Reflexões de Pedro Bacelar Vasconcelos, Maria Fátima Cunha Moura Ferreira, Álvaro Vasconcelos e Conceição Meireles Pereira
O reino de Espanha e os republicanos da Catalunha
Pedro Bacelar Vasconcelos

“A Europa que tudo fez para evitar suspeitas de intrusão nos assuntos internos de um estado membro, por quanto tempo se vai manter silenciosa perante a reiterada violação dos direitos fundamentais e das regras mais elementares que marcam o funcionamento das democracias?”
O resultado das eleições na Catalunha convocadas por Mariano Rajoy confirmaram o sentimento da esmagadora maioria dos catalães já expresso no referendo que foi declarado inválido: uma aspiração de autonomia que não desiste de se fazer ouvir, apesar da brutal encenação repressiva montada pelo governo do Partido Popular. Os membros do governo que acataram a notificação e compareceram no tribunal para depor, em Madrid, foram presos sob a acusação de rebelião, sedição e desvio de fundos públicos, crimes a que correspondem penas de prisão que podem chegar aos trinta anos!
Contudo, os dirigentes políticos presos ou exilados, apesar de se verem impedidos de participar na campanha eleitoral, obtiveram um expressivo triunfo eleitoral nas eleições para o parlamento regional. A obstinação do governo de Madrid em impedir a investidura de Carles Puigdemont na presidência do governo regional catalão, suscita apreensões graves sobre o estado de direito e a garantia dos direitos fundamentais em Espanha, e a sua adequação aos padrões europeus, aferidos pelo património constitucional comum, pelo direito internacional e pala Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A Europa que tudo fez para evitar suspeitas de intrusão nos assuntos internos de um estado membro, por quanto tempo se vai manter silenciosa perante a reiterada violação dos direitos fundamentais e das regras mais elementares que marcam o funcionamento das democracias?
Confundir a Constituição com o Código Penal, como parece estar a acontecer em Espanha, é um erro gravíssimo que, no limite, pode até transformar a monarquia constitucional num estado totalitário. Tratar as divergências políticas como se fossem crimes comuns é um caminho insensato e perigoso. A Constituição traça um caminho e identifica, com generosa amplitude, um destino comum. A Constituição não é um catálogo de crimes.
Europa e Democracia: a vaga nacionalista e a Questão Catalã, entre os anos 90 e o presente
Maria Fátima Cunha Moura Ferreira

“… a inevitabilidade do nacionalismo catalão ser pensado no horizonte geopolítico europeu.”
Os acontecimentos políticos despoletados pela queda do muro de Berlim obrigaram a Europa a repensar-se politicamente e a projetar horizontes potenciadores do seu lugar no Mundo. A unificação alemã, o alargamento da União Europeia a leste e a ideia de um Europa das regiões representaram pilares da nova agenda política apostada numa Europa mais forte e unificada.
É neste quadro analítico que se me afigura especialmente pertinente analisar os contornos políticos da Questão Catalã e o seu cenário presente. Como pano de fundo, sinalizo dois processos que se revestem capitais. De um lado, as contrapartidas políticas obtidas pelo papel da coligação nacionalista catalã na viabilização dos governos espanhóis na década de 90. De outro lado, a política de projeção europeia e internacional perseguida pelo governo da Catalunha. No seu conjunto, mostram a inevitabilidade do nacionalismo catalão ser pensado no horizonte geopolítico europeu.
A Espanha e o novo nacionalismo
Álvaro Vasconcelos

“Curioso que muitos nacionalistas portugueses, que recusam a identidade ibérica de Portugal, se sintam solidários com o governo de Madrid”
O nacionalismo na Europa de Leste, nos anos 90, afirmava-se democrático na sua luta pela autodeterminação do Império Soviético ou contra a opressão sérvia na antiga Jugoslávia.
O que caracteriza o novo nacionalismo [autoritário] é o ser uma reacção a duas fortes tendências do mundo contemporâneo: a da difusão do poder e a da crescente diversidade das sociedades.
Reacção à difusão do poder do Estado, incapaz de assegurar a regulação da economia e da política, minado que é pelas forças da globalização económica e das entidades não estatais ou sub-estatais, como as regiões ou as cidades.
Na sua forma mais reacionária, o nacionalismo xenófobo é uma reacção à segunda tendência, a da crescente diversidade das sociedades, fruto das migrações e da afirmação dos direitos das minorias, das mulheres, bem como da afirmação dos direitos individuais.
A maioria dos nacionalistas catalães, pelo contrário, assumem-se como defensor da autodeterminação, mas ao mesmo tempo da integração europeia e do direito à diversidade .
A Espanha não está imune ao nacionalismo, assumido pelo Partido Popular e de que a Catalunha é hoje a principal vítima.
