Assembleia Cidadã – Um Instrumento Democrático ou Um Risco para a Democracia? por Tânia Cerqueira

Tânia Cerqueira – Alternativas Europeias

O Forum Demos associou-se ao Transeuropa Festival, uma iniciativa das Alternativas Europeias, que se realizará no distrito do Porto, entre os dias 21 e 25 de abril de 2022. Compreendendo o poder e a importância das assembleias cidadãs, no quadro do Festival, o Forum Demos organizará uma Assembleia Cidadã – inscrita no projeto Assembleias de Solidariedade, criado pela coligação Citizens Take Over Europe – em cooperação com a Câmara Municipal de Valongo e associações não governamentais portuguesas e ativistas da sociedade civil, na qual se irão explorar questões como a diversidade, a hospitalidade, a igualdade e os direitos fundamentais na União Europeia. A Assembleia, agendada para os dias 22 e 23 de abril, no Fórum Cultural de Ermesinde, contará com a presença de cidadãos, sorteados aleatoriamente, de modo a garantir uma amostra representativa da sociedade portuguesa.

Desde o primeiro ato eleitoral livre realizado após a revolução de 25 de abril, que a participação nas eleições em Portugal tem registado um aumento crescente na taxa de abstenção.[1] Com a participação da ida às urnas em declínio, surge a necessidade de criar um instrumento de interação democrática, além do voto, que envolva os cidadãos na vida política e que traga benefícios para a mesma, tais como amplificar o contacto entre cidadãos[2] sem ligações políticas e as instituições democráticas. Um destes instrumentos são as assembleias de cidadãos. Na última década, tem-se testemunhado um impressionante aumento na organização de assembleias de cidadãos estratificadas e selecionadas aleatoriamente, em todo o mundo. Muitos acreditam que estas podem desempenhar um papel crucial na criação de condições sociais para enfrentar problemas políticos complexos, além do seu valor intrínseco para a renovação democrática.

Na última década, tem-se testemunhado um impressionante aumento na organização de assembleias de cidadãos estratificadas e selecionadas aleatoriamente, em todo o mundo. Muitos acreditam que estas podem desempenhar um papel crucial na criação de condições sociais para enfrentar problemas políticos complexos, além do seu valor intrínseco para a renovação democrática.

Outros, porém, criticam-nas, compreendo-as como um apparatus ou mesmo uma ameaça à democracia representativa tradicional. Estas duas posições, mais recentemente, têm sido mote de debate entre Dominique Schnapper, Thierry Pech e Gérard Grunberg, que, através de reflexões e troca de ideias partilhadas nos laboratórios de ideias Telos e Terra Nova, apontam os prós e os contras da integração das assembleias de cidadãos nas instituições democráticas para a tomada de decisões, apresentando, cada um, argumentos pertinentes sobre o impacto da inclusão das assembleias de cidadãos na democracia.

Continuar a ler “Assembleia Cidadã – Um Instrumento Democrático ou Um Risco para a Democracia? por Tânia Cerqueira”

O difícil diálogo com a China sobre a Ucrânia por José António Gusmão

José António Gusmão

A comunicação social insiste quase diariamente em clamar por uma posição ativa da China em relação à guerra na Ucrânia. Parece-me, no entanto, haver algum desconhecimento da realidade, o que não será bem uma surpresa. A China e a Rússia têm uma cooperação militar sólida e que em nada se alterou com a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Emmanuel Macron , Xi Jinping e Olaf Scholz discutem a crise da Ucrânia através de ligação vídeo na terça-feira. Foto: Xinhua


A Rússia é o maior fornecedor de equipamento militar da China, a China fornece à Rússia tecnologia militar e IA, com algumas limitações naturalmente. Ambas participam com regularidade em exercícios militares no terreno e navais conjuntos e a China procura sempre incluir a Rússia em todas as suas iniciativas de política externa, nomeadamente na zona da Ásia, sendo a principal a Organização de Cooperação de Shanghai ou Pacto de Shanghai, um acordo de cooperação militar, troca de informações de segurança e económica e da qual fazem parte a China, a Rússia outros seis países da Ásia incluindo o Paquistão e a India, mas que entre observadores e parceiros de diálogo inclui em 2022 países do Médio Oriente, da Europa (Bielorrússia) e de quase toda a Ásia, muitos países da antiga União Soviética mas também o Irão. Mas ao mesmo tempo, nas relações com a Europa, China e Rússia têm visões e caminhos não só independentes como diferentes.

Para compreendermos a visão e a política de Xi não podemos olhar para o mapa do mundo com a Europa e o Atlântico no centro, mas tendo a China como centro do mundo.

E nesse mapa a Rússia ocupa um lugar que Xi entende ser já subalterno em relação ao novo império do meio, como aliás ficou patente na viagem de Putin a Beijing no início de Fevereiro. Vale a pena recordar o lugar que Xi reservou à Rússia na última parada militar realizada em Beijing, na qual desfilaram também forças militarizadas dos países “amigos”. Em termos coreográficos a direção chinesa pretendeu reeditar os desfiles na Praça Vermelha nos tempos de Stalin, só que agora com posições invertidas.

Continuar a ler “O difícil diálogo com a China sobre a Ucrânia por José António Gusmão”

A agressão russa e a guerra na Ucrânia – Celso Lafer

Celso Lafer*

No mundo contemporâneo, unificado pelas interações planetárias, a guerra não se circunscreve ao âmbito dos estados entre os quais ela se abre. Diz respeito a toda a comunidade internacional, pois a paz é indivisível. A comoção, estragos e misérias da guerra têm repercussão global.

