«Brasil, no nosso futuro», por Álvaro Vasconcelos

O futuro da democracia e do planeta vão ser decididos pelos eleitores brasileiros neste domingo

Não se pode subestimar o que está em jogo nas eleições brasileiras. O resultado da disputa eleitoral entre Lula e Bolsonaro não só é decisivo para a democracia brasileira como terá um impacto significativo na capacidade de enfrentarmos os desafios do mundo contemporâneo. É o futuro da democracia e do planeta que vão ser decididos pelos eleitores brasileiros.

O Estado de direito democrático sobreviveu a quatro anos de exercício de poder por um Presidente que elogia a ditadura militar, porque as suas instituições judiciais, nomeadamente o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, preservam a sua independência.

Se o Estado de direito mostrou uma solidez superior ao que muitos pensavam, o mesmo não se passou ao nível das políticas públicas, dependentes do Governo e do legislativo.

Foram anos marcados pela catástrofe sanitária, com Bolsonaro a fazer campanha contra a vacina, o uso de máscara e as medidas de confinamento decretadas pelos governadores dos estados; pelo desmatamento da Amazónia e o negacionismo das mudanças climáticas, ao serviço dos sectores mais retrógrados do agro-negócio. Nos anos Bolsonaro foram destruídos 40.000km2 de floresta – um ecocídio.

Foram anos também de retrocesso social. Paulo Guedes, ministro das Finanças, procurou aplicar a receita ultraneoliberal de Pinochet, travando a ascensão social dos pobres, particularmente dos descendentes dos escravos africanos. Hoje, 62,9 milhões de brasileiros, cerca de 30% da população, vivem abaixo do limiar da pobreza, mais 15 milhões do que em 2014. O orçamento secreto de 19 mil milhões de reais retirados às políticas sociais e colocados à disposição dos membros do Congresso, que o utilizarão sem transparência, é um astronómico Mensalão.

Eleito com uma pauta securitária e de demagogia anticorrupção, como é próprio da extrema-direita populista, Bolsonaro armou as milícias do crime organizado e aumentou a insegurança. As imagens de Roberto Jefferson, ex-deputado, aliado do Presidente, a disparar e lançar granadas contra a polícia são o retrato da insegurança que o ódio bolsonarista criou.

Bolsonaro é fiel servidor, como ficou provado, dos três B: Boi (agro-negócio), Bala e Bíblia. Mitificado por pastores evangélicos pentecostais, procurou fazer avançar a pauta reaccionária de destruição das conquistas dos direitos das mulheres e da igualdade de género – projecto bem retratado no filme brasileiro Divino Amor, de Gabriel Mascaro, obra de ficção científica sobre um futuro dominado pela “ordem moral” teocrática. O projecto distópico do bolsonarismo enfrentou a oposição de uma poderosa sociedade civil que se mobilizou em defesa dos direitos garantidos pela Constituição democrática – as instituições culturais e científicas brasileiras, como as universidades, enfrentaram abertamente o obscurantismo, apesar dos cortes brutais no seu orçamento.

Mais quatro anos de poder neofascista no Brasil poriam em risco a independência das instituições e as liberdades, e aprofundariam a crise ecológica, social, securitária e a divisão entre os brasileiros.

Bolsonaro e seus aliados alimentam o projecto de controlo sobre o Supremo Tribunal, por via do aumento do número de membros. Para isso terá de ter o apoio do Senado, onde a sua influência aumentou e onde o orçamento secreto compra votos.

Lula e os seus aliados, como Simone Tebet e Marina Silva, são a alternativa a tudo que Bolsonaro representa. São defensores da separação de poderes, essência da democracia, simbolizados em Brasília pela Praça dos Três Poderes, desenhada por Lúcio Costa e onde ficam situados os três belos edifícios de Oscar Niemeyer, o Palácio do Planalto (sede do executivo), o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Uma nova presidência Lula irá continuar a construir o Brasil que o fim da ditadura em 1986 prometeu e a Constituição de 1988 consagrou. O Brasil da liberdade e da democracia que precisa de ser consciente que “só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”, como afirmou Ulisses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, por ocasião da promulgação da Constituição.