Curioso que muitos nacionalistas portugueses, que recusam a identidade ibérica de Portugal, se sintam solidários com o governo de Madrid- será porque também temem o enfraquecimento do Estado português numa Espanha federal?
Península Ibérica – perspectiva histórica das relações de vizinhança entre Portugal e Espanha
Maria Conceição Meireles Pereira

“A arquitetura da União Europeia, que não deixa de se basear em princípios federais, poderá favorecer certos avatares de federalismo ibérico, sobretudo no quadro da “Europa das Regiões”, uma ideia a vários títulos interessantes, mas cujos contornos e objetivos não são ainda completamente conhecidos, talvez porque não sejam, ao momento, prioritários para os dirigentes da UE, confrontada com numerosos problemas, internos e externos, potenciados desde a crise de 2008.”
Razões históricas, umas longínquas outras mais recentes, explicam a tradicional desconfiança dos portugueses em relação aos espanhóis.
Entre países vizinhos é comum a rivalidade ou o receio (como ilustram os casos da França/Alemanha ou da Grécia/Turquia, etc.). No caso da Península Ibérica, trata-se de vizinhança particular que se traduz na partilha por dois países do condomínio ibérico, com a agravante de Espanha ser o único país com que Portugal tem fronteiras terrestres, aliás extensas e fáceis de transpor, o que alimentou durante séculos o receio da “invasão”.
São consabidas, ao longo dos séculos, as sucessivas tentativas de Castela incorporar Portugal, facto para o qual muito contribuíram as alianças matrimoniais, que se tornavam particularmente visíveis nas crises dinásticas, como aconteceu em 1383-85, ou em 1580-1640, em que ocorreu o “longo cativeiro filipino”, denominação usada pela historiografia tradicional nacionalista; em ambas as situações recusou-se o mando de Castela e a solução foi criar dinastias novas. Aliás, em 1640, os portugueses tiveram a ajuda, embora involuntária, da Catalunha, onde eclodira uma revolta que suscitou grande preocupação política e militar por parte de Castela castelhanas, que assim dedicou menos atenção ao caso português, pese embora a Guerra da Restauração (ou da Independência) se tenha prolongado até 1668.
E, como seria de esperar, a Guerra da Sucessão Espanhola entre finais do século XVII e inícios do seguinte implicou também a participação de Portugal, com cenários de conflito no seu solo, além de manobras diplomáticas complexas, esforço que, todavia, não lhe trouxe qualquer vantagens políticas ou territoriais.
Nos meados do século XIX, a questão configurou-se noutros moldes, surgindo a Questão Ibérica, que se tornou uma verdadeira questão nacional por algumas décadas. Os tempos eram conturbados, a par da consolidação dos Estados-Nação, celebrava-se a “primavera dos Povos”.
Não eram só os espanhóis, mas também portugueses a defenderem a Ibéria una. Os cambiantes eram múltiplos. Alguns advogavam a via monárquica, ora sob a forma unitária, ora projetando uma confederação. Mas a maioria que então se pronunciou defendia a via republicana e federalista – depois da Federação Ibérica, alguns apontaram o caminho dos Estados Unidos da Europa – era o tempo dos princípios demoliberais, pacifistas, socialistas. A literatura ibérica portuguesa derramou-se por pequenas obras, intervenções diversas, mas sobretudo nas páginas de jornais específica ou circunstancialmente afetos à federação peninsular. Embora seja célebre a Conferência do Casino de Antero de Quental sobre As casas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos (1871), raramente se recorda que ela terminava com uma exortação à realização da República Federativa Ibérica.
Contra os ideais iberistas levantou-se em Portugal uma verdadeira cruzada anti-ibérica e extremaram-se posições que acirraram posições nacionalistas, cada vez mais em voga, acentuou-se a visão de Espanha como uma ameaça, recrudescendo as desconfianças do país mais pequeno e mais fraco (a vários níveis), recusando o “abraço da panela de ferro com a panela de barro”. Não era só o imaginário popular de repúdio – “de Espanha nem bom vento nem bom casamento” – que refletia um multissecular anticastelhanismo, a maioria das elites políticas e intelectuais portuguesas denunciaram as dúvidas que tinham sobre as reais intenções do país vizinho. Eça de Queiroz, por exemplo, elencou num artigo de jornal aquilo que detestava em Espanha, concluindo ironicamente: “De resto, amo tudo, na Espanha. Somente gostava mais dela se ela estivesse na Rússia” (Distrito de Évora, 1867)
A retórica nacionalista portuguesa, que encontrou outro tempo forte da sua manifestação em 1868, após o derrube de Isabel de Bourbon e a oferta do trono espanhol ao monarca português, buscava argumentos “morais” face à desigualdade material entre os dois países, tanto mais que não era incomum apontarem-se vantagens materiais para Portugal num quadro de união ibérica.
