Resistir é vencer, por Jorge Costa

O presente artigo de Jorge Pinto foi publicado a 2 de março de 2023 no blog O Sísifo Feliz, aqui

É-me difícil escrever sobre a guerra na Ucrânia. Identifico-me com uma esquerda libertária, internacionalista e pacifista à qual a maioria das guerras são associadas ao desejo de poder de uma minoria e sempre às custas de uma despojada maioria. Não tenho qualquer paixão pela guerra, qualquer fascínio pelas armas usadas ou pelos tipos de avião ou tanque em ação. Não me consigo congratular com a morte de soldados russos, também eles, na sua imensa maioria, vítimas de Putin. Tenho, ainda assim, a perfeita noção de que esta minha posição é, no fundo, fruto do privilégio de não estar na linha da frente do conflito onde a realidade prática se sobrepõe muitas vezes à realidade teórica. Não me posso permitir a neutralidade. Como escreveu George Orwell em relação à Guerra Civil Espanhola, onde o próprio lutou, quando nos confrontamos com a crueldade e futilidade da guerra, somos tentados a dizer que um lado é tão mau quanto o outro, pelo que somos neutros. No entanto, continua Orwell, não podemos ser neutros e dificilmente haverá uma guerra em que não faça diferença qual dos lados ganhe. Um ano após a invasão russa da Ucrânia vejo-me na obrigação de tentar contribuir para a discussão sobre a posição que a esquerda na qual me revejo deveria ter em relação aos próximos passos. Realço que esta é, forçosamente, uma reflexão com mais questionamentos que tentativas de resposta taxativas.

Putin e o colonialismo russo

As razões que terão levado Putin a invadir a Ucrânia, numa decisão quase unipessoal, de acordo com vários relatos, explicam-se nas palavras do próprio. De uma forma direta e que deixa pouca margem a outras interpretações, Putin afirmou que as fronteiras da Federação Russa não eram estanques, que a Ucrânia era uma não existência e criticou ainda Lenine e a sua visão federalista que incluía a nação ucraniana.

É claro que entre essas afirmações lacónicas ia afirmando que havia um regime nazi na Ucrânia que era essencial substituir. No mínimo irónico, vindo de quem há anos tenta desestabilizar a União Europeia financiando vários partidos e plataformas de extrema-direita. Aliás, apenas o sonho de um regresso a um soberanismo quase sempre mistificado pode justificar o modo como alguma esquerda fecha os olhos ao apoio continuado e substancial dado pelo regime de Putin a várias forças da extrema-direita europeia.

Ora, Putin não contaria com um governo ucraniano corajoso, com um exército ucraniano preparado e equipado nem, sobretudo, com um povo ucraniano que se sente como tal. Anna Colin Lebedev traça a história da evolução e reforço do sentimento de identidade ucraniana, com especial foco no período após o final da União Soviética. Ainda assim, alerta a autora nascida em Moscovo, seria um erro considerar que antes da queda da União Soviética os russos e ucranianos constituíam uma mesma sociedade: apesar de ambos fazerem parte do mesmo Estado, com instituições idênticas, a Rússia era o centro e a Ucrânia a periferia. Lebedev continua dizendo que a

“homogeneização foi conseguida esmagando uma série de diferenças, tendo a história comum sido escrita apagando certos aspetos embaraçosos que não cabiam na narrativa oficial. Estas diferenças só vieram a lume nos últimos anos da União Soviética, mas já estavam presentes na vida quotidiana e nas memórias familiares. (…) Duas populações que tinham muito em comum há trinta anos seguiram caminhos diferentes até se tornarem opostas.”

Na mesma linha que Lebedev, Michel Fouchier afirma que desde o século XIX os ucranianos têm vindo a “construir por etapas uma identidade nacional ucraniana distinta da russa, entre avanços tímidos e recuos trágicos, como as políticas estalinistas de aniquilação da cultura ucraniana”. Fouchier, que em 2013 defendia uma Ucrânia como estado neutro entre a Rússia e a UE, denuncia assim o carácter colonialista desta invasão russa.

Esta visão imperialista e colonialista tem sido aliás um dos marcos da governação de Putin. Desde a sua chegada ao poder, as tropas russas já estiveram em ação na Chechénia, Daguestão e Geórgia, deixando sempre atrás de si um rasto de destruição. Nas tropas enviadas agora para a linha da frente na Ucrânia destacam-se os cidadãos das repúblicas periféricas, no que pode ser entendido como uma política imperialista, como um modo de reduzir os riscos de sublevação nessas repúblicas. Não é por acaso que as poucas manifestações contra a guerra e contra o recrutamento compulsivo têm sido observadas sobretudo no Daguestão.