Também o impacto internacional da vitória de Lula não deve ser subestimado. Seria mais um golpe na “internacional iliberal”, já enfraquecida pela derrota de Trump, que mostrou o perigo que representa para a paz com a guerra imperial de Putin na Ucrânia.

A derrota de Bolsonaro seria a afirmação do Brasil como uma voz da democracia no conjunto das potências que emergiram neste século, os BRICS: a Rússia rompeu brutalmente com os princípios da carta das Nações Unidas, a deriva identitária de Modi está a destruir a democracia indiana e Xi Jinping subverteu o limite dos dois mandatos.

É vital que o Brasil retome o seu lugar como actor prestigiado e influente do multilateralismo, num mundo policêntrico, indispensável à sua eficácia e necessária reforma.

As opções ambientais do Brasil são críticas para proteger o sistema terrestre e preservar a vida na terra. O envolvimento activo de Marina Silva, referência ecológica, na campanha de Lula é a prova da prioridade que o seu Governo dará às questões ambientais. Como Lula declarou, em artigo no Le Monde, “a Amazónia e a biodiversidade serão protegidas”.

A União Europeia poderá, com o Governo de Lula, construir com o Brasil uma parceria estratégica, aprofundando ao mesmo tempo as relações com o Mercosul, para promover um pacto global verde para travar o aquecimento global.

Para nós, portugueses, ter o Brasil como parceiro que partilha o mesmo credo democrático, humanista, social e ecológico será a ocasião para pensarmos seriamente o nosso futuro comum, rompendo com a retórica racista lusotropicalista.

[Este artigo foi publicado hoje no site do jornal Público. Encontra-se disponível aqui.]

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«A Política Brasileira e Internacional – Uma análise da conjuntura» por Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB

«Os tempos exigem muito cuidado com as análises de conjuntura. Não por outro
motivo que as complexidades que atravessamos, tanto no mundo como no Brasil, e nas dificuldades inerentes a apontar, de pronto, as causas e as consequências como se fossem resultantes apenas das ações políticas e econômicas. É muito mais. Há um conjunto de explicações e de fenômenos que se influenciam e se relacionam direta e indiretamente. Inobstante as fragilidades de qualquer explicação, vamos transformando-as em percepções acerca dos desafios e dos temas que surgem sempre em torno de uma ética
comum, compreender para transformar em torno do mesmo objetivo: o serviço e a presença da Igreja Católica em um mundo que nos exige cada vez mais fraternidade, caridade e comunhão»

Leia mais deste artigo do Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB, aqui:

Este texto é um produto da equipa de Análise de Conjuntura da CNBB, de que faz parte Manoel Moraes. membro ativo do Forum Demos.

O grupo de autores do artigo é composto por membros da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, assessores, professores das universidades católicas e peritos convidados: Dom Francisco Lima Soares – Bispo de Carolina – MA, Pe. Paulo Renato Campos – Assessor de Política da CNBB, Pe. Thierry Linard de Guertechin, S.J. (in memoriam), Antonio Carlos A. Lobão – PUC/Campinas, Francisco Botelho – CBJP, Gustavo Inácio de Moraes – PUC/Rio Grande do Sul, José Reinaldo F. Martins Filho – PUC/Goiás, Manoel S. Moraes de Almeida – Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Marcel Guedes Leite – PUC/São Paulo, Robson Sávio Reis Souza – PUC/Minas, Tânia Bacelar – UFPE, Maria Lucia Fattorelli – Auditoria Cidadã da Dívida, Melillo Dinis do Nascimento – Inteligência Política (IP) e Ricardo Ismael – PUC/Rio.

O presente artigo foi anteriormente publicado em http://cnbb.org.br/analisedeconjuntura.

