O regresso de Bond, por Francisco Seixas da Costa

Eles aí estão, pelo mundo, de volta à ribalta. Nos jornais, na política, na academia, nas fardas. Os viúvos da Guerra Fria.

Desde o início dos anos 90, quando a implosão da União Soviética tinha garantido uma vitória ao ocidente, percebia-se já a sua inquietação. Tinham tido um êxito, claro, mas, às vezes, em tom de desabafo, deixavam cair: “Nesses outros tempos, as coisas eram bem mais claras, éramos nós e eles”. E o facto de “eles” se terem só formalmente transmutado, de ter passado a ser necessário fingir que se acreditava na sua conversão, criava um ambiente estranho, um faz-de-conta em que passaram a ser obrigados a viver.

Por uma trintena de anos, esses saudosos das sombras de um mundo a preto e branco, sentiram-se desconfortáveis, por terem sido forçados a sair da velha e cómoda trincheira maniqueísta.

Tal como James Bond tinha abandonado a caricatura vinda do frio e derivara para novos alvos, também eles se dedicavam a genéricos estratégicos, aos atores não-estatais, como o terrorismo de várias matizes, ou os jihadistas, tudo imerso numa pouco subliminar islamofobia, sucedânea do anticomunismo do antanho.

Agora, o velho Bond já pode regressar. O que se passou no último ano trouxe esse pessoal de volta aos velhos tempos, ao faroeste da vida internacional, à guerra dos bons contra os maus, mesmo que se sintam obrigados a conceder, em privado, referindo-se a alguns incómodos companheiros de jornada, que surgem no apoio à causa da conjuntura, aquilo que um dia Roosevelt disse de Somoza: “He is a son of a bitch, but he is our son of a bitch”. Direitos humanos, liberdade partidária, independência dos tribunais, liberdade dos media -enfim, passam a ser coisas que outros valores mais altos obrigam a pôr entre parêntesis.

Devemos ficar inquietos quando, na partilha de solidariedade com causas anunciadas como essenciais, descobrimos, ao nosso lado, gente que, em tudo resto, não partilha o nosso quadro de valores. Quando, sob o alibi da “force majeure”, nos encontramos de mão na mão com pessoal nada estimável, é muito mau sinal. Ou melhor, no plano internacional, é sinal de que entrámos, alguns felizes, outros descontentes, muitos hipócritas, outros sem mais soluções, na lógica de uma inelutável confrontação. Que é sempre a soleira de uma possível guerra a sério, com tudo ao molho e fé no nuclear.

Agradecer a Putin

Vladimir Putin é o outro lado da moeda dos “cold warriors” de extração ocidental. A Rússia de Gorbachev e Yeltsin, de que o ocidente morre de saudades, acabou por decantar um “apparatchik” que, nem por um segundo, aceitou de bom grado o fim da URSS, que o mesmo é dizer, o saldo da Guerra Fria que essa mesma URSS, goste ela ou não de admitir, perdeu. E, quando se perde uma guerra, há consequências a suportar.

Contudo, Putin sabia que, nessa Rússia humilhada, não estava sozinho, muito longe disso. E, sem surpresas mas com inesperada clareza, deu-nos a conhecer a doutrina subjacente à sua leitura de uma espécie de hierarquia das nacionalidades que a União Soviética federara. As intervenções públicas com que o senhor de Moscovo nos ilustrou, ao longo do ano desta guerra, foram, nesse aspeto, de extrema utilidade didática.

É certo que a Rússia fora acossada pelo ocidente – chamando as coisas pelos nomes, pelos Estados Unidos – com o assumido objetivo de provocar o seu enfraquecimento, mesmo a sua anulação como potencial ameaça. Mas foi ele próprio, Putin, com o seu mutante e cada vez mais preocupante comportamento, ao longo dos anos, quem gerou o caldo de cultura que adubou essa mesma deriva.

Aparentemente, a Rússia de hoje não consegue perceber que os governos dos países que engrossaram as fileiras da NATO, que se foram chegando às fronteiras russas, o fizeram porque quiseram, não foram marionetes, agindo sob a pressão de modernas baionetas americanas. Alguns têm ódios recalcados, uma russofobia evidente. Mas têm também fortes razões para estarem inquietos. São cúmplices, dessa forma, do cerco americano à Rússia, do incumprimento da promessa política americana de não alargar a NATO? É óbvio que sim, mas Moscovo tem aqui a paga da sua preocupante deriva autocrática.

Talvez a Rússia possa agora perceber melhor que foi necessário um sismo estratégico para ver duas sólidas democracias, como a Suécia e a Finlândia, que tinham feito da neutralidade o DNA da sua identidade internacional, lançarem-se, por completo, nos braços da aliança militar ocidental. E que foi Putin, sem a menor sombra de dúvida, o detonador desse movimento.

Aqueles que, deste lado do mundo, se sentem agora mais à vontade com a dualidade estratégica que aí está reinstalada, devem assim um agradecimento à ajuda dada por Putin.

