Por Carlos Figueiredo*

(Imagem: pintura de Paulo Medeiros)
Smile Bike é o nome de um projeto que junta três entidades que querem contribuir para que mais pessoas possam ter transporte sem custos para poderem aceder a emprego.
Research é o nome de um outro projeto que junta duas empresas com o objetivo de antecipar necessidades de comunicação entre pessoas em modo de entretenimento.
Os dois promotores e empreendedores querem servir a sociedade por via daqueles projetos resultando destes um usufruto gratuito. O alvo do Smile Bike são pessoas de Moçambique. O alvo do Research são pessoas de todo o mundo.
O primeiro projeto, que visa angariar fundos para a compra de bicicletas, usa a tríade parceira para alargar a rede de doadores e alcançar o alvo. Para isso faz uso do know-how de um empreendedor no setor das bici, beneficia do carisma e capital de credibilidade mobilizador do parceiro cultural, a ACERT Tondela, e tira partido do conhecimento de uma ONG que opera em Moçambique.
O segundo projeto quer saber sobre hábitos e tendências de utilização de informação em smartphones por pré-adolescentes (13 anos). Para isso engenheira data analytics, ou seja, trata estatisticamente os dados recolhidos e analisa por estes padrões de comportamento, e acede aos “escutados” via parceiro, que procede à identificação do alvo e ao pagamento pela sua participação. Os dados dos equipamentos dos indivíduos alvo incluem, ainda, dados de terceiros – quem interage com os “escutados”, embora desconhecendo que são alvo de “escuta”.
O ideólogo do Smile Bike é Nelson Martins, da empresa VeloConcept. O rosto do Research é Mark Zuckerberg, patrão do Facebook. A semelhança entre estes empreendedores é o seu foco no saber fazer, bem. Um quer fazer o bem, o outro bem. A diferença não é semântica, é de forma. O título da notícia que refere cada um destes projetos é disso revelador: in Jornal o Centro: “Empresa de Viseu vai enviar 50 bicicletas para Moçambique”; in Wired: “By defying Apple’s rules, Facebook shows it never learns” .
A relação entre ética e negócios é um assunto mais do que debatido, embora não apreendido por muitos que têm a responsabilidade de empreender. Menos tratada é a perceção sobre como a ética influencia positivamente a inovação. Será isto uma quimera? Como tantos outros, Nelson Martins mostra que não. O resultado da relação entre aqueles dois construtos é o que dela fizermos.
Empresas como o Facebook inovam essencialmente na forma como criam envolvência entre os frequentadores da sua rede social. O decréscimo de apelo pela rede entre os mais jovens eleva a tensão no grupo empresarial, pelo que estes entendem ser preciso bisbilhotar o querer e o crer dos pré-adolescentes que esgotam o seu tempo a olhar para uma tela de 5-6 polegadas.
A pesquisa de mercado é aceitável, a forma como o fazemos é discutível, mas o seu fim deve lançar-nos à interrogação. Afinal, face à morte, nas exéquias fúnebres, o que se menciona é o bem que a pessoa fez aos outros, o tempo que deu, o valor que legou à sociedade, nunca o que ela cobrou, o que teve ou comprou, ou quantos vinculou a um estado de mau viver (ainda que o livre-arbítrio seja da responsabilidade de cada um).
O Facebook visa manter a envolvência da sua audiência para argumentar em favor da estabilidade do seu produto, que é o que resulta de uma comunidade que se julga a navegar livremente, em troca do seu tempo e da identificação dos seus interesses. Com isto, o Facebook tem, pelo menos, ganhos com a venda de publicidade, dos dados e do que sabe sobre as pessoas para construir ou suportar outros negócios. Dito assim parece ardiloso, e Zuckerberg arrisca-se a ter poucas palavras abonatórias no seu obituário. Porém, o sugo à plateia do Facebook não é diferente do que se que faz com a suposta festa em torno de alguns festivais, tais como o da Zambujeira do Mar. Coloca-se música alta e alienante, muito antes do dito programa oficial, e dão-se condições para consumos diversos, num ermo. Apoia-se a permanência dessa audiência, consumidora, pelo engodo do camping, num outro ermo. Faculta-se o transporte entre ermos e os banhos de praia, e, controlada a audiência, vende-se o “produto” a entidades de diversão, alimentação, bebidas… A estabilidade e previsibilidade da audiência garante o negócio, tal como faz o Facebook. Estes exemplos pretendem, apenas, ajudar-nos a ver o ponto de contacto entre o que nos parece global e distante daquilo que é local e próximo, e, questionarmos sobre a diferença entre aquelas atividades e a de Flâneur?