O imperativo da comemoração da herança liberal 

 

D.Pedro proclama a independência do Brasil, Museu do Ipiranga

A comemoração do bicentenário da independência do Brasil foi uma ocasião de afirmação, nomeadamente em Portugal, da importância da herança liberal, hoje ameaçada na Europa e no mundo por uma vaga autocrática, que se assume, como afirmou o Viktor Orbán, como iliberal.

Na Europa, as referências ao bicentenário, com excepção de Portugal, embora poucas, foram significativas. A cerimónia foi considerada pela maioria dos analistas como uma exploração grotesca de um momento que deveria ter sido de comemoração dos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade. No Le Monde, as comemorações foram classificadas como um acto sexista e putchista. 

A maioria dos artigos reflectem a deterioração da imagem do Brasil na opinião pública europeia. Apesar do significado histórico da data, ninguém esperava que o Governo brasileiro a comemorasse com dignidade.

O Brasil era visto, nos últimos anos de Lula e no final do primeiro mandato de Dilma Rousseff, como uma potência em ascensão e com enorme prestígio internacional. Eram reconhecidos os enormes progressos no domínio do combate à pobreza e na educação, e crescia a convicção de que o Brasil estava a emergir como uma potência indispensável à regulação multilateral de um mundo policêntrico. No relatório do EUISS para a União Europeia “Cidadãos num Mundo interconectado e policêntrico”,pode ler-se que, num índice que integre não só indicadores económicos, mas também outros, mais subjetivos – “como soft power, unidade política e o efeito multiplicador da cooperação regional” –, o Brasil é apontado como umas das cinco grandes potências de 2030 [1]

soft power, isto é, o poder de atracão do Brasil, era um factor relevante da influência do Brasil na cena internacional. Um inquérito mundial sobre o poder de atracão de diferentes países do mundo, levado a cabo pela BBC, em 2010, colocava também o Brasil em quinto lugar, a seguir à União Europeia, Japão, Canadá e Estados Unidos. 

Hoje, quando a preocupação com a emergência ecológica é uma questão central da política europeia, o Brasil é visto como um país dominado pelo populismo, que está a destruir a Amazónia e a matar os seus habitantes. O  Parlamento Europeu aprovou por larga maioria,  em Setembro de 2022, uma resolução para travar as importações brasileiras que resultem do desmatamento da Amazónia e o acordo EU- Mercosul continua congelado.  

As comemorações do bicentenário em Portugal deram continuidade às que, há dois anos, assinalaram a revolução liberal de 1820, no Porto. Nessa altura, salientou-se que é hoje um imperativo defender a herança liberal de “separação de poderes” e de “libertação do povo”, de que é herdeira o Estado de Direito Democrático.

A participação nas comemorações do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, e a decisão da Câmara do Porto de emprestar o coração de D. Pedro ao Brasil, provocaram uma intensa polémica. A maioria dos artigos publicados sublinhava que o que estava em causa, mais do que a independência do Brasil, há muito consolidada, era a defesa dos ideais liberais, de novo ameaçados por autocratas absolutistas. Foi, por isso, quase unânime a crítica à Câmara da cidade do Porto pela sua decisão. O autor de uma dessas críticas sintetizou a opinião de muitos, quando escreveu não ser compreensível ter-se permitido “que uma grande figura do liberalismo seja usada para compor a narrativa de um amante de ditaduras”[2]. Em relação à participação do Presidente da República, as opiniões dividiram-se, considerando muitos que as relações com o Brasil são independentes das circunstâncias e que Marcelo Rebelo de Sousa não podia ter recusado o convite.

As circunstâncias aziagas em que se deu esta comemoração impediram que tivesse sido uma ocasião para lembrar os duzentos anos da luta difícil pela consolidação do ideal liberal nos dois países, que viveram longos períodos de ditadura. Perdeu-se uma ocasião para se assumir o crime contra a Humanidade que foi a escravatura e o passado colonial português. Também não se valorizou os que lutaram pela independência do Brasil, como os heróis da Inconfidência Mineira.   

