Ucrânia: A paz democrática europeia, por Álvaro Vasconcelos

Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra, atento às lições da Primeira.Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo. 

Já lá vão 12 longuíssimos meses; a guerra, com a sua sede de morte, destruição e milhões de refugiados, voltou na sua forma mais brutal. Com a invasão imperial de um país soberano, Putin não só rompeu com a Carta das Nações Unidas como põe em causa a ordem europeia de paz, construída no fim da hecatombe que tinha sido a primeira metade do século XX. 

 No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI. 

No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI. 

Em plena Segunda Guerra Mundial, homens de boa vontade, conscientes de tudo o que não se tinha feito no período entre as duas guerras, ousaram pensar a construção de um sistema de paz democrática na Europa – construir uma Europa pacífica, onde pela cooperação e a interdependência económica a guerra fosse impensável. Este sistema concretizou-se na integração europeia e, com ela, na reconciliação franco-alemã. Foi –ainda é – uma construção lenta e difícil, cheia de imperfeições como todas as construções humanas, mas única num mundo ainda regido pela política de potência, temperada pelos princípios da ordem internacional. Primeiro, apenas na Europa ocidental, democrática, sem as ditaduras da Europa do Sul. 

Na “Europa raptada”, das ditaduras, de que fala Kundera, o exército soviético invadiu a Hungria, em 1956, e a Checoslováquia, em 1968.

Após a queda do Muro de Berlim, a paz democrática estendeu-se para o centro e leste europeu. No início dos anos 1990, visitei Moscovo e a aspiração de muitos dos que rodeavam Ieltsin era fazer parte desse grande projeto europeu. Havia mesmo quem falasse da redução do arsenal nuclear russo ao nível da França e do Reino Unido, para que a Rússia fosse aceite nas comunidades europeias. 

Foi também nos anos 1990, na antiga Jugoslávia, que despertaram os monstros adormecidos da Europa – um sério aviso de que o nacionalismo extremo identitário não tinha ficado sepultado nos escombros da Segunda Guerra. Mas isso não abalou a convicção no projeto europeu de paz. Os países dos Balcãs, passada a guerra, fizeram seu o sonho da integração europeia.

A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.

A chegada ao poder de Vladimir Putin, facilitada pela miséria criada pelas políticas neoliberais de Ieltsin, afastou a Rússia da democracia e da Europa. 

A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.

O seu discurso comprova-o, enaltecendo a masculinidade guerreira, o nacionalismo identitário, o obscurantismo neofascista, justificando a invasão da Ucrânia como uma guerra de civilizações contra as democracias que descreve como decadentes, pedófilas e promotoras dos direitos das comunidades LGBTQ. Trata-se de uma ideologia iliberal, reacionária, que mina também por dentro, importa não esquecer, Estados da União Europeia. 

Putin quer impedir que a Ucrânia se consolide como democracia e que o projeto de paz democrática volte a contaminar a Rússia. 

Para que a paz volte à Europa, é preciso que a invasão da Ucrânia fracasse, que o país consolide a sua democracia, essencial à convivência numa sociedade multicultural, e integre a União Europeia. 

Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra. Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo. 

Na televisão, vejo analistas, com mais ou menos convicções democráticas, e compreendo que alguns são filhos da Guerra Fria. Passaram uma parte da sua vida em funções do aparelho de Estado, sobretudo no sector militar, a estudar geopolítica, a fazer jogos de guerra e a aprender a teoria do equilíbrio do terror. Olham para a guerra como um jogo de xadrez, em que as vítimas são apenas peões. Indigna-me que alguns deles não manifestem empatia humana pelas vítimas, que não denunciem os crimes contra a humanidade.

Como escreveram, numa célebre carta, Habermas e Derrida, o que levou milhões de europeus a manifestarem-se contra a invasão do Iraque, em 2003, foi a recusa das guerras de conquista, a memória da trágica experiência das guerras coloniais europeias. 

Foi a oposição às guerras imperiais que levou muitos da minha geração a abraçar a causa da luta contra a guerra colonial portuguesa.

