
“Oppressive language does more than represent violence; it is violence; does more than represent the limits of knowledge; it limits knowledge.”
Toni Morrison
Algo muito grave está a acontecer no debate público em democracia. Os que querem ser ouvidos sobem o tom das suas intervenções e fazem do adversário político um inimigo e do potencial aliado um traidor. A intolerância passou a ser “o novo normal”. O contraditório pacífico é raro.
A violência verbal não é praticada apenas pelos que classificaríamos como populistas. Contaminou a maioria dos partidos e dos comentadores .
As redes sociais são sintoma e fator da fragmentação maligna, uma demonstração da degradação da convivência democrática. Nas redes sociais a violência verbal é a regra e as teorias conspirativas que a sustentam espalham-se como um vírus. Um código ético para as redes sociais poderia contribuir para a civilidade, mas não resolveria a questão da política de ódio que as antecede.
O discurso de ódio começou por ser, no início deste século, o da extrema-direita contra os imigrantes e muçulmanos, e contaminou políticos democráticos de vários quadrantes. Espalhou-se como um fungo, para utilizar a expressão de Hannah Arendt, e abriu caminho à extrema-direita.
Nos Estados Unidos, Trump foi eleito com um discurso de ódio contra os seus adversários, desde logo contra Hillary Clinton (“Ponham-na na cadeia!”), com mentiras impregnadas de racismo e xenofobia, tal como a sua descrição dos imigrantes mexicanos como violadores, traficantes de drogas e criminosos, que se estendeu, com outros adjetivos, a jornalistas, dirigentes estrangeiros e deputados. Donald Trump, enquanto Presidente, é responsável por um aumento significativo de crimes de ódio, só comparável aos que se seguiram ao 11 de Setembro.
Donald Trump, enquanto Presidente, é responsável por um aumento significativo de crimes de ódio, só comparável aos que se seguiram ao 11 de Setembro.
No Brasil, com o discurso de ódio contra “Os criminosos do PT” foi destituída a Presidente Dilma Rousseff e eleito Bolsonaro, que usa como símbolo uma pistola. Recorrendo a um discurso racista antimuçulmano, chegou ao poder Modi, na Índia, e têm sucesso na Europa políticos como Salvini, Orban, Abascal e Le Pen. Portugal não está imune, como se viu com a eleição para o Parlamento de um político com um discurso de ódio racial.
Vivemos uma época em que o discurso de ódio racial é aceite como parte da política-espetáculo ou como uma manifestação de liberdade de expressão, mas não é, é um crime que abre caminho a crimes monstruosos. Por isso, o Parlamento, o Presidente da República e a Justiça têm de reagir às declarações do deputado da extrema-direita de que Joacine Katar Moreira deveria ser deportada.
Não se restringindo a declarações racistas, o discurso de ódio já não é apenas apanágio da extrema-direita. Assim aconteceu nas eleições espanholas, com partidos que se queriam do centro, como o Ciudadanos ou o PP, a usarem todo o vocabulário do nacionalismo extremo para classificar os adversários políticos; em França, com as manifestações dos coletes amarelos a popularizaram as expressões de ódio; no Brasil, os opositores a Bolsonaro, dividem-se em pequenos ódios e tendem a considerar traição toda a discordância, o que impede a emergência de uma vasta frente democrática contra o obscurantismo e o autoritarismo.
A polarização maligna impede o consenso necessário para defender as democracias contra os abusos de poder de lideres autocráticos, como o atesta a posição do Partido Republicano no julgamento de Trump.
O debate contraditório, sobre a crise democrática, torna-se inaudível, e a manifestação cívica da oposição às opções políticas dos Governos mais difícil, como está a acontecer com a discussão da reforma das pensões em França.
Em Portugal, a intolerância de muitos contra Joacine diluiu a discussão importante, iniciada pelos que defendem uma visão crítica do multiculturalismo em nome do Universalismo, sobre a sua visão da identidade da mulher negra e dos seus direitos. Joacine, ao deixar de ser vista como política, feminista ou ativista negra, com quem se podia concordar ou discordar, passou a ser vítima de uma bateria de ataques como se ela fosse um dos grandes problemas da democracia portuguesa.
Joacine, ao deixar de ser vista como política, feminista ou ativista negra, com quem se podia concordar ou discordar, passou a ser vítima de uma bateria de ataques como se ela fosse um dos grandes problemas da democracia portuguesa.
As democracias liberais, as únicas que existem, enfrentam um desafio existencial: sectores importantes da população, revoltados contra as desigualdades e as fraquezas da democracia liberal, tendem a aceitar um discurso de ódio face aos eleitos, que aos seus olhos perdem legitimidade mal chegam ao poder. São então muitos os que aderem ao discurso racista e sexista dos populistas.
Um outro caminho é possível, o do debate cívico sobre as alternativas, tendo por base o respeito pelas diferenças de opinião, de causas e de Utopias. É altura de pararmos para pensar onde pode levar tanto ódio e assumir um compromisso com uma ética de tolerância, no debate público e nas redes sociais, embora não menos vigilantes perante quem faz do ódio e da intolerância uma política .
Este artigo foi publicado no jornal Público de 2 de Fevereiro de 2020