Acometido por esta visão colonialista e imperialista, Putin parece querer recuperar não a construção, pelo menos na teoria, federal da União Soviética, mas antes a construção imperialista da Rússia. Menorizando e desprezando o sentimento de pertença e de “ucranidade”, onde se incluem muitos ucranianos de língua materna russa, Putin nega qualquer possibilidade de autodeterminação do povo ucraniano, vendo-o apenas como parte do seu império ou, na pior das hipóteses, como parte da sua zona de influência e poder. Esse terá sido o principal erro de leitura de Putin, não percebendo que a Ucrânia e, sobretudo, os ucranianos de 2022, não são os mesmos que em 1989.

Com um discurso com laivos de defesa do infame conceito de “espaço vital”, Putin insiste na mirabolante teoria de que a sua invasão foi um ato de defesa contra a NATO e a EU, fruto das ameaças a esse mesmo espaço que vê como seu. Nesta visão estatizante e presa em conceitos do século XX, apaga-se qualquer direito à palavra dos invadidos, vistos apenas como peões sem capacidade de voz ou pensamento próprio. Uma parte da esquerda, tal como já o havia feito em relação à Síria e às outras tentativas de revolução democrática no mundo árabe, alinha neste discurso de luta de blocos, vendo as sublevações populares exclusivamente como fruto da ingerência externa, sempre apontada para a maior potência imperialista, os Estados Unidos.

Uma esquerda internacionalista e pacifista deve ser capaz de pensar fora deste quadro e estar ao lado dos oprimidos, onde quer que eles se encontrem; deve ser capaz de pensar num mundo de relações justas entre os povos, fomentando alianças entre aqueles que se opõem ao autoritarismo. Essa esquerda deve ser capaz de pensar num mundo multipolar sem com isso cair nos riscos, bem elencados pela marxista indiana Kavita Krishnan, de fomentar uma internacional-autoritária. Também por isso é essencial parar Putin na Ucrânia e estar ao lado dos agredidos.

A esquerda e o direito à resistência

As discussões sobre o que está a acontecer na Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022 começam com a terminologia utilizada. Guerra, invasão, conflito, tensões, cada termo com o seu significado e, sobretudo, com a sua carga e objetivo políticos. Não há na terminologia utilizada qualquer possibilidade de neutralidade linguística; não por acaso, são vários os que, ainda hoje, hesitam em utilizar o termo invasão, uma vez que tal pressupõe um invasor e um invadido.

A realidade da invasão, acrescida de ocupação territorial, por parte da Rússia é, ainda assim, bastante clara. Como escreveu o filósofo espanhol Santiago Alba Rico, naquele que me parece ser o melhor texto escrito sobre o tema, “a invasão converteu-se numa guerra graças à resistência ucraniana. É uma guerra de independência.” Perante a invasão, a resistência. Um invasor e um invadido. Um agressor e uma vítima. Um invasor é um invasor, é um invasor, é um invasor.

Relembremos que a resistência ucraniana foi imediata e de cariz popular. Como esquecer as imagens dos primeiros dias da invasão onde, perante um agressor com um potencial militar incomparavelmente superior, mulheres e homens de várias idades e com vivências díspares se uniram para fabricar todo o tipo de utensílios que pudessem atrasar o progresso do invasor, dos cocktails Molotov às barricadas?

Quando são cada vez mais as vozes que nos querem convencer de que o que está a acontecer na Ucrânia e é uma guerra entre blocos, desprezando – e negando – qualquer posição e autodeterminação dos próprios ucranianos, como se estes fossem acessórios a esta história, é importante relembrar que ali há um povo que resiste à invasão e ocupação. Quem tem o direito e a autoridade de dizer a um povo que o seu direito à resistência é ilegítimo?

Os argumentos da luta de blocos têm servido para que se justifique a agressão russa, transfigurando o agressor em vítima. Num esforçado exercício de procura dos piores exemplos, trazem-se para a discussão conflitos passados, bem como outras ações imperialistas, em particular por parte dos Estados Unidos – que, diga-se, continuam a ser a principal potência imperialista no planeta. Ora, nesta lista parecem quase sempre ausentes os exemplos de lutas de libertação passadas.

Os válidos argumentos a favor do final do conflito misturam-se não raras vezes com os argumentos que desculpam a ação de Putin. Destacam-se de entre esses argumentos o carácter corrupto e/ou nazi do governo da Ucrânia, o facto de haver entre os ucranianos combatentes ultranacionalistas, a necessidade de defesa da população ucraniana de língua russa, a morte desnecessária fruto das consequências diretas da guerra, os cidadãos russos afetados pelas sanções impostas ao país, as consequências sobre os cidadãos europeus como resultado da guerra, na forma de aumento do custo de vida, ou ainda o facto de o prolongar da guerra beneficiar a indústria do armamento.

Olhemos com atenção para alguns destes pontos. Em relação ao primeiro, mesmo que o assumindo como verdadeiro, em pouco justificaria a agressão e invasão russa. Aqueles que em 2003 saímos à rua contra a invasão do Iraque não o fizemos em defesa do regime de Sadam Hussein, mas sim em defesa da legitimidade e da lei internacional. E, nessa altura, as palavras de ordem eram claras e sem grandes adendas: não à invasão. Ponto.