As comemorações do bicentenário da inserção da Bahia na unidade brasileira, que decorrem em 2023, podem ser uma boa oportunidade para reafirmar os valores da liberdade, no Brasil e em Portugal. 

A presença em Portugal de uma vasta comunidade de emigrantes brasileiros cria as condições propícias para essa iniciativa. As comemorações podem ter como actores principais os afrodescendentes dos dois países, que hoje são particularmente ativos na vida pública, cultural e universitária. 


[1] https://espas.eu/files/espas_files/about/espas_report_ii_01_en.pdf

[2]Carmo Afonso, Rui Moreira e assuntos de Coração, https://www.publico.pt/2022/08/22/opiniao/opiniao/rui-moreira-assuntos-coracao-2017889

Este texto é a síntese da conferência, no Instituto de Relações Internacionais(IRI) da USP, proferida a 22 de Outubro de 2022.

Debate online: O futuro da democracia brasileira (resultados das eleições & desafios)

No próximo dia 31 de outubro, o Forum Demos vai transmitir live, no Youtube, o próximo debate sobre os resultados da segunda ronda das eleições brasileiras e os desafios que se põem diante deles. Neste encontro sobre o futuro da democracia Brasileira, como naquele que foi realizado após a primeira ronda, vamos juntar cidadãos, académicos e ativistas, dos dois lados do Atlântico. Juntem-se a nós! Para aqueles que não possam assistir em direto, disponibilizaremos a gravação no canal do Youtube do Forum Demos.

O Tiravidas

Por Leonardo Costa

É importante vencer em  Minas Gerais. Os dois candidatos sabem isso.

Os algoritmos Bannon de Bolsonaro dizem-lhes que têm de se colar aos símbolos nacionais de Minas e, digamos, a figuras do liberalismo político brasileiro como Tiradentes. À inconfidência mineira.

De Tiradentes o presidente candidato [Bolsonaro] tem muito pouco. Se alguma coisa ele tirou, no mandato que está a terminar, foi vidas. Foi e é um Tiravidas!… Veja-se a gestão que fez da pandemia. Veja-se o suporte prestado a grupos paramilitares (milícias, com fortes ligações ao mundo do crime). Veja-se o assassinato dos povos originários do Brasil, a invasão das suas terras (com muito grilagem de títulos de propriedade falsos). Veja-se toda a postura em relação à Amazónia.

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De Tiradentes o presidente candidato [Bolsonaro] tem muito pouco. Se alguma coisa ele tirou, no mandato que está a terminar, foi vidas. Foi e é um Tiravidas!…

Em Minas e em todo o país é preciso dizer que o candidato Bolsonaro é, politicamente, um iliberal, um absolutista, alguém do antigo regime, contra a república. Aliás, apanhando-se com o poder absoluto, o caminho vai ser o da servidão, para a larga maioria dos brasileiros. Já agora, os amigos dele da internacional nacionalista (extrema direita) afirmam-se como iliberais. E todos eles, incluindo o candidato, são contra a separação dos poderes, são contra a separação da Igreja e do Estado, são contra a liberdade religiosa, são contra a liberdade em geral. Como bom absolutista, o próprio candidato diz que foi Deus que o colocou na presidência. Por outras palavras, que o poder que tem é de origem divina.

Em Minas e em todo o país é preciso dizer que o candidato Bolsonaro é, politicamente, um iliberal, um absolutista, alguém do antigo regime, contra a república.

E do ponto vista económico, a menos que se entenda criminalidade de mercado como liberalismo económico, também é difícil suportar que o candidato é um liberal e/ou a favor, digamos, da liberdade económica. E portanto, candidata-se por um partido que se diz de liberal mas que de liberal tem muito pouco. Mais uma das muitas Fake News ou notícias falsas. Como disse o candidato Lula no último debate, ele é o rei das Fake News. Diz-se politicamente um liberal porque lhe dá jeito. Se lhe desse jeito o contrário, diria o contrário. Aliás, diz coisas diferentes (e entre si contraditórias) para públicos diferentes. Os algoritmos do Bannon dizem-lhe que é assim que pode lá chegar.