O projeto de paz democrática na Europa poderá servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.

Hoje, 74% dos europeus concorda com o apoio da União à Ucrânia, convicta do imperativo de combater a guerra imperial de Putin. 

A União Europeia não pode ser uma grande Suíça rodeada pelas tragédias do mundo e com uma Rússia imperialista nas suas fronteiras. 

Durante a Guerra Fria a NATO, e os Estados Unidos, tiveram o papel crucial de dissuadir qualquer aventura militar de Moscovo para além das fronteiras do Pacto de Varsóvia. 

Hoje, a União tem que ser capaz de se defender militarmente e preservar os valores da associação pacífica entre os Estados. Um dilema, como esta guerra demonstra, que ainda não foi capaz de resolver, daí a dependência do aliado americano para garantir o destino europeu democrático da Ucrânia. Um aliado americano de futuro incerto, como Trump, mas também Bush, demonstraram. 

O apoio indefetível à Ucrânia deve servir para uma visão europeia autónoma, não só de um sistema que garanta a paz no continente, mas também da ordem internacional. Se o fizer, fracassada a aventura militar russa, a sobrevivência do projeto de paz democrática na Europa poderá então servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.

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Eu não sou o ‘Outro’. Estranhos e Ausentes no Portugal a Lápis de Cor, por Sheila Khan

O presente ensaio foi publicado pelo Gerador a 20/02/2023.

-Viu aquela fotografia? – pergunta. –

O mais importante não eram as pessoas que apareciam na imagem.

Eram as que faltavam.Mia Couto, 2020, pp.67

            Enquanto escrevo esta reflexão que almejo partilhável e sentida por muitos leitores, não posso deixar de lado alguma celeuma em torno do pedido do músico português Dino D’Santiago[1], que nos convocou para a necessidade de criarmos um novo  Hino português, com uma letra mais contemporânea e adequada ao nosso presente. Mas, qual presente? Este em que ainda nos confrontamos com longos silêncios e esquecimentos do que somos em relação ao nosso passado colonial? Este presente em que, ainda, está por cumprir uma cidadania plural, diversa e multicultural? Perdoem-me começar esta reflexão com perguntas, como se daquelas quisesse de sopetão tirar algumas conclusões.  Mas, na verdade, parece-me bastante infrutífero e precoce começarmos por um hino, quando no nosso dia-a-dia ainda nos deparamos com a cegueira entre nós portugueses. Sim, estranhamento entre portugueses que não se percepcionam como fazendo parte de uma mesma moldura histórica, desse encontro longínquo e antigo no tempo e que fez de nós todos gente tão misturada que se torna quase uma estupidez a persistência de uma classificação entre portugueses e os ‘Outros’.  Mas, na verdade é aqui que está o espinho desta nossa avidez, a de nos imaginarmos melhor do aqueles que assumimos como diferentes à luz de dimensões como a cor da pele, a fisionomia, o estatuto sócio-económico, o local onde estudamos, onde habitamos, dimensões que vamos absorvendo e construindo como pilares culturais e identitários que nos hierarquizam e nos distinguem como melhores, mais civilizados e mais fortes. 