A guerra da Ucrânia é uma guerra de escolha de Putin e não de necessidade, como foi a da Grã Bretanha ao reagir à agressão armada da Alemanha nazista. Contrapõe-se frontalmente à Carta da ONU, concebida e criada para evitar a repetição dos flagelos da Segunda Guerra Mundial.

A Carta consagrou como um dos princípios básicos do Direito Internacional o respeito à soberania territorial dos estados, grandes ou pequenos, que na sua pluralidade e heterogeneidade compõem o sistema internacional. Identificou neste princípio um ingrediente chave da convivência equilibradora entre as nações, favorecedora de suas relações amistosas e da ação construtiva da diplomacia.

A função do Direito Internacional e o seu papel na diplomacia são informar o padrão de conduta aceitável dos estados e inserir componentes de previsibilidade na vida internacional. A ação de Putin, ao desencadear a guerra na Ucrânia para atender seus autocentrados fins políticos, objetiva fulminar a sua independência política e integridade territorial. Rompe inequivocamente com o padrão do aceitável. Inseriu a insegurança do imprevisível na dinâmica mundial. Magnificou a tensão, riscos e incertezas com a generalizada repercussão, que alcança todas as instâncias das relações internacionais. Afronta a opinião pública mundial com uma ação bélica caracterizada pela desproporção de forças que vem massacrando os ucranianos, devastando o país, transgredindo o direito humanitário e levando a uma massa de refugiados.

A agressão da Rússia à Ucrânia ecoa, no mundo contemporâneo, a soberba da intransitividade narrada na História da Guerra de Peloponeso por Tucídides: o forte faz o que lhe convém e o fraco sofre o que lhe cabe. A subversão das normas por uma guerra de hegemonia corrói um padrão de previsibilidade que cria as condições de ação de uma política externa dotada de racionalidade deliberativa. É a lição de Tucídides sobre a Grécia clássica, aplicável ao que se passa atualmente.

A agressão da Rússia à Ucrânia ecoa, no mundo contemporâneo, a soberba da intransitividade narrada na História da Guerra de Peloponeso por Tucídides: o forte faz o que lhe convém e o fraco sofre o que lhe cabe.

Nesta moldura, a Assembleia-Geral da ONU em resolução de 1 de março expressou a abrangente condenação da comunidade internacional à ilícita agressão da Rússia, como Lucas Carlos Lima bem analisou neste espaço. O Brasil seguiu sua tradição diplomática ao votar a favor da resolução.  A defesa da integridade territorial e a condenação da guerra de conquista são parte integrante do “soft power”, do capital diplomático da nossa nação. A guerra na Ucrânia escapa da racionalidade do aceitável no plano internacional. A materialidade do seu horror crescente é mundialmente presenciada pelos recursos da era digital. Suas finalidades políticas expressam o solipsismo intransitivo protagonizado por Putin, que objetiva pôr termo à Ucrânia como país independente para alcançar uma expressão eslava da Rússia no mundo.

A guerra na Ucrânia escapa da racionalidade do aceitável no plano internacional. A materialidade do seu horror crescente é mundialmente presenciada pelos recursos da era digital. Suas finalidades políticas expressam o solipsismo intransitivo protagonizado por Putin, que objetiva pôr termo à Ucrânia como país independente para alcançar uma expressão eslava da Rússia no mundo.

É uma ascensão aos extremos que tem como antecedentes o fato consumado da anexação, em 2014, da Criméia e o patrocínio da secessão territorial da Ucrânia pela atribuição de um status próprio às áreas de Donetsk e Luhansk. É uma denegação dos próprios compromissos assumidos pela Rússia em relação à independência e integridade territorial da Ucrânia, no Memorando de 1994 de Budapeste, quando os arsenais nucleares da antiga URSS, lá sediados, foram transferidos à Rússia.

Uma palavra sobre alegadas preocupações de segurança da Rússia, provenientes do alargamento da União Européia e da ampliação da OTAN. Expressam o receio do declínio do poder relativo da Rússia e o medo de um cerco potencial. É algo que comporta negociações que estão ao alcance do locus standi da Rússia. Não uma guerra impelida pela obtenção de uma segurança absoluta que induz à insegurança regional, com implicações para a ordem mundial. Manifesta uma inconformidade imperial com a autonomia dos países do Leste Europeu.

Vale a pena registrar que estes encontraram na sua incorporação à União Européia inéditas possibilidades de desenvolvimento econômico e progresso e na adesão à OTAN, um manto de segurança protetor do prévio arbítrio soviético. Não querem o restabelecimento de uma onipresente esfera de influência russa. Por isso vêem na agressão à Ucrânia um precedente ameaçador do espaço de sua permissibilidade internacional.  Penso na política externa da Lituânia, pequeno país báltico, do qual tenho melhor conhecimento, e dos demais que não almejam ser nações presas da prepotência de uma dominação russa.

A agressão russa é uma marcha da insensatez. “Quem semeia ventos colhe tempestades.” É o que o mundo vem suportando e a própria Rússia vem padecendo com as sanções plurilaterais econômicas que a alcançam e que são uma reação voltada para conter o injusto ilícito da sua desenfreada ação militar.

*Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP; ex-Ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002);

O Tartufo russo e a Europa!… , por Leonardo Costa*

Estou muito de acordo com o que Álvaro Vasconcelos diz na entrevista que deu ao Porto Canal sobre a guerra da Ucrânia. O tempo passou e, como diria Molière, o czarete Putin foi revelando a sua verdadeira natureza de Tartufo, o hipócrita (Herr Tartüffe, no filme do Murnau).

Herr Tartüffe (no original em alemão),
filme realizado em 1925 por F. W. Murnau.

De início a personagem chegou a ser vista como uma esperança de desenvolvimento em liberdade para a Rússia, país que tinha vindo de um período muito difícil: o período da terapia de choque nos anos 1990s, período que deu origem à classe dos oligarcas russos. E também chegou a ser vista como uma esperança de paz para a Europa e para o Mundo. A própria existência de uma estação espacial internacional suportava esta ideia.

Continuar a ler “O Tartufo russo e a Europa!… , por Leonardo Costa*”

Uma União capaz de garantir a paz na Europa

A reafirmação por Putin da política de potência, que marcou a Europa da primeira metade do século XX é uma ameaça existencial aos fundamentos da integração europeia e da paz no continente.

A União Europeia nasceu deslegitimando a política de potência entre os seus Estados membros, a via da paz democrática kantiana pela integração é a sua razão de ser. A invasão da Ucrânia por Putin mostrou que tal era insuficiente.

já sabíamos que as democracias enfrentavam ameaças internas, somos agora confrontados com a ameaça externa do etno-nacionalismo extremista de Putin. Em consequência, esfumaram-se os dividendos da paz e a defesa voltou a ser uma prioridade das democracias europeias.

já sabíamos que as democracias enfrentavam ameaças internas, somos agora confrontados com a ameaça externa do etno-nacionalismo extremista de Putin.

A Alemanha vai transformar-se numa potência militar de primeiro plano, e mesmo sem armas nucleares terá uma muito maior capacidade de ação fora do espaço europeu. François Mitterrand impôs como condição para a unificação alemã o aprofundamento da União Económica e Monetária e a criação da moeda única, com o objetivo de amarrar a Alemanha à integração europeia e travar qualquer tentação da Alemanha em agir como grande potência fora do quadro europeu. 

A guerra na Ucrânia impõe de novo um salto qualitativo na integração europeia, nomeadamente no domínio da defesa. É necessário para que a corrida aos armamentos entre os Estados membros não provoque a desintegração da União em potências rivais, agindo de forma autónoma, e para que a segurança europeia não fique dependente das opções e prioridades de uns Estados Unidos cada vez mais focados no Pacífico e que podem voltar aos anos Trump. A proposta de Macron de criação um fundo de defesa de 200 mil milhões de euros seria o passo necessário para garantir que é no quadro da União que se reforça a capacidade militar dos Estados membros, mas o facto de ainda não ter sido aprovada ilustra o risco real de uma perspetiva essencialmente nacional  das políticas de defesa.

Um salto na Europa da Defesa , como o proposto, será feito no quadro dos mecanismos da cooperação reforçada entre os Estados membros e colocará a questão do escrutino democrático das despesas militares e das condições do uso da força..

O Tratado de Lisboa introduziu uma cláusula de segurança mútua, mas procurou acomodar as preocupações atlantistas do Reino Unido e dos neutros, reduzindo a sua aplicação à luta contra o terrorismo e às crises humanitárias. É difícil imaginar, porém, que um ataque militar a um Estado da União, mesmo não membro da Nato, não tenha uma resposta comum, o que, a acontecer, seria o fim da União Europeia. Daí que as ameaças da Rússia à Suécia e a Finlândia exijam uma resposta inequívoca: atacar um Estado membro é iniciar uma guerra com a União Europeia. 

O processo de adesão da Ucrânia à União Europeia coloca  a questão das garantias de segurança que Kiev considera essencial para assinar qualquer acordo de paz, num contexto em que já reconheceu que não seria membro da NATO.  Creio que a ambição da União Europeia deveria ser criar as condições para assumir essa responsabilidade. Se der o salto na defesa que anuncia e associar o Reino Unido, a União a segunda economia do Mundo, terá capacidade para tal.

O processo de adesão da Ucrânia à União Europeia coloca  a questão das garantias de segurança que Kiev considera essencial para assinar qualquer acordo de paz, num contexto em que já reconheceu que não seria membro da NATO.

O uso da força em resposta a uma agressão militar é garantido pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas”. Não é por não terem esse direito que os Estados da NATO não intervêm diretamente na defesa da Ucrânia contra a invasão russa, mas por considerarem que essa intervenção poderia levar a uma escalada e a uma guerra mundial, potencialmente com recurso a armas nucleares. 

Uma Europa com capacidade de agir militarmente é fundamental para garantir uma relação mais equilibrada no seio da Aliança Atlântica que continuará a desempenhar um papel essencial para garantir a credibilidade da dissuasão nuclear

Nada disto implica que a Europa possa vir a atuar como uma potência tradicional, que passe a considerar que a guerra é a continuação da política de Estado por outros meios, na fórmula de Clausewitz. Se o fizesse estaria a por em causa o próprio fundamento da sua existência: a deslegitimação da política de potência. É no quadro de uma ordem multilateral e no respeito estrito dos seus princípios que a União poderá usar a força – na defesa da sua soberania, quando atacada, em socorro a um Estado vítima de agressão ou em operações de paz. A segurança humana deverá orientar toda a acção da União e o objectivo essencial deverá ser a paz .