Portanto, sendo o regime ucraniano incomparavelmente mais democrático que o iraquiano de Hussein, como justificar a enorme lista de ressalvas feitas por uma parte da esquerda aquando da (tímida) crítica à invasão russa? O caso da Ucrânia é até mais grave, uma vez que há invasão, mas há também ocupação e feita de modo a ser permanente. É uma invasão mais ao estilo de Chipre do Norte que ao estilo do Iraque. Como escreveu Alba Rico no já referido texto,

“(…) uma parte da direita e uma parte da esquerda concordam que é correto bombardear civis noutro país, desde que os bombardeados sejam maus. Partilham a mesma visão niilista sobre o direito internacional e a legalidade; discordam sobre o conteúdo do mal a ser extirpado.”

Quanto a haver combatentes ultranacionalistas e nazis nas fileiras ucranianas, tal parece ser inegável, embora numa escala substancialmente inferior àquela muitas vezes apresentada – e, eventualmente, numa escala bem menor que do lado dos atacantes russos. Esse facto, ainda assim, é problemático e merece a nossa atenção e crítica – de notar também a tentativa ucraniana de redução da influência da extrema-direita ao integrar e dissolver o infame batalhão Azov nas suas fileiras. Mas voltando a exemplos de lutas de libertação passadas, em quantas não houve abusos bem mais graves do que até hoje observámos na Ucrânia? Pensemos na luta de libertação argelina e na chacina dos messalistas do MNA às mãos da FLN – perderia a causa (no caso, a independência da Argélia) validade fruto das ações e métodos da libertação?

Também o argumento da defesa da população de língua russa parece ser limitado no seu alcance. Desde logo, porque assume que a população ucraniana de língua russa é toda ela favorável à decisão de Putin e a uma eventual absorção da Ucrânia (ou partes do país) por parte da Rússia, algo que está por provar. Em segundo lugar, porque faz equivaler a língua à pertença a uma sociedade e culturas o que, assim argumenta Anna Lebedev no já citado livro, não é forçosamente uma realidade na Ucrânia. Também noutras lutas pela independência, como na das antigas colónias portuguesas em África ou da Argélia, o argumento da proteção “dos nossos e da nossa língua” foi apresentado. Mas alguém à esquerda teria então aceitado, digamos, uma Orão francesa (onde a população era maioritariamente de origem europeia) ou então uma recriação da Rodésia em Angola, como alguns colonos de extrema-direita chegaram a sonhar?

Os restantes argumentos são válidos e reais. É inegável que um prolongar da guerra será benéfico para a indústria do armamento, é inegável que mais gente morrerá quanto mais longa for a guerra e é inegável que a guerra implicou consequências para os cidadãos europeus. Em relação a este último ponto, apenas dois breves comentários: em primeiro lugar, se tivermos de fazer alguns sacrifícios coletivos em vista ao apoio a uma luta justa, acredito que é um preço que vale a pena pagar, em segundo lugar, nada obriga a que sejam os mais fracos da sociedade a ter de pagar a fatura; compete-nos a nós exigir aos nossos governos que as coisas se façam de outro modo.

O rearmamento da Europa seria sempre, infelizmente, uma realidade após a invasão da Ucrânia. Tivessem os objetivos de tomada rápida de Kiev sido atingidos, não é sequer de excluir que o reforço do armamento fosse ainda mais drástico e acelerado. Portanto, também aqui, a grande responsabilidade está no ato inicial, a invasão, e não na necessidade de defesa do invadido.

Quanto ao prolongar da guerra e às vítimas que fará, uma vez mais, saibamos ouvir os agredidos. Para tal, temos de sair desta lógica de que o que temos pela frente é exclusivamente uma guerra entre blocos e ouvir os intervenientes a quem repetidamente e não sem laivos de algum imperialismo fazemos orelhas moucas. Afinal, o que desejam os ucranianos? Continuar a lutar pela sua independência, mesmo que à custa de muitos sacrifícios ou uma paz na forma de cedências? Voltemos a olhar para outros exemplos: quantos morreram pela libertação do Vietname? Deveriam os timorenses, vítimas de um genocídio de décadas, ter capitulado às mãos da Indonésia? Devem os sarauís desistir da sua justa luta? Não se teriam evitado muitas mortes se as vítimas tivessem aceitado a paz proposta pelo agressor? Certamente que sim, mas a que custo?

Paz sim, guerra não

A paz o mais rapidamente possível deve ser o nosso principal objetivo. A paz, sim, não a qualquer custo, mas uma paz justa que não beneficie o agressor. E é nessa distinção entre o que é a paz a que todos almejamos que se distinguem as diferentes propostas de ação. Um ano após a invasão, e quando as forças ucranianas já conseguiram recuperar uma parte do território perdido para as forças russas nos primeiros meses da invasão, esta questão é premente. Do lado ucraniano, o apelo associado ao pedido de paz é claro: apenas com mais armas conseguiremos continuar a resistir e assegurar uma paz justa.