            A memória é um assunto delicado e complexo para o ser humano. Somos altamente seletivos e comprometidos com uma determinada narrativa mais luminosa e enriquecedora da nossa história. Em O Esplendor de Portugal, o escritor António Lobo Antunes (1997) tece uma das mais audazes e verdadeiras características não apenas dos portugueses brancos no Ultramar, mas, certamente do ser humano, isto é o comportamento de quem tem ou pensa que tem poder. Neste romance em torno dos momentos finais da guerra colonial e do primórdios da guerra civil em Angola, os vários personagens vão desconstruindo o imaginário de grandeza, de império encurralado nas mentes daqueles que do pouco que detinham sentiam que eram grandes senhores de uma terra que não lhes pertencia. Com rigor, fomos descalçando da nossa visão histórica o que na verdade sempre fomos: pequenos para os europeus e poderosos para aqueles que por nós eram espoliados e subordinados na experiência de uma falácia de domínio. As independências dos nossos territórios colonizados demonstraram-nos que estávamos longe de ser um corpo nacional coeso (Khan, 2009, 2015). Pelo contrário, a chegada de milhares de retornados como de muitos africanos e de indianos reféns dessa grandiosidade portuguesa descarrilou em realidades abissais entre si (Figueiredo, 2022, Martins, 2015). Fomos alinhavando entre nós com a chegada da democracia em Portugal, esta convicção de que estávamos preparados para acolhermos a diversidade, a diferença entre nós. Mas na verdade, o que fazemos é apenas tricotar com retórica diplomática enriquecida com instituições fracas esta versão de um país pós-colonial, multicultural e cosmopolita. Os nossos currículos não nos ensinam nada do que fomos e do que somos; as nossas instituições permanecem grandes arautos de racismo e de discriminação. Os nossos media são todos homogéneos no seu corpo profissional. Enquanto estivermos demasiado suscetíveis ao aspecto dos outros, ou permanecermos estupefactos por termos uma Joacine Katar Moreira como deputada, uma Francisca Van Dúnem como ministra da Justiça, enquanto não virmos nos principais meios de comunicação, nas nossas universidades, nos lugares de destaque da política e da cidadania essa verdadeira ecologia de pessoas e de saberes, estaremos longe das intenções vibrantes com que cantamos e nos emocionamos com o Hino Português.

A multiplicidade humana deste Portugal ainda está muito esbatida e encolhida numa visão monocromática, onde a igualdade entre todos é apenas uma nota de rodapé no que poderíamos designar como um Portugal a Lápis de Cor. Como tão bem observou a estudiosa Manuela Cruzeiro, “somos exímios gestores do silêncio, mesmo quando falamos” (2004, p.31). E a verdade é que neste que é um Portugal democrático, muitos foram ficando pelo caminho, as suas histórias, as suas memórias, as suas experiências tão relevantes para comporem e enriquecerem o grande mosaico humanamente colorido que é a historicidade portuguesa (Khan, 2015). Porém, é inevitável fugir aos esquecimentos e às ausências validadas e consentidas. Hoje, mais do que nunca, novas vozes emanam uma força e uma vitalidade incrível, porta vozes  de um dever de memória e de reparação histórica (Khan, 2021,Vasconcelos, 2022) com os quais será bem mais inteira e lúcida a oportunidade de repensar e de reformular o hino português. Se não tocarmos com a nossa consciência nesta ferida que é solidão pós-colonial (Khan, 2021), desconhecimento histórico e estranheza sem fraternidade, não valerá o esforço de um novo hino. É preciso sentir o caroço duro desta que é a nossa realidade pós-colonial portuguesa, onde evitamos falar de crime racial[2], onde dizemos a uns e outros ‘preto vai para a tua terra’.

Quando a diversidade se cumprir e nos pertencer com transparência e cidadania concreta, aí sim, arregaço as mangas e sento-me a aprender, como  n’Os Meninos do Huambo[3]: “coisas de sonho e de verdade (…)/ como se ganha uma bandeira/ (…) o que custou a liberdade”.

Referências Bibliográficas

Antunes, António Lobo. (1997).O Esplendor de Portugal. Lisboa: Dom Quixote.

Couto, Mia. (2020). O Mapeador de ausências. Lisboa: Caminho.

Cruzeiro, Maria Manuela. (2004). As mulheres e a Guerra Colonial: Um silêncio demasiado ruidoso. Revista Crítica de Ciências Sociais, 68, 31-41. DOI : 10.4000/rccs.1077

Figueiredo, Isabela. (2022). Um cão no meio do caminho. Lisboa: Caminho.

Khan, Sheila. (2021). Cartas, solidão e voz para uma pós-memória: Maremoto de Djaimilia Pereira de Almeida. Abril – NEPA / UFF 13(27).