Num mundo sem ordem, de competição armada entre os Estados, o projeto de uma Europa pacífica kantiana enfrenta enormes dificuldades. A guerra na Ucrânia abala profundamente os fundamentos da ordem internacional do pós-guerra, aprofundados nos anos 90. Uma das suas grandes vítimas é, desde logo, a ONU. Apesar da mais que expressiva votação da Assembleia-Geral, na qual apenas cinco países votaram contra a condenação da guerra, a ONU foi incapaz de gerar qualquer iniciativa que levasse ao fim da invasão. E não está a desempenhar o papel que deveria ser o seu para garantir a segurança dos corredores humanitários e o apoio em bens e medicamentos às cidades cercadas.

A afirmação da União Europeia enquanto potência política e militar pode fazer com que venha a ter um papel central na reconstrução da ordem multilateral. Mas para já, é urgente travar a invasão da Ucrânia e fazer com que as tropas de ocupação se retirem. A União Europeia pode contribuir para tal aumentando o apoio logístico e em armamento às forças armadas ucranianas. O fracasso da agressão é o primeiro passo para repor a ordem internacional, como foi a invasão do Koweit pelo Iraque ou do Iraque pelos Estados Unidos. A União Europeia política e militar será um ator decisivo para garantir a paz na Europa e contruir com a Rússia pós-Putin uma ordem europeia inclusiva. 

Neutralidade Envergonhada

Dias antes da viagem do presidente Bolsonaro à Rússia (16 de fevereiro), o Palácio do Planalto vetou a emissão de um alerta para que os brasileiros que vivessem na Ucrânia deixassem o país e evitassem viajar para o Leste da Europa. Segundo as informações da colunista Malu Gaspar d’O Globo, no Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores do Brasil) a atitude foi vista como uma forma de evitar reações negativas russas nas vésperas da visita oficial de Bolsonaro a Moscovo. A visita, por seu turno, foi considerava como sendo de alto risco pela diplomacia brasileira devido ao impacto negativo que poderia ter noutros projetos do governo, nomeadamente a aproximação à NATO: um acordo de troca de informações sigilosas entre o Brasil e a NATO sobre temas de interesse mútuo. Segundo a BBC, Bolsonaro não é muito conhecido na Rússia e consideram que terá sérias dificuldades para se reeleger. Esta visita ficou ainda marcada pela polémica participação de Carlos Bolsonaro, filho do Presidente e vereador no Rio de Janeiro, cuja presença ainda não foi justificada.

A visita de Bolsonaro, num momento nas vésperas da invasão da Ucrânia, foi vista como uma manifestação de solidariedade com a política de guerra de Putin pela opinião pública ocidental e como tal condenada.

A invasão russa da Ucrânia começou no dia 24 de fevereiro. Bolsonaro só encontraria como justificação para a sua visita a garantia de fornecimento de fertilizantes – que o Brasil importa sobretudo da Rússia – no dia 27.

Apesar da guerra ter já causado centenas de mortes de civis ucranianos, originado uma das maiores crises humanitárias do século na Europa – a ONU deu conta de mais de 2,5 milhões de refugiados nos países vizinhos – e de a Rússia ter quebrado várias leis internacionais e de Direitos Humanos desde o começo da invasão, Bolsonaro afirmou que o povo Ucraniano ao eleger Zelensky “Confiou a um comediante o destino de uma nação” e que utilizar o termo “massacre” era “um exagero”. Num claro apoio a Putin, declarou que defendia a decisão da Rússia de reconhecer as regiões separatistas no leste da Ucrânia, Lugansk e de Donetsk, como independentes.

Na segunda-feira (28), Anatoliy Tkach, encarregado de negócios da embaixada ucraniana no Brasil, afirmou  “Acho que o Presidente do Brasil está mal informado” e “talvez seria interessante ele conversar com o Presidente ucraniano para ter uma visão mais objetiva.”  Bolsonaro respondeu que “não tem o que conversar” com Zelensky. Apesar das posições de Bolsonaro, o Brasil votou a favor da resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas que condenou a Rússia pela invasão. Essa posição da diplomacia brasileira foi vista, por vários observadores, como uma rutura do Ministério das Relações Exteriores do Brasil com a posição do Presidente.

Entretanto, Bolsonaro partilhou um vídeo no dia 1 de março onde diz lamentar a invasão russa à Ucrânia:

“A gente lamenta o que está ocorrendo na Ucrânia e lamenta a invasão. Assim como nós fizemos em setembro de 2021, por visto humanitário, nós permitimos que afegãos viessem ao Brasil. São cristãos, mulheres, crianças. Eu conversei com Carlos França [ministro das Relações Externas], ele disse que já ia tomar as providências [em relação ao visto humanitário aos cidadãos da Ucrânia]”.

A abertura do Brasil aos vistos humanitários é considerada por Tkach um gesto hospitaleiro, mas insuficiente.

Segundo o Lauro Jardim, colunista d’ O Globo, o presidente brasileiro enviou um texto através das mensagens do Whatsapp intitulado “A Única Verdade”, onde afirma “Os mesmos que desejam que o presidente brasileiro tome uma posição firme no conflito Rússia x Ucrânia, são aqueles que desejam tomar de nós a Amazônia”.

Numa visita ao México, o candidato à presidência do Brasil e antigo presidente, Lula da Silva, fez um apelo pela paz e pela resolução diplomática do conflito, “O mundo precisa de paz, de amor, de compreensão. As pessoas querem apenas viver dignamente e por isso fazemos o apelo: governantes baixem as armas, sentem na mesa de negociação e encontrem uma solução. Basta de Guerra. Queremos Paz, Liberdade e Respeito!”. 

