
A derrocada do Ocidente no Afeganistão não é uma boa noticia, particularmente dada a natureza das alternativas, mas é um alerta para as consequências da incoerência política.
Os factos são inequívocos: 20 anos depois, os taliban estão de regresso ao poder, as forças americanas e dos seus aliados da NATO foram derrotadas. Para trás ficam muitos dos que acreditaram quando lhes disseram que a invasão do Afeganistão tinha como objetivo garantir os seus direitos fundamentais, nomeadamente os direitos das mulheres. Daí o sentimento de traição ao ouvirem a confissão do Presidente Joe Biden: os EUA estiveram no Afeganistão apenas para combater o terrorismo.
No livro Syngué Sabour – Pedra de Paciência, do escritor franco-afegão Atiq Rahimi, uma jovem esposa vela o marido em coma, um combatente de todas as guerras do Afeganistão. Na tradição persa, o Syngué Sabour é uma pedra que absorbe todas as confissões do mundo e depois rebenta. A jovem esposa assume a sua liberdade e fala sem medo.
Todos somos tentados, como no romance, a partilhar a nossa inquietação sobre o futuro dos afegãos, de que certa forma também é o nosso. O fracasso do Ocidente no Afeganistão é visto como um sinal de um mundo policêntrico onde o refluxo democrático nos ameaça.
O fracasso do Ocidente no Afeganistão é visto como um sinal de um mundo policêntrico onde o refluxo democrático nos ameaça.
Quando Biden chegou ao poder, já os americanos tinham decidido há muito que não conseguiam por termo à insurreição talibã. Em fevereiro de 2020, Trump aceitou a transferência do poder para os taliban, e foi com eles que negociou, sem o governo afegão. O governo de Cabul e o seu exército de 300 mil homens, apresentado como componente essencial dos esforços de construção de um Estado afegão democrático, era visto como um governo corrupto e impopular.
Se tivéssemos prestado atenção ao Afeganistão antes das imagens da entrada dos taliban em Cabul, sem dispararem um único tiro, talvez tivéssemos compreendido que as guerras de Bush também ali fracassaram. As consequências dramáticas da retirada não podem apagar vinte anos de guerra e as suas devastadoras consequências humanas e sociais.
Em 2009, quando eu estava no Instituto de Estudos de Segurança da UE, um dos seus investigadores, o saudoso Luís Peral, fez parte de um grupo que foi para o Afeganistão, a convite do general Stanley McChrystal, que tinha sido nomeado por Obama para definir uma nova estratégia para “travar o momento taliban e derrotar a insurreição” e ganhar a batalha com os “taliban para conquistar os corações e as mentes dos afegãos”.
Luís Peral foi um dos autores de um relatório que criticava a dependência da estratégia militar. A ação militar ocidental não criava instituições que pudessem sustentar o Estado e garantir a perenidade dos direitos dos afegãos.
Em 2011, Luís Peral elaborou um relatório para o Instituto onde alertava profeticamente “que o governo do Afeganistão poderá não sobreviver a uma retirada das forças internacionais”, propondo uma alteração fundamental: que a responsabilidade da gestão da crise afegã passasse para a ONU, dando prioridade às componentes políticas e económicas e à reconciliação nacional, que fosse tomada em consideração, sem arrogância, a realidade social do país. Que nesse esforço fossem envolvidos os países vizinhos, desde logo o Paquistão. Os americanos e os seus aliados fizeram exatamente o contrário, aumentando a presença militar, que chegou a 130 mil homens, e isolando-se ainda mais da população com as mortes de civis-cerca de 240 mil em 20 anos -muitas delas em consequência dos bombardeamentos americanos e dos ataques com drones.
A retirada dos americanos, da NATO e dos seus aliados, é um banho de realidade sobre as mudanças destes 20 anos. O mundo já não é unipolar e os atores relevantes no Afeganistão são as potências da região. Em primeiro lugar o Paquistão, cujos serviços de segurança sempre apoiaram os taliban. Em seguida, a China, com o seu poderio económico, e o Irão, que quer acreditar que os talibans não vão perseguir, desta vez, a minoria Xiita do Afeganistão, vê com prazer os americanos saírem de uma das suas fronteiras. A Índia pode e deve ser um ator relevante, mas para isso terá que superar a xenofobia hindu do governo Modi. Moscovo procura ganhar influência na Ásia central, uma presença abalada com a derrota soviética no Afeganistão às mãos dos talibãs e outros guerrilheiros apoiados pelos Estados Unidos.
À pedra de paciência confessarei que hoje as democracias ocidentais e as potências regionais esperam dos taliban exatamente a mesma coisa: que não permitam que grupos como a Al-Qaeda se baseiem no seu território, que estabilizem o país e controlem o fluxo de emigrantes – em suma, que o Afeganistão seja uma nova Arábia Saudita ou um Egito. E isso é exatamente o que os taliban prometem, mas terão dificuldades em cumprir.
Lembrarei que logo a 5 de agosto, perante o avanço taliban, seis Estados europeus (Áustria, Dinamarca, Grécia, Alemanha, Holanda e Bélgica) escreveram à Presidente da Comissão pedindo que fosse acelerado o repatriamento dos afegãos que tinham entrado ilegalmente na União.
Lembrarei que a União Europeia tem a obrigação ética e legal de receber refugiados, não só os que trabalharam para a coligação internacional, mas também os que ao longo destes anos puderam respirar, em Cabul e nalgumas cidades, mais livremente.
Lembrarei que a União Europeia tem a obrigação ética e legal de receber, não só os que trabalharam para a coligação internacional, mas também os que ao longo destes anos puderam respirar, em Cabul e nalgumas cidades, mais livremente.
Gritarei indignado que se as potências democráticas continuarem a trair os valores que sustentam a sua legitimidade, se a política internacional se nortear por um realismo cínico, o futuro da democracia está perdido.
Não basta desabafar para a pedra de paciência, é necessário ouvir as vozes que nos chegam do Afeganistão, nomeadamente dos defensores dos direitos humanos, e apoiar o país a enfrentar a crise humanitária que a guerra deixou. Sabemos que se a pedra rebentar, os estilhaços ultrapassarão largamente as fronteiras do Afeganistão.