A invasão da Ucrânia e, no topo do bolo, a canhestra integração na Federação dos oblasts onde havia uma apreciável população russa, precedida de uns ridículos referendos, revela que Moscovo vive numa espécie de “second life” em matéria de direito internacional, de que já tinha dado mostras na questão da Abcásia e da Ossétia do Sul.

Por muitas voltas que as coisas possam dar, a Rússia pode esperar sentada se acaso tem a mínima esperança de que esta sua “nova” ordem internacional venha a prevalecer.

A China a bordo

A entrada das tropas russas na Ucrânia apanhou a China desprevenida? Talvez nunca venhamos a saber o teor da conversa entre Xi e Putin, nas vésperas da olimpíada de Inverno.

O que a China sabia, o que todos sabíamos, é que o mal-estar dos EUA em face da sua afirmação internacional caminhava num crescendo. E Pequim não ajudou: por exemplo, não se coibiu de alimentar a corda retórica, na tensão com Taiwan, porque lhe era essencial em ano de congresso do partido.

Os últimos anos pareciam apontar, contudo, para o interesse chinês de consolidar o seu projeto de financiamento de infra-estruturas, a Nova Rota da Seda, um plano que, tudo assim o indicava, seria favorecido por um mundo em relativa paz.

O ciclo de distração americana no Médio Oriente – inaugurado com o 11 de setembro, prolongado com a segunda guerra no Iraque e culminado na saída do Afeganistão – tinha dado a Pequim, entretanto, duas décadas de simpática desatenção por parte de Washington. Isso tinha acabado e era óbvio que os EUA iriam agora mobilizar os seus “compagnons de route” asiáticos para um cerco de suspeição face a Pequim.

O que não estava nas cartas é que a China se veria obrigada, na sequência da reação ocidental à entrada da Rússia na Ucrânia, a coreografar um relativo alinhamento com Moscovo. Mas era impossível à China furtar-se a ele, mesmo se o “timing” para este inevitável agravamento da relação com o ocidente não fosse, como não era, o seu.

Agora, a polarização com Washington é inevitável, restando a Pequim tentar encontrar prosélitos em todos os continentes, oferecendo-lhes razões e dinheiro para não se deixarem seduzir pelo poder americano. Enfim, uma espécie de “déjà vu” face ao período posterior à Segunda Guerra.

Ah! E há a Europa!

O parceiro dos americanos na nova Guerra Fria é, naturalmente, a Europa.

Nesta crise, ficaram provadas três coisas.

A primeira é que os EUA continuam a ser um poder europeu insubstituível, único verdadeiro provedor de resposta a ameaças da Rússia, com o Reino Unido à ilharga e os restantes a velocidades e vontades diversas.

A segunda é que a Europa de Bruxelas, depois do subliminar golpe de Estado institucional em que a Comissão subalternizou um aturdido Conselho, pela fragilidade conjuntural do eixo franco-alemão, quase pede meças à retórica jingoista da NATO, mobilizada pelo medo e pela subordinação ao clamor mediático, elevado à dignidade de legitimidade democrática.

A terceira é que, por muito que o velho continente continue a agitar-se em torno da ideia de obter uma autonomia estratégica, em matéria de segurança e defesa, esta guerra terá provado, pelo papel uma vez mais desempenhado pelos EUA no continente, que embora essa fosse porventura uma bela ideia, pode continuar a ser só isso.

Agora, a guerra

Os Estados Unidos, o dono do jogo, que até agora tem providenciado a esmagadora maioria do armamento dado à Ucrânia, mostra vontade de continuar a favorecer a resistência desta face à agressão russa, não forçando Kiev a qualquer cedência territorial. Com ou sem reserva mental por parte de alguns Estados, a Europa segue Washington, em ordem unida. Os EUA terão decidido que vale a pena correr o risco de contrariar a bravata russa de que pode vir a recorrer às armas nucleares. Só resta esperar, para a segurança coletiva, que as contas lhes (nos) não saiam furadas.

Francisco Seixas da Costa foi diplomata durante quatro décadas e, hoje, é consultor estratégico, investigador universitário e comentador de assuntos internacionais na comunicação social.

Ucrânia: A paz democrática europeia, por Álvaro Vasconcelos

Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra, atento às lições da Primeira.Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo. 

Já lá vão 12 longuíssimos meses; a guerra, com a sua sede de morte, destruição e milhões de refugiados, voltou na sua forma mais brutal. Com a invasão imperial de um país soberano, Putin não só rompeu com a Carta das Nações Unidas como põe em causa a ordem europeia de paz, construída no fim da hecatombe que tinha sido a primeira metade do século XX. 

 No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI. 

No Donbass, a guerra de trincheiras e de artilharia em Bakhmut, com as suas centenas de mortos diários, é a Verdun do século XXI. 