E a uma semana do 2º turno, um esforço a fazer em Minas e em todo o Brasil, pelo candidato Lula, deveria ser o de espalhar Real News ou notícias verdadeiras sobre o candidato Bolsonaro, em particular nas redes sociais. Ir buscar todo o histórico gravado de dislates do candidato, dos filhos e da restante seita política durante o seu mandato. Que não sabia quantos mortos havia com a pandemia porque não era coveiro. Que para fechar o Supremo Trubunal Federal (STF) bastavam um soldado e um cabo (disse o filho, Eduardo Bolsonaro num vídeo). Etc. Foram muitos os dislates e estão gravados.

E a uma semana do 2º turno, um esforço a fazer em Minas e em todo o Brasil pelo candidato Lula deveria ser o de espalhar Real News ou notícias verdadeiras sobre o candidato Bolsonaro, em particular nas redes sociais. (…). Foram muitos os dislates e estão gravados.

Leonardo Costa

Porto, 23 de outubro de 2022

Lula, a liberdade contra a tirania

Depois de 4 anos de governo que confirmaram Bolsonaro como neofascista, não apoiar Lula já não é só uma falta política grave, é uma falta ética. 

Ao ouvir alguns comentários chega a parecer-nos que Bolsonaro partiu para a segunda volta, tendo ganho a primeira. Lula precisa de obter mais 1,6% dos votos para ganhar, Bolsonaro necessita de mais 6,8 %; por cada voto a mais de Lula, Bolsonaro terá que ter três. 

Não façamos o jogo de Bolsonaro – o triunfalismo, mesmo quando derrotado, é arma dos populistas.

Não façamos o jogo de Bolsonaro – o triunfalismo, mesmo quando derrotado, é arma dos populistas. Mesmo assim, Bolsonaro recolheu 51 milhões de votos (43%), um resultado que nos surpreende, ocultando os mais de 57 milhões de votos de Lula. 

Como é que um candidato incapaz, com uma linguagem racista e machista, que nega a pandemia, que faz a apologia das armas e da mentira, tem tanto apoio? Escapa à nossa compreensão que um homem que representa tudo o que nos repugna não seja esmagado nas urnas. 

Na Europa já devíamos ter compreendido melhor a força da corrente neofascista. As vitórias de Meloni e Salvini na Itália, a força de Le Pen, os resultados eleitorais da extrema-direita na Suécia estão aí para o provar. Mas talvez fiquemos mais espantados com o apoio do populismo brutal e bronco, de Bolsonaro ou Trump. A extrema direita europeia parece mais polida, mas não é por isso que deixa de representar a mesma tentativa de desconstrução do Estado de Direito. Partilham o mesmo credo da superioridade do homem branco e do apelo, ao conservadorismo religioso – inscrevem-se na mesma corrente etnonacionalista religiosa de Putin. 

O discurso racista e patriarcal encontra apoio no Brasil, sustentado nas correntes reacionárias evangélicas, num vasto sector da classe média de remediados, que vive nos arredores das grandes cidades, que vira o seu ódio contra os descendentes dos escravos e, em parte, contra a elite urbana. Essa realidade ficou patente no voto paulista: Lula ganhou na cidade de São Paulo, mas perdeu no Estado. A escolha de Geraldo Alckmin para vice-presidente, duas vezes eleito como governador de São Paulo, pelo PSDB, não bastou para conquistar esse eleitorado. Encontrou eco a narrativa dos sectores da elite que apoiaram Bolsonaro em 2018, culpando a corrupção de políticos do PT pelo empobrecimento. O facto do PT , apesar de ter tomado medidas para garantir a independência do judiciário, ter  abandonado a agenda ética com que tinha sido eleito facilitou esse discurso.

O significado político da vitória de Lula na primeira volta, com mais 6 milhões de votos, não deve ser subestimado. O PT e o seu líder sobreviveram à destruição dos outros partidos democráticos porque não abandonaram a agenda social e continuaram a defender os interesses dos pobres e a combater a trágica herança da escravatura. 

