Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra, atento às lições da Primeira.Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo.
Já lá vão 12 longuíssimos meses; a guerra, com a sua sede de morte, destruição e milhões de refugiados, voltou na sua forma mais brutal. Com a invasão imperial de um país soberano, Putin não só rompeu com a Carta das Nações Unidas como põe em causa a ordem europeia de paz, construída no fim da hecatombe que tinha sido a primeira metade do século XX.
No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI.
No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI.
Em plena Segunda Guerra Mundial, homens de boa vontade, conscientes de tudo o que não se tinha feito no período entre as duas guerras, ousaram pensar a construção de um sistema de paz democrática na Europa – construir uma Europa pacífica, onde pela cooperação e a interdependência económica a guerra fosse impensável. Este sistema concretizou-se na integração europeia e, com ela, na reconciliação franco-alemã. Foi –ainda é – uma construção lenta e difícil, cheia de imperfeições como todas as construções humanas, mas única num mundo ainda regido pela política de potência, temperada pelos princípios da ordem internacional. Primeiro, apenas na Europa ocidental, democrática, sem as ditaduras da Europa do Sul.
Na “Europa raptada”, das ditaduras, de que fala Kundera, o exército soviético invadiu a Hungria, em 1956, e a Checoslováquia, em 1968.
Após a queda do Muro de Berlim, a paz democrática estendeu-se para o centro e leste europeu. No início dos anos 1990, visitei Moscovo e a aspiração de muitos dos que rodeavam Ieltsin era fazer parte desse grande projeto europeu. Havia mesmo quem falasse da redução do arsenal nuclear russo ao nível da França e do Reino Unido, para que a Rússia fosse aceite nas comunidades europeias.
Foi também nos anos 1990, na antiga Jugoslávia, que despertaram os monstros adormecidos da Europa – um sério aviso de que o nacionalismo extremo identitário não tinha ficado sepultado nos escombros da Segunda Guerra. Mas isso não abalou a convicção no projeto europeu de paz. Os países dos Balcãs, passada a guerra, fizeram seu o sonho da integração europeia.
A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.
A chegada ao poder de Vladimir Putin, facilitada pela miséria criada pelas políticas neoliberais de Ieltsin, afastou a Rússia da democracia e da Europa.
A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.
O seu discurso comprova-o, enaltecendo a masculinidade guerreira, o nacionalismo identitário, o obscurantismo neofascista, justificando a invasão da Ucrânia como uma guerra de civilizações contra as democracias que descreve como decadentes, pedófilas e promotoras dos direitos das comunidades LGBTQ. Trata-se de uma ideologia iliberal, reacionária, que mina também por dentro, importa não esquecer, Estados da União Europeia.
Putin quer impedir que a Ucrânia se consolide como democracia e que o projeto de paz democrática volte a contaminar a Rússia.
Para que a paz volte à Europa, é preciso que a invasão da Ucrânia fracasse, que o país consolide a sua democracia, essencial à convivência numa sociedade multicultural, e integre a União Europeia.
Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra. Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo.
Na televisão, vejo analistas, com mais ou menos convicções democráticas, e compreendo que alguns são filhos da Guerra Fria. Passaram uma parte da sua vida em funções do aparelho de Estado, sobretudo no sector militar, a estudar geopolítica, a fazer jogos de guerra e a aprender a teoria do equilíbrio do terror. Olham para a guerra como um jogo de xadrez, em que as vítimas são apenas peões. Indigna-me que alguns deles não manifestem empatia humana pelas vítimas, que não denunciem os crimes contra a humanidade.
Como escreveram, numa célebre carta, Habermas e Derrida, o que levou milhões de europeus a manifestarem-se contra a invasão do Iraque, em 2003, foi a recusa das guerras de conquista, a memória da trágica experiência das guerras coloniais europeias.
Foi a oposição às guerras imperiais que levou muitos da minha geração a abraçar a causa da luta contra a guerra colonial portuguesa.
O projeto de paz democrática na Europa poderá servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.
Hoje, 74% dos europeus concorda com o apoio da União à Ucrânia, convicta do imperativo de combater a guerra imperial de Putin.
A União Europeia não pode ser uma grande Suíça rodeada pelas tragédias do mundo e com uma Rússia imperialista nas suas fronteiras.
Durante a Guerra Fria a NATO, e os Estados Unidos, tiveram o papel crucial de dissuadir qualquer aventura militar de Moscovo para além das fronteiras do Pacto de Varsóvia.
Hoje, a União tem que ser capaz de se defender militarmente e preservar os valores da associação pacífica entre os Estados. Um dilema, como esta guerra demonstra, que ainda não foi capaz de resolver, daí a dependência do aliado americano para garantir o destino europeu democrático da Ucrânia. Um aliado americano de futuro incerto, como Trump, mas também Bush, demonstraram.
O apoio indefetível à Ucrânia deve servir para uma visão europeia autónoma, não só de um sistema que garanta a paz no continente, mas também da ordem internacional. Se o fizer, fracassada a aventura militar russa, a sobrevivência do projeto de paz democrática na Europa poderá então servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.