Relembrou ainda do seu primeiro mandato presidencial em 2002 quando Bush atacou o Iraque, na qual o posicionamento do governo brasileiro só admitia o uso de força militar após o esgotamento das negociações diplomáticas e que caberia ao Conselho de Segurança da ONU adotar a solução adequada.

A guerra na Ucrânia é já considerada pela Folha de S.Paulo como um assunto incontornável na corrida presidencial no Brasil.

As posições do atual Presidente do Brasil e as ambiguidades da esquerda brasileira sobre a guerra da Ucrânia têm sido criticadas por vários analistas, como Pedro Dallari, Diretor do Instituto de Relações Internacionais da USP, como “uma atitude inaceitável tendo em consideração a escalada de violência cada vez maior no conflito.”

A Europa não pode viver sem o gás russo e outros mitos – Teresa de Sousa

Aparentemente, os líderes europeus decidiram guardar sanções “ainda mais duras” para uma nova fase da guerra. Entre elas, pode estar o embargo às importações de gás e petróleo russo. Mas qual fase? A destruição de Kiev?


Teresa de Sousa

1. Jorg Himmelreich, professor da ESCP Business School, em Berlim, publicou há dois dias no site da DW um artigo de opinião com um título claro como a água: “A Europa está a financiar a guerra de Putin na Ucrânia.” O autor desmonta, peça a peça, muitos dos argumentos que nos habituámos a ouvir para justificar o facto de a União Europeia não decretar o embargo às importações de gás e de petróleo russo. Os Estados Unidos já o fizeram. Toda a gente argumentou que são muito menos dependentes do que a Europa, que só importam da Rússia 10% das suas necessidades de petróleo, dando quase a entender que assim é fácil ser duro com Putin. Não é bem assim.

É verdade que os Estados Unidos são muito menos dependentes — são o primeiro produtor mundial, seguidos da Arábia Saudita. Joe Biden arrisca muito, porque a sua decisão acentua a escalada dos preços nas bombas. Não é uma medida popular. Enfrenta eleições dificílimas já em Novembro, nas quais arrisca a sua presidência no que diz respeito à agenda interna. Conta com um Partido Republicano que o odeia mais do que ao próprio Putin. Quando anunciou o embargo, o Presidente americano teve a decência de dizer que está plenamente consciente de que “os nossos aliados e parceiros podem não estar na posição de se juntarem a nós”. Estava com certeza a pensar na Alemanha, que importa da Rússia cerca de 55% do gás e 40% do petróleo que consome.

“O rendimento gerado pelo petróleo e pelo gás é o que mantém cheio o cofre de guerra de Putin”, diz o professor alemão. Representa 30 a 40% do orçamento russo. As companhias estatais arrecadam cerca de 165 mil milhões de euros por ano só na venda de petróleo. Com a subida do preço do barril, são mais de 500 milhões por dia. Quanto ao gás, que é mais barato, as exportações valeram 62 mil milhões de dólares em 2021. A guerra na Ucrânia está a custar a Putin à volta de mil milhões de dólares por dia. Seria fácil, diz o economista de Berlim, decretar um embargo à importação de petróleo, até porque o mercado está globalizado e o petróleo russo apenas representa 5% da procura mundial.

Uma lista de reputados economistas e investigadores da Academia das Ciências alemã considera que o embargo é possível – quer no petróleo quer no gás. Há meses que os EUA e outros fornecedores estão a exportar gás liquefeito para a Europa. “Se os alemães estivessem dispostos a reduzir os seus sistemas de aquecimento em dois graus, conseguiríamos uma redução significativa no consumo de gás sem morrermos de frio.” O ministro da Economia e do Clima, o “verde” Robert Habeck, já disse que não tem nenhuma reserva “ideológica” ao prolongamento da vida das três centrais nucleares que deviam ser fechadas agora. Fazer alguns sacrifícios por um povo que está a defender a nossa liberdade e de cuja vitória — ou derrota — dependerá o futuro da Europa não é pedir demasiado a ninguém.

2. A cimeira informal de Versalhes foi, sem dúvida, mais uma demonstração da solidariedade europeia para com a Ucrânia. Ninguém tem dúvidas sobre isso. Mas também não restaram grandes dúvidas de que os líderes europeus não foram tão longe quanto poderiam ou deveriam ter ido. Porque há divisões internas. Porque os seus líderes, alguns pelo menos, parecem não ter ainda compreendido que a União Europeia de antes da guerra acabou. Que a vida de paz e de prosperidade a que nos habituámos e para a qual a União foi criada ficou lá atrás. Vai-se afastando cada vez mais a cada cidade ucraniana destruída.

Fazer alguns sacrifícios por um povo que está a defender a nossa liberdade e de cuja vitória — ou derrota — dependerá o futuro da Europa, não é pedir demasiado a ninguém.

Aparentemente, os líderes europeus decidiram guardar sanções “ainda mais duras” para uma nova fase da guerra. Entre elas, pode estar o embargo às importações de gás e petróleo russo. Mas qual fase? A destruição de Kiev? Quantas mais cidades as tropas invasoras têm de destruir, quantos mais civis têm de morrer, quanto mais milhões de refugiados têm de passar as fronteiras? Estão à espera da derrota do exército russo? É uma possibilidade que já esteve muito mais longe. Mas, para isso, seria preciso fechar já a torneira que permite financiá-lo.