O significado político da vitória de Lula na primeira volta, com mais 6 milhões de votos, não deve ser subestimado. O PT e o seu líder sobreviveram à destruição dos outros partidos democráticos porque não abandonaram a agenda social e continuaram a defender os interesses dos pobres e a combater a trágica herança da escravatura. 

Os governos de Lula foram uma experiência singular de social-democracia na América Latina, com políticas sociais capazes de tirarem milhões da miséria, garantir o crescimento económico, e ao mesmo tempo acalmar os mercados internacionais, uma política que nada tem a ver com a de governos populistas como os de Perón, Chávez ou Maduro. 

O centro e a direita democrática, como em países europeus, foi canibalizado pela extrema-direita. Simone Tebet, apoiada pelo PSDB e pelo PMDB, partidos que dominaram, com o PT, a política brasileira e ocuparam a presidência desde o fim da ditadura, obteve 4,16% dos votos. Os partidos que a apoiavam perderam muita da legitimidade que alcançaram com a democratização do Brasil, ao embarcarem na campanha de destruição do PT, ajudando, em 2018, a eleição de Bolsonaro. O mesmo aconteceu a Ciro Gomes, do PDT, que obteve 3% dos votos. A fraqueza do centro-direita é um dos graves problemas da democracia brasileira. 

Depois de 4 anos de governo que confirmaram Bolsonaro como neofascista, não apoiar Lula já não é só uma falta política grave, é uma falta ética. 

O que resta dos partidos do centro e da direita democrática, no Brasil, são coligações de personalidades, algumas delas prontas a vender a sua dignidade. Por isso o MDB e o PSDB declaram a sua neutralidade, o que permitiu ao governador de São Paulo (PSDB)negociar com Bolsonaro o apoio que lhe dá.

 Depois de 4 anos de governo que confirmaram Bolsonaro como neofascista, não apoiar Lula já não é só uma falta política grave, é uma falta ética. 

Fernando Henrique Cardoso, fundador do PSDB, ao contrário do que fez em 2018, declarou inequivocamente o seu voto em Lula, em defesa do Estado de Direito democrático. O mesmo fez Simone Tebet, que se afirma como uma alternativa para o futuro, no campo do centro-direita, ao declarar a participação na campanha de Lula. 

A tomada de posição em favor de Lula de muitas personalidades políticas, económicas e religiosas, mostra uma crescente consciência em sectores da elite brasileira de que Bolsonaro está a destruir o legado da democracia brasileira. Que o Estado de Direito, nomeadamente a independência do Supremo Tribunal, está ameaçado. Que mais quatro anos de extrema-direita no poder representam um risco existencial para as liberdades e para o lugar do Brasil no Mundo.

 A vitória contra Bolsonaro, como mostram as eleições francesas, impõe uma aliança entre a esquerda e o centro-direita (apesar da sua fraqueza atual). No Brasil, os movimentos sociais, como foram na derrota de Trump , são vitais também para travar o projeto autocrático. 

Para vencer Bolsonaro, Lula terá que unir todas as forças do campo democrático, sem ceder na agenda da inclusão social, da ecologia e da defesa dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, terá que combater as campanhas de fake news de Bolsonaro que o acusam, por exemplo, de tencionar fechar as igrejas e perseguir os padres, apesar de ser católico praticante. O Supremo Tribunal Eleitoral tem procurado conter a onda de mentiras, mas a desinformação irá ser cada vez mais monstruosa.  

Essas campanhas de fake news encontram apoio na extrema-direita internacional que tem manifestado o seu apoio a Bolsonaro, como fez Trump. O Senado norte-americano, pelo contrário, numa resolução sem precedentes, declarou que romperia relações com o Brasil se o resultado das eleições não fosse respeitado. 

Nos BRICS, hoje dominados por dirigentes autocráticos, a voz de um Brasil democrático é essencial. 