Em plena Segunda Guerra Mundial, homens de boa vontade, conscientes de tudo o que não se tinha feito no período entre as duas guerras, ousaram pensar a construção de um sistema de paz democrática na Europa – construir uma Europa pacífica, onde pela cooperação e a interdependência económica a guerra fosse impensável. Este sistema concretizou-se na integração europeia e, com ela, na reconciliação franco-alemã. Foi –ainda é – uma construção lenta e difícil, cheia de imperfeições como todas as construções humanas, mas única num mundo ainda regido pela política de potência, temperada pelos princípios da ordem internacional. Primeiro, apenas na Europa ocidental, democrática, sem as ditaduras da Europa do Sul. 

Na “Europa raptada”, das ditaduras, de que fala Kundera, o exército soviético invadiu a Hungria, em 1956, e a Checoslováquia, em 1968.

Após a queda do Muro de Berlim, a paz democrática estendeu-se para o centro e leste europeu. No início dos anos 1990, visitei Moscovo e a aspiração de muitos dos que rodeavam Ieltsin era fazer parte desse grande projeto europeu. Havia mesmo quem falasse da redução do arsenal nuclear russo ao nível da França e do Reino Unido, para que a Rússia fosse aceite nas comunidades europeias. 

Foi também nos anos 1990, na antiga Jugoslávia, que despertaram os monstros adormecidos da Europa – um sério aviso de que o nacionalismo extremo identitário não tinha ficado sepultado nos escombros da Segunda Guerra. Mas isso não abalou a convicção no projeto europeu de paz. Os países dos Balcãs, passada a guerra, fizeram seu o sonho da integração europeia.

A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.

A chegada ao poder de Vladimir Putin, facilitada pela miséria criada pelas políticas neoliberais de Ieltsin, afastou a Rússia da democracia e da Europa. 

A ideologia de Putin é tudo aquilo que queriam deslegitimar os fundadores da União Europeia.

O seu discurso comprova-o, enaltecendo a masculinidade guerreira, o nacionalismo identitário, o obscurantismo neofascista, justificando a invasão da Ucrânia como uma guerra de civilizações contra as democracias que descreve como decadentes, pedófilas e promotoras dos direitos das comunidades LGBTQ. Trata-se de uma ideologia iliberal, reacionária, que mina também por dentro, importa não esquecer, Estados da União Europeia. 

Putin quer impedir que a Ucrânia se consolide como democracia e que o projeto de paz democrática volte a contaminar a Rússia. 

Para que a paz volte à Europa, é preciso que a invasão da Ucrânia fracasse, que o país consolide a sua democracia, essencial à convivência numa sociedade multicultural, e integre a União Europeia. 

Olho para esta guerra como filho da Segunda Guerra. Toda a nossa compreensão do mundo ficou marcada pelo cataclismo humano causado pelo nazismo e o fascismo. 

Na televisão, vejo analistas, com mais ou menos convicções democráticas, e compreendo que alguns são filhos da Guerra Fria. Passaram uma parte da sua vida em funções do aparelho de Estado, sobretudo no sector militar, a estudar geopolítica, a fazer jogos de guerra e a aprender a teoria do equilíbrio do terror. Olham para a guerra como um jogo de xadrez, em que as vítimas são apenas peões. Indigna-me que alguns deles não manifestem empatia humana pelas vítimas, que não denunciem os crimes contra a humanidade.

Como escreveram, numa célebre carta, Habermas e Derrida, o que levou milhões de europeus a manifestarem-se contra a invasão do Iraque, em 2003, foi a recusa das guerras de conquista, a memória da trágica experiência das guerras coloniais europeias. 

Foi a oposição às guerras imperiais que levou muitos da minha geração a abraçar a causa da luta contra a guerra colonial portuguesa.

O projeto de paz democrática na Europa poderá servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.

Hoje, 74% dos europeus concorda com o apoio da União à Ucrânia, convicta do imperativo de combater a guerra imperial de Putin. 

A União Europeia não pode ser uma grande Suíça rodeada pelas tragédias do mundo e com uma Rússia imperialista nas suas fronteiras. 

Durante a Guerra Fria a NATO, e os Estados Unidos, tiveram o papel crucial de dissuadir qualquer aventura militar de Moscovo para além das fronteiras do Pacto de Varsóvia. 

Hoje, a União tem que ser capaz de se defender militarmente e preservar os valores da associação pacífica entre os Estados. Um dilema, como esta guerra demonstra, que ainda não foi capaz de resolver, daí a dependência do aliado americano para garantir o destino europeu democrático da Ucrânia. Um aliado americano de futuro incerto, como Trump, mas também Bush, demonstraram. 

O apoio indefetível à Ucrânia deve servir para uma visão europeia autónoma, não só de um sistema que garanta a paz no continente, mas também da ordem internacional. Se o fizer, fracassada a aventura militar russa, a sobrevivência do projeto de paz democrática na Europa poderá então servir para uma regulação multilateral e pacífica de um mundo policêntrico, pós-hegemónico.