Há, portanto, dois caminhos possíveis no imediato: parar o envio de armas para a Ucrânia ou continuar com o seu fornecimento. Aprofundando estas duas possibilidades, as duas hipóteses sobre a mesa são forçar uma paz imediata que se traduz numa capitulação ou continuar a capacitar a vítima na sua defesa, possibilitando a obtenção de uma paz justa.

Seria importante que os que defendem tout court o fim do envio de armas para a Ucrânia tivessem pelo menos a frontalidade de assumir que essa decisão implicaria num futuro quase imediato a capitulação do país, envolvendo certamente a perda de uma parte do seu território. É uma posição legítima, mas é importante que seja assumida com clareza por aqueles que nela acreditam, sem se escudarem numa pretensa inocente e inconsequente defesa da paz.

Resta saber em que se traduziria concretamente esta Pax Putina que sairia desta opção. Desde logo, temos de ter em conta a decisão tomada por Putin no final do mês de setembro de 2022, de anexação oficial de 4 regiões da Ucrânia (Luhansk, Donetsk, Zaporíjia e Kherson), nenhuma delas controlada totalmente pelas suas forças; mais, uma parte desse território pretensamente sob o domínio russo, com destaque para a cidade de Kherson, foi entretanto recuperada pelas forças ucranianas. Um acordo de paz selado sob a pressão do final do envio de armamento passaria então, certamente, pela perda destas 4 regiões, significando isso a cedência por parte da Ucrânia de uma substancial parte hoje sob seu controlo.

Estariam os defensores do fim do armamento da Ucrânia confortáveis com esta hipótese? Mais crítico ainda, quem nos garantiria que Putin se contentaria apenas com essa fração do território e que estas regiões não seriam um equivalente das Sudetas, cuja ocupação antecedeu a II Guerra Mundial?

A segunda hipótese, de continuar a enviar armas, é bastante mais complexa. Desde logo porque, assumindo que o invasor não se retirará por livre vontade, essa decisão irá prolongar o conflito e, possivelmente, ter consequências (económicas) nos restantes países europeus. Também sobre isto, os defensores desta hipótese, nos quais me incluo, devem ser claros.

No apoio a um país em guerra, há sempre uma questão de linhas: onde colocamos a linha do tempo que estamos dispostos a apoiar a vítima? E a linha do financiamento, até quanto estamos dispostos a pagar? Ou ainda, onde traçamos a linha do tipo de armas (e quantidades) que estamos dispostos a dar? A partir de que momento uma arma deixa de ser defensiva para passar a ser ofensiva? E se essa mesma arma que não conseguiu num dia parar o avanço do invasor, servir agora para recuperar território perdido?

Acreditando no direito à defesa dos ucranianos e acreditando na possibilidade de estes conseguirem uma paz justa, parece-me que apenas a hipótese do envio de armas é aquela que garante melhores condições para que tal aconteça. Aceitando que tal possa levar a um prolongamento do conflito, é importante reforçar que o conflito acabaria no dia em que as forças invasoras se retirassem. Assim, os necessários pedidos de paz não devem colocar o mesmo ónus nos agressores e agredidos. Os pedidos de cessar-fogo, essenciais para as negociações devem antes de mais ser direcionados a quem invade.

Por antagónico que possa parecer, o prolongamento do conflito pode ser a única condição de garantia de melhores condições negociais à vítima. É uma constatação crua e difícil para um pacifista, mas exemplos passados mostram que perante um invasor convicto do seu ato e sem vontade de voltar atrás, apenas a resistência garante uma paz justa e duradoura.

O envio de armas, no entanto, não significa um descurar da via diplomática. Muito pelo contrário, a via diplomática deve continuar a ser a privilegiada, podendo o envio de armas pode ser feito sob a condição de um aprofundar da via diplomática. Na defesa do diálogo, todas as opções devem ser tidas em conta, incluindo também a proposta de paz apresentada pela China, por mais hipócrita que possa parecer. São conhecidos vários esforços públicos de diplomacia, sendo de esperar um maior esforço fora dos holofotes. É importante que estes continuem, independentemente das declarações públicas das partes beligerantes. Como resumiu a eurodeputada Manon Aubry (eleita pela La France Insubmisse), “para forçar Putin a retirar as suas tropas, a nossa ajuda financeira e militar é necessária. O caminho para a paz será longo, mas a diplomacia é a única saída.”