O combate é difícil, mas o mais provável é que Lula vença – uma vitória da democracia contra a autocracia, no Brasil e no mundo. 

Debate :O futuro da democracia brasileira.

DEBATE «O futuro da democracia brasileira»O Brasil depois das eleições e os seus impactos internacionais.

 Orador: Reginaldo Nasser, Professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, investigador no Instituto de Estudos sobre os EUA

Comentador: Alvaro Vasconcelos (Forum Demos)

Moderador: Rui Albuquerque, (UL Porto, Relações Internacionais)

Local:Universidade Lusófona , Rua de Augusto Rosa,24; 4000-098 Porto

O Brasil tem futuro

 

 Numa altura em que a extrema-direita ganha as eleições na Itália e o espetro de Trump continua a pairar na América, é do Brasil que vem a esperança de uma derrota clara do populismo e, com ela, do credo herdeiro do fascismo – “Deus, Pátria e Família”. 

As comemorações do bicentenário tinham trazido para o debate o futuro do Brasil. Miguel Sousa Tavares, no Expresso, considerou que a forma como se comemorou o bicentenário é a prova de que o Brasil é um projeto falhado.

O Brasil que encontrei, nas vésperas de eleições decisivas para o seu futuro democrático, nada tem a ver com o que Bolsonaro personifica. A tragédia social, sanitária, cultural e ética, que o seu governo representou, despertou uma vaga cívica que o Estado de Direito conseguiu proteger. Bolsonaro assumiu-se como herdeiro dos golpistas que em 1964 derrubaram o governo progressista de João Goulart.

 A unidade construiu-se na convicção de que Bolsonaro representa uma ameaça existencial para o Brasil. É esse consenso, que não existiu em 2018, que tudo indica o vai derrotar, talvez logo na primeira volta das eleições

 A unidade construiu-se na convicção de que Bolsonaro representa uma ameaça existencial para o Brasil. É esse consenso, que não existiu em 2018, que tudo indica o vai derrotar, talvez logo na primeira volta das eleições. 

Lula, pelo seu passado, representa essa vaga de reafirmação democrática e social – a esperança da maioria da população, que vive na pobreza, e de uma parte significativa dos remediados, que acreditaram no discurso contra as elites e racista de Bolsonaro e encontraram nas correntes evangélicas reconhecimento e conforto moral. Sectores importantes das elites que detêm os grandes órgãos da informação, que dominam a vida económica, cultural e universitária, que, em 2018, facilitaram a vitória de Bolsonaro porque queriam ver-se livres do PT, constataram a sua incompetência e viram-no como uma ameaça ao seu credo liberal. Acabaram por conformar-se com a ideia de que o candidato dos que nada têm é a única hipótese de se verem livres de Bolsonaro. Sinal do reconhecimento da gravidade do momento são as declarações de muitos quadros do PSDB, o partido de Fernando Henrique Cardoso, de que irão votar Lula logo na primeira volta. A candidata apoiada pelo PSDB, Simone Tebet, tem 4% das intenções de votos. 

A herança da escravatura

 É um absurdo sugerir, como o fez Miguel Sousa Tavares, que o Brasil poderia ter ganho alguma coisa com uma mão-de-obra de escravos. Os cinco milhões, arrancados a África e vendidos como animais de carga, são uma pesada herança e o crime mais tenebroso da história colonial portuguesa. 

Um futuro governo Lula terá de retomar as políticas que, desde os governos de Itamar e FHC e, sobretudo, dos seus próprios governos, retiraram 40 milhões de brasileiros da miséria e lhes deram poder por via da educação. Isso talvez queira dizer que, pela primeira vez na história do Brasil, conseguiram de forma eficaz começar a pôr em causa o racismo estrutural, que condena os negros brasileiros à miséria,  essa herança da escravatura.  Foram tempos que permitiram progressos significativos na emancipação social dos pobres que são, maioritariamente, os descendentes dos escravos, negros e mulatos (mais de 50% da população brasileira). Mas muito restava a fazer e a situação agravou-se nos anos de Bolsonaro ;  43, 7 milhões vivem hoje na pobreza, mais 11 milhões que em 2018; 50% dos brasileiros ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos, contra 7 vezes em França.