A cimeira decidiu duplicar o financiamento da compra de armamento para a resistência, duplicando os 500 milhões de euros já disponibilizados. A ironia está em que a Rússia recebe por dia cerca de 500 milhões de dólares da venda da sua energia aos europeus. Uma jornalista americana perguntou a Emmanuel Macron e a Ursula von der Leyen se tencionavam incluir o Banco Gazprom na lista de bancos russos que ficaram sem acesso ao SWIFT. A resposta fez pensar que também fica para mais tarde. Os ucranianos precisam de toda a nossa ajuda agora.

Convém não encurralar Putin? É um bom argumento. O Presidente francês tem desempenhado um papel fundamental — que alguns criticam injustamente —, ao manter um canal aberto com o Kremlin. Não é uma iniciativa individual, pelo contrário — é articulada com os seus parceiros europeus e norte-americanos. Até agora, esbarrou com a absoluta intransigência de Putin. Só lhe serve a capitulação da Ucrânia. Se o conseguir, vai aumentar as suas ameaças à União Europeia e à NATO. Disso já quase ninguém tem dúvidas. Até conseguir a rendição de Kiev, nenhuma negociação ou cedência fará calar as armas. A única alternativa está nas mãos dos ucranianos e da sua capacidade de resistência perante um exército cuja força era afinal um mito. Têm de ser ajudados de todas as formas possíveis pelas democracias em nome das quais estão a lutar e a morrer. Não é uma figura de retórica. Mas a Europa hesita. No embargo às importações ou num gesto político visionário, garantindo à Ucrânia uma via de acesso rápida à União Europeia.

3. Desiludam-se os que ainda pensam que esta guerra foi desencadeada por causa da NATO. Deparamo-nos todos os dias com uma barragem de argumentos, geralmente apresentados a coberto de grandes raciocínios estratégicos e geopolíticos, para justificar o direito da Rússia de se defender do cerco da Aliança Atlântica, que, imponderadamente, teria levado demasiado longe as suas fronteiras.

Não vou contar de novo toda a história do fim da Guerra Fria nem do processo de alargamento da NATO. Que foi feito lentamente, primeiro através das “Parcerias para a Paz” e, mais importante ainda, em permanente articulação com Moscovo. Em 1997, Boris Ieltsin foi a Paris assinar o “Acto Fundador” sobre “relações mútuas, cooperação e segurança”, que incluía a criação de um Conselho NATO-Rússia, que se manteve em funcionamento até recentemente e onde todas as questões de segurança foram debatidas.

Há, no entanto, outro argumento que passa despercebido neste turbilhão de debates e de informações. Antes da II Guerra, os pequenos países da Europa serviram quase sempre de “moeda de troca” ou de “peões”, como quiserem, nos jogos de poder entre impérios e entre grandes potências. Tu ficas com a Polónia, eu fico com a Hungria. Sem qualquer consideração pelos seus povos. Hitler desencadeou a II Guerra, não por se sentir ameaçado, mas porque tinha um projecto imperial de ocupação da Europa, assente na ideologia da superioridade da raça alemã. As democracias começaram por lhe conceder a Checoslováquia e fecharam os olhos à anexação da Áustria.

Depois da guerra, a paz na Europa ocidental foi construída a partir da negação da “balança de poderes” segundo a qual os grandes Estados tinham direitos sobre os pequenos. É este o princípio fundador da Comunidade Europeia — a igualdade entre os Estados. O lado oriental ficou sob domínio soviético. A Carta das Nações Unidas estabeleceu as novas regras da ordem internacional, consagrando o princípio da soberania das nações, da inviolabilidade das suas fronteiras e do respeito pelos direitos humanos.

Com o fim da Guerra Fria — que a URSS perdeu —, estes princípios estenderam-se à metade leste do continente. Cada país, dos Bálticos à Roménia, passando pela Polónia, escolheu livremente a que alianças queria pertencer.

Houve referendos e uma longa e difícil preparação interna para poderem entrar na União e na NATO. Queriam liberdade e prosperidade, mas também queriam segurança. Lutaram por isso. Sacrificaram-se por isso.

A Ucrânia teve um percurso mais instável, mas Putin sabe tão bem como nós que o assunto ficou arrumado na cimeira de Bucareste, em 2008. Talvez injustamente. Aqueles que esgrimem com o alargamento da NATO para justificar a invasão, o que estão a dizer é exactamente o mesmo que Putin: que é legítimo subordinar os pequenos países ao jogo de forças entre as grandes potências. Hoje, a Ucrânia, e ontem, os países de leste, deviam ter aceitado um estatuto de “soberania limitada” aos interesses da Rússia. Eis o que defendem os nossos doutos estrategos. O mundo viveria feliz. Desde que os povos fossem silenciados.

Aos meus amigos brasileiros -Álvaro Vasconcelos 

As posições que hoje tomarem sobre a Ucrânia contribuirão para o restauro da ideia de que a esquerda brasileira é uma alternativa real ao bolsonarismo.

Em Setembro de 2015, publiquei no Público, uma carta  aos meus amigos brasileiros, inquieto que estava com o futuro da sua democracia, ameaçada pelo regresso do ódio político e por uma polarização maligna que levaria ao poder Bolsonaro.

Hoje sinto de novo a necessidade de vos escrever, num momento em que as cidades ucranianas estão cercadas, muitos civis morrem nos bombardeamentos e mais de dois milhões  são já refugiados.  A guerra voltou à Europa e ninguém é capaz de dizer como irá acabar.