DOI: https://doi.org/10.22409/abriluff.v13i27.50266

Khan, Sheila. (2015). Portugal a lápis de cor: a sul de uma pós-colonialidade. Coimbra: Almedina.

Khan, Sheila. (2009). Imigrantes Africanos Moçambiçanos. Narrativa de Imigração e de Identidade e Estratégias de Aculturação em Portugal e na Inglaterra.Lisboa: Colibri.

Martins. B. S. (2015). Violência colonial e testemunho: Para uma memória pós-abissal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106, 105-126. DOI : 10.4000/rccs.5904

Vasconcelos, Álvaro. (2022). Memórias em Tempo de Amnésia. Uma campa em África, vol.1. Porto: Afrontamento.


[1]https://expresso.pt/blitz/2023-01-06-Dino-DSantiago-lanca-desafio-para-criacao-de-novo-hino-nacional-0e6884fb

[2] Penso nos vários crimes raciais, nomeadamente, no primeiro compromisso em pensar a partir da morte de Alcindo Monteiro, jovem português de ascendência caboverdiana assassinado por um grupo de nacionalistas skinheads no dia 10 de Junho de 1995. Miguel Dores, apresenta, a partir de um documentário notável com o título “Alcindo”, um mapeamento deste Portugal pós-colonial e de todo o seu pacto de silêncio em torno da sobrevivência de lógicas de racialização e de discriminação

(https://www.youtube.com/watch?v=O9ARvQ7gUYs).

[3] Letra do escritor angolano Manuel Rui, cantada por Ruy Mingas e Paulo de Carvalho (https://www.youtube.com/watch?v=D_naXf_c6As).

Sheila Khan é investigadora do Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade  da  Universidade  do  Minho (nomeadamente no projeto no âmbito do projeto MigraMediaActs),  professora  auxiliar  convidada  da  Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e comentadora do painel do programa Debate Africano na RDP África. É doutora em estudos étnicos e culturais pela Universidade de Warwick. Entre as obras mais recentes da autora: «Portugal  a  Lápis  de  Cor», publicado pela Almedina.

Les Enfants du Paradis: As pensões e as manifestações em França, por Leonardo Costa

Recentemente, o governo francês propôs um aumento da idade de reforma, dos 62 para os 64 anos, como forma de resolver o défice crescente do financiamento das pensões naquele país. A proposta tem suscitado manifestações de rua contra a mesma, que vão das centrais sindicais aos coletes amarelos, sendo que forças políticas como a União Nacional (extrema-direita de Le Pen) e a França insubmissa (esquerda de Mélenchon) têm aproveitado e cavalgado o descontentamento. A este nível, é digno de realce o boicote à discussão da proposta no parlamento francês levado a cabo pela França insubmissa. O mesmo não só mostrou ser pura política de terra queimada, como foi aproveitado pela extrema-direita para se propangadear como a força moderada e civilizada que não é.

A proposta do governo francês tem suscitado manifestações de rua contra a mesma

A proposta do governo é justificada pelo envelhecimento da população francesa, que se traduz num rácio crescente de pensionistas  por trabalhador ativo, e pelo défice crescente do referido financiamento. O problema demográfico existe e não é novo. O sistema de financiamento pay-as-you-go (de solidariedade intergeracional) funciona bem com pirâmides demográficas de topo estreito e base larga. O aumento da esperança de vida, o envelhecimento da população e a inversão das pirâmides demográficas (com o alargamento do topo e o estreitamento da base) colocam o sistema de financiamento em stress e obrigam a repensar o mesmo e possíveis alternativas ao seu financiamento (sobre estas últimas, ver no apêndice texto “A sustentabilidade das pensões”, que escrevi para o Jornal Notícias, em 2005). E para lá dos aproveitamentos políticos, que existem sempre, o que os franceses parecem estar a solicitar é que se discutam alternativas e que as soluções não passem apenas por mais um corte dos benefícios do Estado social. A título de exemplo, a principal central sindical francesa, a Confédération Française Démocratique du Travail (CFDT), tem uma proposta alternativa de pontos, que o governo Macron chegou a ponderar antes da pandemia e que agora abandonou.