Quanto ao que poderia ser um cenário que traduzisse uma paz justa, as hipóteses são várias, sendo o essencial ouvir os anseios dos invadidos. Ainda assim, um par de notas. Em primeiro lugar, parece-me que o ponto inicial da discussão não pode ser outro que não a retirada das tropas russas de todo o território ocupado desde fevereiro de 2022. A partir desse ponto, poderemos pensar em soluções duradouras que garantam a integridade territorial ucraniana tal como ela é reconhecida internacionalmente. Uma federalização do país, um estatuto de neutralidade que garanta a não-adesão a uma aliança militar ou um estatuto à parte para algumas regiões do país são possibilidades em aberto; o importante é que qualquer que venha a ser a hipótese escolhida, o seja por acordo dos ucranianos.

Uma última nota em relação ao fatalismo de a Ucrânia vir a perder território, tantas vezes apresentada pelos defensores do fim do armamento, a qual muitas vezes se complementa com a defesa de uma paz sem vencedores e sem vencidos: várias foram as lutas de libertação onde o invasor foi efetivamente derrotado; e ainda bem que assim foi.

O papel de Portugal e da União Europeia

Os defensores do não armamento da Ucrânia que, de um modo mais ou menos explícito, parecem aceitar os argumentos avançados por Putin para justificar a invasão, apontam muitas vezes para o facto de a visão do chamado “ocidente” não ser a visão global. Há certamente boas razões para o ceticismo relativo à boa-vontade dos Estados Unidos e dos países europeus, desde logo a memória bem presente do colonialismo e imperialismo desses países.

No entanto, como a recente votação nas Nações Unidas pela retirada imediata das tropas russas da Ucrânia demonstrou, são poucos os países a dispor-se abertamente ao lado da Rússia. Contra esta votação, ao lado do país invasor votaram apenas Bielorrússia, Síria, Coreia do Norte, Eritreia, Mali e Nicarágua, todos países onde a democracia é uma distante miragem. A lista de países que se abstiveram é mais longa (32 países) e nela se incluem países como a China ou antigos países colonizados apoiados na sua luta de libertação pela União Soviética.

E onde fica Portugal nesta discussão? Numa recente entrevista, o primeiro-ministro António Costa afirmava esperar atingir os objetivos de 2% do PIB em despesas do setor da defesa, tal como previsto pela pertença à NATO, num futuro próximo. Ainda assim, é cada vez mais importante pensar na autonomia europeia em política de defesa e no seu papel no globo. A NATO, apesar de, graças a Putin, ter sido ressuscitada da sua “morte cerebral”, é uma instituição com objetivos desadequados para uma política pacifista global, à qual importa encontrar alternativa à escala europeia.

O já citado filósofo Santiago Alba Rico apontou, num texto escrito a propósito do primeiro ano após a invasão da Ucrânia, aponta três limites do projeto europeu que ficaram expostos e que me parecem indicar um excelente caderno de encargos: a dependência energética em relação à Rússia, a dependência defensiva em relação aos Estados Unidos e a sua fragilidade democrática.

Em relação à dependência energética, esta é uma excelente oportunidade para reforçar os objetivos de autonomia europeus, apostando em primeiro lugar na redução do consumo desnecessário e melhoria da eficiência, seguida de uma aposta na produção de energia a partir de formas renováveis e de forma mais descentralizada possível, trazendo os cidadãos para o centro da ação política. Esta resposta ecologista tem de ser associada a uma dimensão anticolonialista e de justiça climática, de modo a que a autonomia europeia não seja conseguida à custa de sacrifícios noutros países.

A dependência defensiva em relação aos Estados Unidos e o combate à fragilidade democrática na EU conseguem-se do mesmo modo: reforçando a democraticidade do projeto europeu e, uma vez conseguido esse passo, criando uma estrutura europeia de defesa e de paz que, colaborando com os Estados Unidos, não esteja dele dependente. Num longo ensaio sobre a necessidade de transformar a Europa para proteger as pessoas, a vice-presidenta do governo espanhol, a galega Yolanda Díaz, afirmava:

“A Europa é um pacto intergovernamental que deve tornar-se um projeto democrático, social e federal. Temos de quebrar a falsa alternativa entre as democracias nacionais e a democracia europeia, pois a primeira deve ser o motor da segunda.”

Este ensaio de Díaz deixa prever um bom semestre europeu sob a responsabilidade espanhola, a começar já a partir do mês de julho e que pode ser o início de uma construção europeia feminista, ecologista, pacifista e antirracista. Nesse projeto terão de caber todos aqueles que acreditam numa solução para a Ucrânia que passe pelo direito à autodeterminação dos ucranianos, incluindo aqueles que na Rússia e Bielorrússia se opõem aos regimes que os oprimem.

O apoio por parte dos países europeus à justa luta do povo ucraniano será tão mais consequente quanto mais forte for o apoio da opinião pública desses países. Saibamos então criar condições para que o custo da guerra não recaia sobre os mais frágeis, aproveitando a ocasião para promover uma União Europeia mais justa e fraterna.

Termino com um lema da luta do povo timorense que terá influenciado muita gente da minha geração: Resistir é vencer.

