

Se ouvíssemos as mulheres que usam o lenço, talvez percebêssemos que é necessário entender que as muçulmanas, como todos nós, têm múltiplas identidades, e que podem ser crentes e feministas.

Se ouvíssemos as mulheres que usam o lenço, talvez percebêssemos que é necessário entender que as muçulmanas, como todos nós, têm múltiplas identidades, e que podem ser crentes e feministas.

Nos Estados Unidos, sociedade que se assume como multicultural, a questão do véu não se coloca para os sectores progressistas e o debate europeu é visto com espanto. Obama recorreu aos tribunais para proteger as mulheres que usam o hijab e punir os que lhes negavam esse direito.  

Sabemos que em muitas famílias, muçulmanas ou não, a tradição patriarcal impõe, mesmo na Europa democrática, a submissão de muitas a valores conservadores, mas sabemos também que não é pela sua marginalização do espaço público, do trabalho ou da educação que defendemos o seu direito à liberdade, a sua luta pela igualdade e pela dignidade. Não é razoável ver em cada mulher que usa o hijab uma vítima da sociedade patriarcal ou mesmo uma fundamentalista. Estudos demonstram que muitas jovens americanas usam o hijab como forma de emancipação, de afirmação da sua identidade cultural e se revêm na congressista progressista e feminista Ilhan Omar. O mesmo acontece  na Europa, fruto da ascensão dessas mulheres ao espaço público democrático: é aqui que encontram – ou deviam encontrar – a possibilidade de usufruto pleno da liberdade, sem serem vítimas de preconceitos e humilhações. 

Os movimentos feministas têm vindo, em nome da defesa das minorias, a abandonar a denuncia do véu como um atentado à igualdade, a defender a multiculturalidade e a assumir a necessidade de integrar na sua luta as muçulmanas vítimas de múltiplas descriminações, sejam de género, religiosas ou sociais. 

O que é particularmente grave é que a islamofobia se banalizou, contaminando partidos de esquerda e de direita, a imprensa e as redes sociais. A desconstrução dos preconceitos contra as mulheres muçulmanas que alimentam a islamofobia é uma questão democrática vital. Isso não devia ter escapado ao editorialista.  Para isso é preciso, de facto, coragem – coragem para ir a contracorrente da opinião publica dominante, ultrapassando preconceitos e recusando ver em cada mulher que cobre a cabeça uma extremista que quer destruir a república democrática. Defender o direito das mulheres a usarem o lenço islâmico é defender também a nossa liberdade.

A desconstrução dos preconceitos contra as mulheres muçulmanas que alimentam a islamofobia é uma questão democrática vital

 As democracias europeias ou se unem na multiculturalidade, como diz Edgar Morin, ou não terão futuro.

Artigo publicado na edição do jornal Público de 26 de Julho de 2021

Dilemas democráticos e o cadastro ciganofóbico de Ventura, por Marcela Uchôa*

O VII Conselho Nacional do partido de extrema-direita, Chega, que terminou no último sábado, 04 de julho, oficializou a posição do seu líder André Ventura em defesa da criação de um cadastro étnico racial para identificar os problemas que designa como “subsidiodependência” em Portugal. Ao passo que o presidente do partido rejeita que a proposta seja racista, defende o que chama de uma “subsidiodependência crónica, passiva e quase voluntária” de pessoas racializadas, em um discurso que claramente se dirige às comunidades roma/ciganas.

A defesa pública do racismo e o silêncio dos partidos democráticos diante de tal proposta a pretexto de não dar visibilidade à extrema-direita, reacende o debate sobre qual estratégia é mais eficaz: é preciso ignorar ou combater no espaço público os discursos racistas da extrema-dieita? O eleitoralismo e a tentativa de não polemizar contra possíveis votantes, sem dúvidas pesa nessa decisão, mas também direciona os reais interesses políticos/ideológicos dos partidos. Em última análise está o reconhecimento: em defesa de quem e para quem se faz democracia?

Para além de estratégias de política eleitoral, o debate a volta da recolha de dados ético-raciais é amplo dentro dos movimentos sociais. Parte do movimento antirracista já há algum tempo considera importante essa catalogação. Contudo, na contramão da proposta do Chega, o objetivo de introduzir essas informações nos censos é sobretudo o de reconhecer discriminações e construir políticas públicas direcionadas a partir dos resultados obtidos. Em contrapartida, muitos, descrentes da proteção do Estado e do seu real interesse em promover políticas públicas de proteção à minoria sociais – receiam que esses dados possam ser manipulados para uso de propaganda de extrema-direita e sirvam como base para políticas racistas.

Não há dúvidas que a discussão a volta desse tema é ampla, mas é exatamente por isso que precisa ser enfrentada. Considerada como a maior minoria étnica da Europa, a população cigana/Roma é declarada por muitos estudiosos como a mais perseguida e vítima de preconceitos. Desde antes dos horrores do holocausto, até os dias atuais vê-se confrontada com o abandono. A exclusão social imposta à população roma em Portugal está na origem de muitos discursos xenófobos e racistas antigos que ganham força atualmente, na medida em que se constituem como desumanos.

Identificar e combater discursos e práticas racistas que já fazem parte do imaginário de cidadãos comuns, constantemente instrumentalizados pela extrema-direita para fins morais e/ou políticos, deveria constituir-se como um dever de qualquer partido político que se auto intitule democrático. Se a história não pertence ao passado, o papel das estruturas sociais e políticas que intencionalmente, ou por omissão, são responsáveis diretos, ou indiretos, pelo aumento da vigilância do corpo racializado, fazem com que o anti ciganismo crie um perpétuo estado de exceção. Na busca por compreender esse mal sistêmico de forma orgânica, é relevante considerar que mesmo a auto preservação, o sustento ou a conformidade, em última instância, podem resguardar a intenção consciente de infligir deliberadamente danos a outras pessoas.

Neste interregno, a figura de André Ventura e da extrema-direita portuguesa são catalisadores desse imaginário que é instrumentalizado em um discurso populista e violentamente ciganofóbico para crescer eleitoralmente.

Segundo a pesquisa europeia sobre minorias e discriminações de 2017 – EU-MIDIS II – European, 61% das pessoas pertencentes à comunidade cigana em Portugal sentiam-se discriminadas; a taxa mais alta de todos os países Europeus. A investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Silvia Rodríguez Maeso (2014), argumenta como até agora a ciganofobia ilustra a dificuldade de abordar a questão do racismo na sociedade portuguesa. No quadro das políticas públicas os problemas estruturais do racismo são frequentemente despolitizados e individualizados pelo foco em pressupostas características “do outro”. Em vez de reconhecer o racismo estrutural presente na sociedade, o “problema dos ciganos” é abordado em termos de “empoderamento”, “oportunidades”, “integração “e “interculturalidade”, camuflando um problema social e político que precisa ser enfrentado.

*doutoranda em filosofia política na universidade de Coimbra, investigadora no Instituto de Estudos Filosóficos – IEF – UC e membro do grupo de trabalho Ecologias Feministas de Saberes.