O que os franceses parecem estar a solicitar é que se discutam alternativas

Mas a discussão francesa é mais profunda do que aparenta à primeira vista. A mesma não é só sobre o sistema de pensões e as alternativas de financiamento. É também sobre o trabalho, os tempos livres e o que queremos fazer das nossas vidas, enquanto por cá andamos. É sobre a descoberta que as pessoas fizeram, durante a pandemia, de que é bom ter tempo livre para estar com os filhos, por exemplo. É sobre o Estado social. E por isso, a discussão ultrapassa a questão do financiamento das pensões e tem, por detrás e para além do problema demográfico, razões económicas mais profundas.

A discussão francesa é sobre o Estado social e tem razões económicas mais profundas

Martin Wolf, no seu livro recente The Crisis of Democratic Capitalism, defende que o capitalismo foi salvo de si mesmo pela democracia. E que, pelo menos  desde a crise financeira global de 2008, vivemos num mundo governado por um sistema financeiro que extrai rendas à sociedade e que está a colocar a democracia em perigo. Ativos tóxicos, criptomoedas, especulação bolsista, domínio sobre os bancos centrais e as taxas de juro por estes praticadas são alguns dos traços característicos do dito sistema financeiro extrator de rendas. Acresce que o referido mundo começou a ser construído nos finais da década de 70 do século XX, com a progressiva preponderância de uma ideologia fundamentalista de mercado que alguns designam de neoliberalismo. There Is No Alternative (TINA), dizia a senhora Tatcher. Esta ideologia neoliberal tem sido responsável pelo enfraquecer do Estado social, pelo crescimento da desigualdade nos países mais ricos da OCDE e, pelo menos desde a crise financeira de 2008, por uma economia estagnada dominada pelo referido sistema financeiro extrator de rendas. E daí as razões económicas por detrás da necessidade de reformar o sistema de pensões francês serem mais profundas.

Pelo menos  desde a crise financeira global de 2008, vivemos num mundo governado por um sistema financeiro que extrai rendas à sociedade e que está a colocar a democracia em perigo

There IS Alternative (TIA), quando há imaginação e vontade. E o campo das possibilidades aumentará, se formos capazes de recuperar um sistema financeiro aos serviço da economia, orientado para financiar a economia real (em vez de orientado para extrair rendas à sociedade) e uma economia ao serviço do bem comum, orientada para a generalidade das pessoas (em vez de orientada só para alguns). É preciso recuperar um capitalismo democrático, diz o Martin Wolf. Acrescento, é preciso recuperar, digamos, um capitalismo com um rosto humano, regulado pelo Estado democrático. Em democracia, assim o queiramos, o Estado somos nós!… Bem vistas as coisas, se assim exercido, o Estado é a maior organização da sociedade civil!…

É preciso recuperar um capitalismo com um rosto humano, regulado pelo Estado democrático

Porto, 19 de fevereiro de 2023

Em 2005, Leonardo Costa publicou no JN outro artigo sobre as pensões. Leia aqui:

A sustentabilidade das pensões

O envelhecimento crescente da população da União Europeia, causado pelo aumento da esperança de vida e pela redução do número de filhos por família, coloca em causa a sustentabilidade do actual sistema de pensões de reforma, dada a rápida redução do número trabalhadores no ativo por beneficiário.

A oferta de trabalho é bastante rígida ao nível de cada país, por causa das restrições à mobilidade do trabalho. Os impostos sobre o trabalho incidem por isso quase totalmente sobre os seus detentores (empregados) e não sobre os seus utilizadores (empregadores), independentemente de serem cobrados aos primeiros ou aos últimos. O contrário acontece com a tributação do capital, cuja oferta é bastante elástica ao nível de cada país, pois há livre circulação de capitais. Consequentemente, ao nível de cada país, é mais fácil e prejudica menos o crescimento económico cobrar impostos sobre o fator trabalho do que sobre o fator capital. Esta é uma razão para as pensões serem financiadas pela tributação do trabalho. Discuto em seguida algumas alternativas de reforma do sistema de pensões:

1) Adiamento da idade da reforma

Aumenta o número de activos por beneficiário. Vai contra a ideia de progresso, da Máquina (capital) substituir progressivamente o Homem (trabalho) dando origem à sociedade dos tempos livres.