Jorge Costa é Investigador, com estudos  estudo sobre a potencial ligação entre ecologia, rendimento básico incondicional e o republicanismo enquanto teoria política. Autor de “A Liberdade dos Futuros”, pela Tinta da China, e de “Tamem Digo – Uma História de Migrações”, pela Officina Noctua.

O regresso de Bond, por Francisco Seixas da Costa

Eles aí estão, pelo mundo, de volta à ribalta. Nos jornais, na política, na academia, nas fardas. Os viúvos da Guerra Fria.

Desde o início dos anos 90, quando a implosão da União Soviética tinha garantido uma vitória ao ocidente, percebia-se já a sua inquietação. Tinham tido um êxito, claro, mas, às vezes, em tom de desabafo, deixavam cair: “Nesses outros tempos, as coisas eram bem mais claras, éramos nós e eles”. E o facto de “eles” se terem só formalmente transmutado, de ter passado a ser necessário fingir que se acreditava na sua conversão, criava um ambiente estranho, um faz-de-conta em que passaram a ser obrigados a viver.

Por uma trintena de anos, esses saudosos das sombras de um mundo a preto e branco, sentiram-se desconfortáveis, por terem sido forçados a sair da velha e cómoda trincheira maniqueísta.

Tal como James Bond tinha abandonado a caricatura vinda do frio e derivara para novos alvos, também eles se dedicavam a genéricos estratégicos, aos atores não-estatais, como o terrorismo de várias matizes, ou os jihadistas, tudo imerso numa pouco subliminar islamofobia, sucedânea do anticomunismo do antanho.

Agora, o velho Bond já pode regressar. O que se passou no último ano trouxe esse pessoal de volta aos velhos tempos, ao faroeste da vida internacional, à guerra dos bons contra os maus, mesmo que se sintam obrigados a conceder, em privado, referindo-se a alguns incómodos companheiros de jornada, que surgem no apoio à causa da conjuntura, aquilo que um dia Roosevelt disse de Somoza: “He is a son of a bitch, but he is our son of a bitch”. Direitos humanos, liberdade partidária, independência dos tribunais, liberdade dos media -enfim, passam a ser coisas que outros valores mais altos obrigam a pôr entre parêntesis.

Devemos ficar inquietos quando, na partilha de solidariedade com causas anunciadas como essenciais, descobrimos, ao nosso lado, gente que, em tudo resto, não partilha o nosso quadro de valores. Quando, sob o alibi da “force majeure”, nos encontramos de mão na mão com pessoal nada estimável, é muito mau sinal. Ou melhor, no plano internacional, é sinal de que entrámos, alguns felizes, outros descontentes, muitos hipócritas, outros sem mais soluções, na lógica de uma inelutável confrontação. Que é sempre a soleira de uma possível guerra a sério, com tudo ao molho e fé no nuclear.

Agradecer a Putin

Vladimir Putin é o outro lado da moeda dos “cold warriors” de extração ocidental. A Rússia de Gorbachev e Yeltsin, de que o ocidente morre de saudades, acabou por decantar um “apparatchik” que, nem por um segundo, aceitou de bom grado o fim da URSS, que o mesmo é dizer, o saldo da Guerra Fria que essa mesma URSS, goste ela ou não de admitir, perdeu. E, quando se perde uma guerra, há consequências a suportar.

Contudo, Putin sabia que, nessa Rússia humilhada, não estava sozinho, muito longe disso. E, sem surpresas mas com inesperada clareza, deu-nos a conhecer a doutrina subjacente à sua leitura de uma espécie de hierarquia das nacionalidades que a União Soviética federara. As intervenções públicas com que o senhor de Moscovo nos ilustrou, ao longo do ano desta guerra, foram, nesse aspeto, de extrema utilidade didática.

É certo que a Rússia fora acossada pelo ocidente – chamando as coisas pelos nomes, pelos Estados Unidos – com o assumido objetivo de provocar o seu enfraquecimento, mesmo a sua anulação como potencial ameaça. Mas foi ele próprio, Putin, com o seu mutante e cada vez mais preocupante comportamento, ao longo dos anos, quem gerou o caldo de cultura que adubou essa mesma deriva.

Aparentemente, a Rússia de hoje não consegue perceber que os governos dos países que engrossaram as fileiras da NATO, que se foram chegando às fronteiras russas, o fizeram porque quiseram, não foram marionetes, agindo sob a pressão de modernas baionetas americanas. Alguns têm ódios recalcados, uma russofobia evidente. Mas têm também fortes razões para estarem inquietos. São cúmplices, dessa forma, do cerco americano à Rússia, do incumprimento da promessa política americana de não alargar a NATO? É óbvio que sim, mas Moscovo tem aqui a paga da sua preocupante deriva autocrática.