Defendia-se então a superioridade civilizacional assente no caráter liberal e humanitário do povo português, em contraste com a lei do garrote e do fuzilamento que reinava em Espanha, a natureza cruel e sanguinária do seu povo, enfim a sua “lenda negra” colonial. As representações negativas do país vizinho na imprensa portuguesa sucediam-se: “a Espanha, que representa no mapa da Europa uma posta de sangue”; “a Espanha, que é a África Europeia”; a Espanha que é uma “Babel política”.
Também o nacionalismo de Salazar o levou a um cauteloso Pacto Ibérico (1939) com Franco – um tratado cioso da independência, de amizade e não-agressão (1942), que se manteve até 1978, data em que os dois regimes democráticos assinaram um tratado de amizade e cooperação – mas só com a entrada conjunta na Comunidade Europeia, em 1986, a ideia da Espanha como ameaça, como potencial invasora, se dissipou, pese embora certos setores militares ainda perfilhassem essa visão.
Dos velhos rancores contra os espanhóis pouco terá sobrevivido, as ligações económicas, culturais, sociais são cada vez mais fortes, pelo que as elites empresariais e intelectuais representam o “melhor diálogo” com Espanha, enquanto a nível dos cidadãos comuns ele continua mais visível nas relações entre as populações raianas – históricas, aliás – ou, intensificado, mais recentemente, pela via do turismo.
A questão catalã repercutiu-se iniludivelmente em Portugal, os seus debates sucedem-se e, desde logo, porque, hoje como no passado, sempre demos muita atenção ao que vem de Espanha, a política de Madrid sempre parecia refletir-se em Lisboa. Já o contrário não se verifica, nem nos meios de comunicação social, nem nos grandes fóruns de debate, nem nas conversas de café, Portugal e as suas questões políticas não constituem especial tópico de debate em Espanha.
A arquitetura da União Europeia, que não deixa de se basear em princípios federais, poderá favorecer certos avatares de federalismo ibérico, sobretudo no quadro da “Europa das Regiões”, uma ideia a vários títulos interessantes, mas cujos contornos e objetivos não são ainda completamente conhecidos, talvez porque não sejam, ao momento, prioritários para os dirigentes da UE, confrontada com numerosos problemas, internos e externos, potenciados desde a crise de 2008.
Certamente que o debate federal em Espanha pode ter algum impacto sobre a questão da regionalização em Portugal, tanto negativo como positivo. Para os avessos à regionalização, a confusão política e constitucional que tem emergido em Espanha a propósito da Catalunha pode ser um elemento dissuasor. Fatores como a política partidária, o difícil derrube do centralismo, que só concede o que quer e até onde quer às regiões, não deixarão de ser sentidos. Por outro lado, pode fazer lembrar que o fracasso do referendo de 1998 se ficou a vários aspetos, desde a falta de debate prévio verdadeiramente esclarecedor ao difícil consenso no desenho das regiões.
A estruturação do Estado espanhol em Comunidades Autónomas, baseado na Constituição de 1978, caracterizada por ambiguidades de diversa natureza, e, desde então, com défice de revisão do seu texto para evitar abrir crises no Estado espanhol, deixava, de certa forma, antever problemas. O artigo 2.º reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que compõem o Estado, mas baseia-se na premissa da unidade indissolúvel da nação espanhola, pátria de todos os espanhóis. A criação das autonomias foi uma solução praticamente inevitável na transição democrática; respondia às reivindicações das nacionalidades (principalmente da Catalunha, País Basco e Galiza, isto é, dos nacionalismos periféricos cuja resistência ao franquismo se pretendeu premiar), mas fazia prever diferentes tipos de autonomia entre as comunidades autónomas; não deixou se ser, também, uma forma de legitimar a democraticidade do regime monárquico e a sua sobrevivência.
Tudo dependeria, afinal, dos estatutos autonómicos, previstos constitucionalmente, que foram levando o sistema numa direção “quase federal”, e talvez essa fórmula se adequasse ao caso espanhol, mas terá ficado comprometida, pelo menos por agora, pela história recente de instrumentalização partidária e intransigência do governo central (embora o problema não possa ser visto de forma simplista Madrid versus Barcelona) e pelo movimento de massas que se desencadeou na Catalunha nos últimos meses.
O que ressalta, ao presente, são duas faces de uma moeda que não se podem incompatibilizar ou desunir numa sociedade democrática: o Estado de direito (razão de Estado) e o Estado dos cidadãos (direitos e liberdades fundamentais). E o assunto aumenta de complexidade faze à expectativa da resposta da Justiça, questionando-se sobre o nível de politização e de imparcialidade dos tribunais.