2) Entrada de imigrantes em idade ativa

Aumenta de imediato o número de ativos por beneficiário. Contribui para a equidade mundial e, no caso português, para a manutenção de uma identidade nacional multiétnica e intercultural.

3) Políticas de fomento da natalidade

Aumenta o número de ativos por beneficiário. Todavia: i) são incertos e não imediatos os resultados dos incentivos à natalidade, num mundo onde os filhos se tornaram projectos de vida; ii) com padrões de consumo de primeiro mundo, aumenta muito a pressão sobre os recursos mundiais; iii) não contribui para aumentar a relação capital/trabalho, a produtividade do trabalho e o rendimento per capita.

4) Sistema de capitalização das poupanças de modo a que cada indivíduo garanta o pagamento da sua pensão de reforma

Conduz à privatização das pensões e converte em dívida pública as reformas dos atuais pensionistas. É sustentável qualquer que seja a estrutura demográfica da população (um ativo por beneficiário). É eficiente, afecta a segurança social a quem mais a valoriza, os mais ricos. Tem problemas de equidade, não garante pensões mínimas para todos.

5) Sistema de capitalização das poupanças de modo a que cada geração garanta o pagamento das suas pensões de reforma

As diferenças em relação à alternativa 4) são que não conduz à privatização das pensões, é menos eficiente e mais equitativa.

 6) Imposto mundial sobre os movimentos de capitais

Ao nível mundial ou mesmo europeu a oferta de capital é bastante rígida. Um imposto sobre o capital ao nível europeu, tipo taxa Tobin para financiamento comum das pensões, incidiria na sua quase totalidade sobre os detentores de capital, não prejudicando o crescimento económico. Esta alternativa é sustentável qualquer que seja a estrutura demográfica da população.

A alternativa de reforma mais interessante é capaz de ser constituída por uma

combinação das alternativas 2), 4), 5) e 6). A alternativa 1) atenta à ideia de modernidade. A alternativa 3) deve ser fomentada em sociedades envelhecidas, por esse motivo.

Jornal Notícias, 11 de abril de 2005

«Quatro D pelo hino nacional: debater, descolonizar, desracializar, democratizar», por André Barata e Mamadou Ba

O presente artigo foi publicado no Jornal Económico, em 22 de fevereiro, às 00h10

O Abril que falta cumprir não tem no hino uma letra à altura. O elogio à gesta imperial é uma legitimação das consequências do colonialismo donde emana as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade.

O debate sobre a letra do hino nacional, relançado, com visibilidade, pelo músico Dino D’Santiago no passado mês de Janeiro (depois de António Alçada Baptista em 1997 e um de nós em 2020), e que fez ressoar o apoio, na imprensa nacional, de António Brito GuterresDaniel OliveiraMiguel Esteves Cardoso, não deve perder-se na voragem da actualidade, assunto relevante um dia, esquecido no seguinte.

O debate público tem de ter a seriedade da insistência quando está em causa um símbolo, a que é devido respeito, legalmente protegido, e que, não apenas por isso, deveria convocar um consenso alargado entre os cidadãos.

Simplesmente não é esse o caso. Por duas razões cada vez mais prementes. Porque, por um lado, a letra do hino faz silêncio sobre as vilanias da história colonial – nomeadamente a Escravatura –, os valores da Constituição da República Portuguesa (CRP) e os acontecimentos que estiveram na sua origem e a história de quase meio século que o país leva desde então. Nenhum heroísmo ou valor, cantados em “A Portuguesa”, é dedicado à luta pela democracia contra a ditadura, à luta contra o colonialismo e o racismo, à liberdade contra a opressão.