Talvez a Rússia possa agora perceber melhor que foi necessário um sismo estratégico para ver duas sólidas democracias, como a Suécia e a Finlândia, que tinham feito da neutralidade o DNA da sua identidade internacional, lançarem-se, por completo, nos braços da aliança militar ocidental. E que foi Putin, sem a menor sombra de dúvida, o detonador desse movimento.

Aqueles que, deste lado do mundo, se sentem agora mais à vontade com a dualidade estratégica que aí está reinstalada, devem assim um agradecimento à ajuda dada por Putin.

A invasão da Ucrânia e, no topo do bolo, a canhestra integração na Federação dos oblasts onde havia uma apreciável população russa, precedida de uns ridículos referendos, revela que Moscovo vive numa espécie de “second life” em matéria de direito internacional, de que já tinha dado mostras na questão da Abcásia e da Ossétia do Sul.

Por muitas voltas que as coisas possam dar, a Rússia pode esperar sentada se acaso tem a mínima esperança de que esta sua “nova” ordem internacional venha a prevalecer.

A China a bordo

A entrada das tropas russas na Ucrânia apanhou a China desprevenida? Talvez nunca venhamos a saber o teor da conversa entre Xi e Putin, nas vésperas da olimpíada de Inverno.

O que a China sabia, o que todos sabíamos, é que o mal-estar dos EUA em face da sua afirmação internacional caminhava num crescendo. E Pequim não ajudou: por exemplo, não se coibiu de alimentar a corda retórica, na tensão com Taiwan, porque lhe era essencial em ano de congresso do partido.

Os últimos anos pareciam apontar, contudo, para o interesse chinês de consolidar o seu projeto de financiamento de infra-estruturas, a Nova Rota da Seda, um plano que, tudo assim o indicava, seria favorecido por um mundo em relativa paz.

O ciclo de distração americana no Médio Oriente – inaugurado com o 11 de setembro, prolongado com a segunda guerra no Iraque e culminado na saída do Afeganistão – tinha dado a Pequim, entretanto, duas décadas de simpática desatenção por parte de Washington. Isso tinha acabado e era óbvio que os EUA iriam agora mobilizar os seus “compagnons de route” asiáticos para um cerco de suspeição face a Pequim.

O que não estava nas cartas é que a China se veria obrigada, na sequência da reação ocidental à entrada da Rússia na Ucrânia, a coreografar um relativo alinhamento com Moscovo. Mas era impossível à China furtar-se a ele, mesmo se o “timing” para este inevitável agravamento da relação com o ocidente não fosse, como não era, o seu.

Agora, a polarização com Washington é inevitável, restando a Pequim tentar encontrar prosélitos em todos os continentes, oferecendo-lhes razões e dinheiro para não se deixarem seduzir pelo poder americano. Enfim, uma espécie de “déjà vu” face ao período posterior à Segunda Guerra.

Ah! E há a Europa!

O parceiro dos americanos na nova Guerra Fria é, naturalmente, a Europa.

Nesta crise, ficaram provadas três coisas.

A primeira é que os EUA continuam a ser um poder europeu insubstituível, único verdadeiro provedor de resposta a ameaças da Rússia, com o Reino Unido à ilharga e os restantes a velocidades e vontades diversas.

A segunda é que a Europa de Bruxelas, depois do subliminar golpe de Estado institucional em que a Comissão subalternizou um aturdido Conselho, pela fragilidade conjuntural do eixo franco-alemão, quase pede meças à retórica jingoista da NATO, mobilizada pelo medo e pela subordinação ao clamor mediático, elevado à dignidade de legitimidade democrática.

A terceira é que, por muito que o velho continente continue a agitar-se em torno da ideia de obter uma autonomia estratégica, em matéria de segurança e defesa, esta guerra terá provado, pelo papel uma vez mais desempenhado pelos EUA no continente, que embora essa fosse porventura uma bela ideia, pode continuar a ser só isso.

Agora, a guerra

Os Estados Unidos, o dono do jogo, que até agora tem providenciado a esmagadora maioria do armamento dado à Ucrânia, mostra vontade de continuar a favorecer a resistência desta face à agressão russa, não forçando Kiev a qualquer cedência territorial. Com ou sem reserva mental por parte de alguns Estados, a Europa segue Washington, em ordem unida. Os EUA terão decidido que vale a pena correr o risco de contrariar a bravata russa de que pode vir a recorrer às armas nucleares. Só resta esperar, para a segurança coletiva, que as contas lhes (nos) não saiam furadas.

Francisco Seixas da Costa foi diplomata durante quatro décadas e, hoje, é consultor estratégico, investigador universitário e comentador de assuntos internacionais na comunicação social.

Ucrânia: A paz democrática europeia, por Álvaro Vasconcelos

Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra, atento às lições da Primeira.Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo. 

Já lá vão 12 longuíssimos meses; a guerra, com a sua sede de morte, destruição e milhões de refugiados, voltou na sua forma mais brutal. Com a invasão imperial de um país soberano, Putin não só rompeu com a Carta das Nações Unidas como põe em causa a ordem europeia de paz, construída no fim da hecatombe que tinha sido a primeira metade do século XX. 