Sinto-me, tal como muitos europeus, cheio de razões para apelar à vossa solidariedade para com uma Europa que vos acolheu nos anos de ditadura militar e sempre condenou Bolsonaro, onde seria sempre recebido com manifestações de protesto e ovos podres

O apoio brotava da convicção profunda de que o direito à liberdade e à democracia são universais, de que os direitos humanos e a obrigação de os defender são as maiores conquistas dos pós II Guerra Mundial.

No lugar da empatia humana com o sofrimento atroz das populações, vemos a cegueira ideológica de muitos para quem o mundo se reduz a um confronto estratégico, entre os Estados Unidos e a Rússia, indiferentes à luta heroica dos ucranianos pela liberdade contra a tirania ou aos russos que vão para a rua defender a paz.

Olham para as relações entre os Estados com as lentes das velhas teorias geopolíticas reacionárias dos espaços vitais e zonas de influências, tão populares na escola de guerra de todas as ditaduras. Negam o papel da ideologia, do nacionalismo identitário de Putin, de etno-nacionalismo eslavo e religioso, de um conservadorismo extremo. Não vêm, ou não querem ver, que Putin é um autocrata obscurantista, para quem a sorte  do seu povo é irrelevante, que se preocupa com as sanções apenas na medida em que afetem o seu poder. Para terem a exata imagem do que é Putin, basta pensar no que seria o Brasil sem ser um Estado de direito com contrapoderes, sem imprensa livre, e onde quem se manifestasse contra o regime fosse preso, onde os opositores pudessem ser envenenados impunemente. Em suma, se Bolsonaro tivesse o poder absoluto e se dotasse de uma poderosa máquina de guerra e de mentira que construiria com o propósito de afirmar um poder imperial. A ida de Bolsonaro a Moscovo nas vésperas da invasão e a sua manifestação de solidariedade com Putin deveria ter ajudado a compreender isso.

Os que condenam a agressão de Putin – e também há muitos o que fazem -, na sua maioria, acrescentam um “mas”, normalmente para serem identificados como do lado da boa consciência de esquerda, para não serem atacados pelos seus. Dizem: ‘mas’ os Americanos invadiram o Iraque, ‘mas os Palestinos são vítimas de agressão… Agem como se um crime justificasse outro crime.  Quando da Guerra no Iraque, milhões foram para a rua em todo o mundo, sem nenhum ‘mas’. Passam o tempo a discutir as decisões tomadas depois da queda do Muro de Berlim, como se, depois da invasão da Polónia, a discussão pertinente fosse o mal-fundado do Tratado de Versalhes.

Para alguns, ser de esquerda é ser antiamericano, pelo que nenhum esforço sério de análise é necessário, basta saber o que lado estão os Estados Unidos. Se fosse assim tão simples, para tomar posição, bastava ler os comunicados da Casa Branca.

Já durante a guerra da Síria me interroguei sobre quais eram as razões que levavam tantos a apoiarem a intervenção russa em socorro de um criminoso de guerra como Assad. Argumentei que a explicação podia ser encontrada nas teorias, de um outro russo, Ivan Pavlov, dos “reflexos condicionados” e escrevi que “quanto maior o antiamericanismo, maior é o apoio a Putin e a Assad”.

As razões do antiamericanismo na América Latina são bem conhecidas. As intervenções americanas, o apoio a sangrentos golpes militares contra os regimes democráticos, como no Chile, na Argentina e no Brasil, as décadas de bloqueio a Cuba, são crimes que marcam a consciência da esquerda latino-americana. Embora as razões profundas do antiamericanismo estejam bem identificadas, não justificam o niilismo de alguns, não justificam a falta de compromisso com os direitos humanos.

Temos que lembrar, em abono da verdade, que também em Portugal existem alguns para quem ser de esquerda é apenas uma etiqueta, sem conteúdo ideológico, sem qualquer empatia, muito menos solidariedade, perante as vítimas da opressão e que, talvez por isso, só descobriam que Putin é um reacionário que quer reconstruir o império czarista, quando responsabilizou Lenine e os bolcheviques pela existência da Ucrânia.

Não o Lenine que dizia que o império dos Czares era “uma prisão dos povos e das nações”, mas na sua versão estalinista de deportação de populações.

É verdade que há muitos brasileiros que se consideram de esquerda e que se opõem à guerra, que assumem uma posição de denúncia de Putin e que, por isso, são bombardeados de comentários insultuosos ou de espanto. A sua coerência faz deles a esperança de um Brasil ode prevaleça a razão  e capaz de fazer dos direitos humanos um credo universal; um Brasil que poderá este ano desembaraçar-se de Bolsonaro e voltar a ser uma voz credível e respeitada.

As posições que hoje tomarem sobre a Ucrânia contribuirão para o restauro da ideia de que a esquerda brasileira é uma alternativa real ao bolsonarismo. O mundo precisa de um Brasil que recupere o seu protagonismo enquanto ator da paz, que coloque os cidadãos e os seus direitos no centro da sua ação.

Porque é que Putin pode ser derrotado na Ucrânia – Álvaro Vasconcelos

FOTOGALERIA: manifestações anti-Putin multiplicam-se pela Europa, enquanto  na Rússia os manifestantes antiguerra são avisados de possíveis  “consequências negativas” - Expresso
Manifestantes contra a guerra em S.Petersburgo

No início da invasão, o sentimento generalizado era o de que a Ucrânia seria uma presa fácil. Porém, passados 6 dias, constatamos que não o é. Nasce a convicção de que Putin pode ser derrotado na Ucrânia.