Por não cantar os pressupostos da 3.ª República, regime de estado direito assente na soberania popular, “A Portuguesa” não cumpre democraticamente com o seu propósito. É um símbolo nacional que irradia pouco o país que queremos ser de acordo com a Constituição. O Abril que falta cumprir não tem no hino uma letra à altura. O elogio à gesta imperial é uma legitimação das consequências do colonialismo donde emana as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade.

Na verdade – e estas são outras razões também por si só mais do que bastantes – pode dizer-se com fundamento que “A Portuguesa” canta valores que contradizem, pelo menos tacitamente, a Constituição. A letra do hino é incompatível com as menções no Artº. 7 da CRP à “solução pacífica dos conflitos internacionais” e à “abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos”.

Hino superlativamente bélico escrito em reacção à humilhante conformação do Rei D. Carlos I ao ultimato britânico, que impôs a segmentação e redução do império colonial português (pelo corte da continuidade da África austral, entre Angola e Moçambique, de maneira a garantir um corredor até à África do Sul ao império colonial britânico), “A Portuguesa” associou à vontade do fim da Monarquia e de implantação da República o repto “Levantai hoje de novo. O esplendor de Portugal!”.

Inegavelmente, esse esplendor caído é o do império colonial. Para alguns saudosistas o esplendor retomado é o do império colonial de novo, como atesta o debate sobre os brasões na Praça do Império em Lisboa, por exemplo. Restaurar o esplendor é sempre restaurar uma perspectiva simbolicamente expansionista e colonialista, “sobre a terra, sobre o mar”, “que há-de guiar-te à vitória”, reconhecida pelos outros através da sua derrota e subjugação, presumivelmente muito além do território nacional. Não é coincidência que nas décadas em que este país persistia, orgulhosamente só, numa guerra colonial “A Portuguesa” era cantada obrigatoriamente nas escolas.

Em suma, além do tom bélico, na verdade comum a hinos de outros países, há uma dupla tarefa cívica que deveria interpelar-nos cidadãos portugueses: descolonizar e democratizar o hino nacional. E ligar as duas através do debate é também uma forma de ligar gerações de portugueses: os que lutaram por Abril e os que lutam hoje contra aspectos segregadores estruturais que subsistem e até reemergem na sociedade portuguesa, nomeadamente o racismo. Estas são razões incontornáveis para mudar versos com 133 anos de um hino nacional com 112 anos e que atravessou três repúblicas.

Nos 50 anos de Abril que se avizinham, continuando a cumprir Abril, por uma sociedade livre, plural, inclusiva, haveria que fazer este debate. A Presidência da República ou a Assembleia da República (no quadro das competências que lhes cabem) podiam tomar a iniciativa. Se não, os próprios cidadãos através de uma petição pública. Nenhum símbolo, por mais importante que seja, deve escapar a mudanças que aspiram tornar as sociedades e a vida coletiva melhores. Os hinos não têm de mudar apenas quando mudam os regimes.

André Barata, Filósofo, Universidade da Beira Interior 

Mamadou Ba, Militante antirracista decolonial 

FD reúne no Centro Nacional de Cultura grupo de cidadãos de Lisboa para mais uma etapa da Assembleia Cidadã 2023

Esta quarta feira, dia 15 de fevereiro, decorreu mais uma etapa da Assembleia Cidadã 2023. O Forum Demos reuniu no Centro Nacional de Cultura, um grupo de cidadãos da área metropolitana de Lisboa para alinhar a metodologia de trabalho, definir os temas de trabalho, realizar um calendário da Assembleia e identificar novos parceiros. Participaram na reunião Álvaro Vasconcelos, Inês Granja, Evalina Gomes Dias, Victor Barros, Érica Liberato e Domingos Alberto.

No final do mês de fevereiro vai realizar-se um encontro com cidadãos da região do Porto, na Cooperativa Árvore.