 No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI. 

No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI. 

Em plena Segunda Guerra Mundial, homens de boa vontade, conscientes de tudo o que não se tinha feito no período entre as duas guerras, ousaram pensar a construção de um sistema de paz democrática na Europa – construir uma Europa pacífica, onde pela cooperação e a interdependência económica a guerra fosse impensável. Este sistema concretizou-se na integração europeia e, com ela, na reconciliação franco-alemã. Foi –ainda é – uma construção lenta e difícil, cheia de imperfeições como todas as construções humanas, mas única num mundo ainda regido pela política de potência, temperada pelos princípios da ordem internacional. Primeiro, apenas na Europa ocidental, democrática, sem as ditaduras da Europa do Sul. 

Na “Europa raptada”, das ditaduras, de que fala Kundera, o exército soviético invadiu a Hungria, em 1956, e a Checoslováquia, em 1968.

Após a queda do Muro de Berlim, a paz democrática estendeu-se para o centro e leste europeu. No início dos anos 1990, visitei Moscovo e a aspiração de muitos dos que rodeavam Ieltsin era fazer parte desse grande projeto europeu. Havia mesmo quem falasse da redução do arsenal nuclear russo ao nível da França e do Reino Unido, para que a Rússia fosse aceite nas comunidades europeias. 

Foi também nos anos 1990, na antiga Jugoslávia, que despertaram os monstros adormecidos da Europa – um sério aviso de que o nacionalismo extremo identitário não tinha ficado sepultado nos escombros da Segunda Guerra. Mas isso não abalou a convicção no projeto europeu de paz. Os países dos Balcãs, passada a guerra, fizeram seu o sonho da integração europeia.

A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.

A chegada ao poder de Vladimir Putin, facilitada pela miséria criada pelas políticas neoliberais de Ieltsin, afastou a Rússia da democracia e da Europa. 

A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.

O seu discurso comprova-o, enaltecendo a masculinidade guerreira, o nacionalismo identitário, o obscurantismo neofascista, justificando a invasão da Ucrânia como uma guerra de civilizações contra as democracias que descreve como decadentes, pedófilas e promotoras dos direitos das comunidades LGBTQ. Trata-se de uma ideologia iliberal, reacionária, que mina também por dentro, importa não esquecer, Estados da União Europeia. 

Putin quer impedir que a Ucrânia se consolide como democracia e que o projeto de paz democrática volte a contaminar a Rússia. 

Para que a paz volte à Europa, é preciso que a invasão da Ucrânia fracasse, que o país consolide a sua democracia, essencial à convivência numa sociedade multicultural, e integre a União Europeia. 

Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra. Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo. 

Na televisão, vejo analistas, com mais ou menos convicções democráticas, e compreendo que alguns são filhos da Guerra Fria. Passaram uma parte da sua vida em funções do aparelho de Estado, sobretudo no sector militar, a estudar geopolítica, a fazer jogos de guerra e a aprender a teoria do equilíbrio do terror. Olham para a guerra como um jogo de xadrez, em que as vítimas são apenas peões. Indigna-me que alguns deles não manifestem empatia humana pelas vítimas, que não denunciem os crimes contra a humanidade.

Como escreveram, numa célebre carta, Habermas e Derrida, o que levou milhões de europeus a manifestarem-se contra a invasão do Iraque, em 2003, foi a recusa das guerras de conquista, a memória da trágica experiência das guerras coloniais europeias. 

Foi a oposição às guerras imperiais que levou muitos da minha geração a abraçar a causa da luta contra a guerra colonial portuguesa.

O projeto de paz democrática na Europa poderá servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.

Hoje, 74% dos europeus concorda com o apoio da União à Ucrânia, convicta do imperativo de combater a guerra imperial de Putin. 

A União Europeia não pode ser uma grande Suíça rodeada pelas tragédias do mundo e com uma Rússia imperialista nas suas fronteiras. 

Durante a Guerra Fria a NATO, e os Estados Unidos, tiveram o papel crucial de dissuadir qualquer aventura militar de Moscovo para além das fronteiras do Pacto de Varsóvia. 

Hoje, a União tem que ser capaz de se defender militarmente e preservar os valores da associação pacífica entre os Estados. Um dilema, como esta guerra demonstra, que ainda não foi capaz de resolver, daí a dependência do aliado americano para garantir o destino europeu democrático da Ucrânia. Um aliado americano de futuro incerto, como Trump, mas também Bush, demonstraram. 

O apoio indefetível à Ucrânia deve servir para uma visão europeia autónoma, não só de um sistema que garanta a paz no continente, mas também da ordem internacional. Se o fizer, fracassada a aventura militar russa, a sobrevivência do projeto de paz democrática na Europa poderá então servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.