O que é que foi subestimado e o que é que fomos descobrindo?

 Em parte, a surpresa deve-se ao esquecimento de uma lição da História do século XX: um exército invasor, por muito poderoso que seja, encontra sempre muita dificuldade na ocupação de um país. Foi o que aconteceu com os Estados Unidos no Iraque e a União Soviética no Afeganistão. A única invasão bem-sucedida de que me lembro nos pós II Guerra Mundial foi a invasão da minúscula Granada.

Talvez levados pela propaganda do Kremlin – sobre a falta de união entre a população ucraniana, que viveria numa situação de guerra civil –, muitos pensaram que se dividiria entre pró-russos e pró-ocidentais e que as dificuldades da democracia ucraniana a tornariam frágil perante um invasor. Ao contrário do que Putin afirmou, a Ucrânia não é uma invenção de Lenin e dos Bolcheviques, é uma Nação. A unidade dos ucranianos, a sua vontade de resistir ao invasor, tem sido um factor decisivo nestes primeiros dias de guerra.

O Presidente Zelensky, a sua coragem, mas também sentido político, os seus apelos ao povo russo, tem sido outro factor extremamente importante para dificultar o sucesso de Putin. Pensava que encontraria um líder frágil e temeroso como dizia a propaganda russa. Dizem-me que teve um enorme impacto o seu discurso no Conselho Europeu e ficará para a história a sua reposta à proposta de evacuação: “Preciso de munições, não de uma boleia”. Se as circunstâncias fazem os grandes homens, aqui está um exemplo.

Sou levado a crer que, como acontece muitas vezes com os autocratas, Putin acreditou na sua própria propaganda.

Por outro lado, para esta situação também contribui o facto de o exército russo estar a combater num país irmão. Muitos daqueles soldados, tantos deles jovens, talvez não vejam razão alguma para morrer. À semelhança do que aconteceu em Praga em 68, chegam relatos de soldados que dizem que não sabiam para onde iam. Entre combatentes que lutam por uma causa que consideram justa e os que vêm para impor a opressão existe uma diferença fundamental: a convicção de que o sacrífico da vida faz sentido.  

Se a resistência continuar, os soldados russos morrerão numa proporção inaceitável para a opinião pública russa, as suas mães irão protestar contra a guerra, como o fizeram no Afeganistão. As manifestações para a paz na Rússia já enfraquecem Putin e destabilizam os soldados.

Putin pode censurar a informação, mas esta é uma guerra na era das redes sociais e tudo se acaba por se saber. É também por isto que os ucranianos, a começar pelo seu Presidente, fazem apelos em russo – porque sabem que chegarão aos seus irmãos históricos do outro lado. A interconecção pelas redes sociais entre ucranianos e russos, mas também com cidadãos de todo o mundo, é um fator desta guerra, tal como são as redes de cooperação que hoje envolvem cidadãos de todo o mundo e ucranianos e russos em todos os domínios do saber e da actividade social, e que que despertam a consciência de todos para os crimes de Putin e para o futuro sombrio que ele representa. Não foi em vão que a Ucrânia e a Rússia foram sociedades abertas ao mundo nestes últimos 30 anos.

A resistência dos ucranianos, bem como a atitude do seu Presidente, estão a empolgar a opinião pública internacional e a levar a manifestações pela paz de centenas de milhares de pessoas. O azul e o amarelo enchem as redes sociais e muitos são os que exigem aos seus governos mais apoio à Ucrânia. Não é por acaso que amigos de Putin, como Viktor Orbán, hoje exigem medidas duras.   Perante estes apelos e perante a gravidade da situação, os governos estão a responder com pesadas sanções económicas, mas também com ajuda militar cada vez mais significativa. 

Putin enfrenta uma ameaça existencial à sobrevivência do seu regime, com um fracasso da sua invasão da Ucrânia. Uma Ucrânia que saia consolidada da guerra como nação democrática e com a integração na União Europeia assegurada, será um poderoso incentivo para os russos que aspiram ao mesmo destino.  Tem feito muito bem o governo ucraniano em não confundir os russos com Putin e o regime oligárquico que o apoia.

Putin declarou que colocava as armas nucleares em estado de alerta elevada. É a declaração mais bárbara desde que Hiroxima foi destruída. Os americanos foram derrotados no Vietnam e os soviéticos no Afeganistão sem recorrer à chantagem nuclear. Tenta com ela intimidar o Ocidente, mas também os ucranianos. Do arsenal nuclear russo fazem parte armas nucleares táticas que, utilizadas na Ucrânia, não criariam uma situação de destruição mútua assegurada. Tenho a convicção que os ucranianos não se vão deixar intimidar.  

 Se se sentir derrotado, Putin poderá aplicar na Ucrânia a estratégia com que arrasou Grozni e Alepo e bombardeará maciçamente as cidades, fazendo centenas de milhares de mortos. Todavia, esta escalada apresenta um enorme risco: aumentaria a oposição à guerra na Rússia e aumentaria a pressão no Ocidente para uma intervenção militar em defesa da Ucrânia. Intervenção que aconteceria se Putin usasse armas nucleares.  

Tudo isto me leva a crer que Putin pode ser derrotado na Ucrânia. Assim o povo ucraniano e o seu exército resistam mais uma semana, talvez menos. A eles ficaremos então, sem sombra de dúvida, a dever a paz na Europa.