Hoje, os descendentes dos escravos, negros, mestiços, e os descendentes dos povos primeiros, “os indígenas”, ocupam o espaço cultural e fazem ouvir a sua voz

Vi o futuro do Brasil em Salvador da Bahia. Fui lá pela última vez ainda no tempo de FHC. Nessa altura, o empoderamento de uma parte significativa dos mais pobres pela ascensão social e a educação, nomeadamente a política de quotas no acesso ao ensino universitário (adoptada com Lula) ainda não se tinha feito sentir. Hoje, como em muitas outras regiões do Brasil, os descendentes dos escravos, negros, mestiços, e os descendentes dos povos primeiros, “os indígenas”, ocupam o espaço cultural e fazem ouvir a sua voz.

 Vi o futuro do Brasil naquela jovem que fala das estórias que a sua avó tinha ouvido da sua mãe escrava. Nos que se mobilizam no apoio às candidaturas negras, nos jovens que se entusiasmam com a peça Dandara, heroína do quilombo de Palmares. Também no MASP, em São Paulo, a cidade da elite, na exposição Retratos Brasileiros, de Dalton Paula, com as pinturas das personagens negras a que a história do Brasil não tinha dado rosto. No movimento “Vidas negras e faveladas importam”, que exige que se descubra o assassino de Marielle. No renovado Museu do Ipiranga, eco do grito da liberdade, que exibe os que o construíram e abriram as estradas que permitem visitá-lo. Na literatura de resistência ao bolsonarismo, como a de Milton Hatoum ou de Djamila Ribeiro, que, na cerimónia de entrada na Academia Paulista de Letras, evocou o seu orixá e lembrou que os terreiros do candomblé foram e são focos de resistência cultural.

Mas o futuro tem de estar também na defesa do ambiente. O acordo que levou ao apoio a Lula da ecologista Marina Silva faz com que muita gente com quem falei esteja convencida de que, com um novo governo, haverá “uma virada ecológica”, que será possível acabar com o desmatamento da Amazónia e ouvir a voz e proteger a vida dos povos que a habitam.

Os desafios de um novo governo Lula

Os meus interlocutores também me avisam que, a confirmar-se a vitória de Lula, o seu governo enfrentará obstáculos gigantescos para tornar irreversível a política de inclusão social. 

 A prioridade das prioridades é derrotar Bolsonaro, garantindo a preservação do Estado de direito democrático, de que Lula, um metalúrgico, antigo sindicalista, formado na escola da vida, visto com desconfiança pela elite, se tornou no garante

Terá de vencer a resistência de uma das elites mais egoístas do mundo para conseguir taxar as grandes fortunas e encontrar os recursos financeiros para enfrentar o défice social e combater o racismo estrutural, sem assustar excessivamente os mercados.

Terá que proteger a Amazónia, contrariando os interesses de setores arcaicos do agronegócio e da madeira, apoiando-se na experiência de empresas que já operam de forma mais ecológica, para preservar a importância do setor na economia brasileira.

Terá que modernizar as forças armadas e militarizadas, garantindo a segurança dos cidadãos e fazendo dos direitos humanos e da defesa da democracia uma prioridade da sua formação, na linha das conclusões da Comissão da Verdade. 

Um governo democrático terá que retomar a agenda ética e conquistar para o campo da democracia os mais de 30% de brasileiros que irão votar Bolsonaro. 

 Hoje, porém, a prioridade das prioridades é derrotá-lo, garantindo a preservação do Estado de direito democrático, de que Lula, um metalúrgico, antigo sindicalista, formado na escola da vida, visto com desconfiança pela elite, se tornou no garante. Então tudo voltará a ser possível, mesmo a utopia do Brasil país do futuro, que fará da sua apregoada unidade na diversidade, não um slogan destinado a branquear a desigualdade, mas um projeto da humanidade comum.