Flâneur, que pode ser entendido como o deambular no território, é um conceito pleno de significado na cultura literária francesa do século XIX – referida como essencialmente intemporal.
Flâneur retrata o andarilho apaixonado e emblemático que se retira do mundo enquanto navega ao tique-taque do seu coração. Ora, hoje o único tique-taque que se conhece é o da produtividade. É a agitação que dita o movimento, não a contemplação, pois não há tempo para a reflexão sobre o como e o para onde. Estamos apenas a ir na criação desenfreada do novo, mesmo que desnecessária, ou conducente à automutilação – emprego, bem-estar, tempo em família… Como camisola amarela, a esquizofrenia na inovação, que por vezes mais parece ser “fluffy” do que valorosa.
O Flâneur passou da cidade para a Web. À semelhança do que sucedeu com as grandes metrópoles, que já não nos permitem deambular como antes, a Web, no seu percurso de evolução algorítmica e dos modelos de negócio contíguos (não tanto estes, mas mais o que destes se quer retirar), gerou o estreitamento da diversidade. Engaiolou as pessoas em contrapartes de homophily por gostos e afins semelhantes. A maior parte de nós circula hoje por avenidas com destinos concretos. Os becos quase desapareceram, tal como a surpresa, a novidade, o acesso “livre” da Web!
Surpresa, pela forma, não do conteúdo, é o que o novo romance do escritor francês Michel Houellebecq, Sérotonine, nos traz. É tal como o fim do deambular, mas agora nas nossas referências consciente e subconscientes.
O livro chegou quase que em simultâneo a incontáveis livrarias de todo o mundo, encenando a impressão e a distribuição à la Web, instantânea e em toda a parte. Porém, para que os trezentos e vinte mil exemplares da primeira impressão sejam igualmente apetecíveis por tantos e em tantos lados distintos, algo aquela escrita tem de ter, ou não ter. Qual o segredo? Talvez seja o drenar, o mais possível, das referências de identidade ou de identificação do leitor. Referências que, drenadas, porventura, já não gerarão conflito íntimo pela distância cognitiva e emocional entre o que sabe e sente e aquilo que se lê. É, em suma, a promoção do horror ao novo, é a chegada ao glocal literário.
Glocal literário que promove a convergência do local e do global, ou seja, é o aplanamento das nossas referências, de nós mesmos. Mas, então, e no meio disto, o que é afinal um escritor? É aquele que apura a sua técnica para chegar ao seu leitor, ou aquele que chega, economicamente, por não chegar, de facto, à construção de nenhum ser? É o que de nós fazemos; é o dizer que escrevemos em vida sobre o nosso obituário; é, bem fazer, bem, ou «non fare niente». E é para este “nenhum” que muitos nós trabalhamos e inovamos.
Aceleradamente e até que aprendamos, esta é a sociedade alienada, que não sabe o como e o para onde, que não distingue a diferença entre um concerto na Zambujeira de um momento musical numa sala perto de si; esta é a sociedade que não identifica diferenças entre o bem que é enviar bicicletas para Moçambique, do pernicioso que é dar dinheiro a uma criança de 13 anos para se deixar espiolhar. É a sociedade que tudo faz para não ter pessoas a deambular para se deixarem surpreender, pelo bem.
«Pequenas coisas na vida suplantam os “grandes eventos”» – Peter Altenberg
Referências
Jornal do Centro: https://www.jornaldocentro.pt/online/regiao/empresa-de-viseu-vai-enviar-50-bicicletas-para-mocambique/.
Wired: https://www.wired.com/story/facebook-research-app-lessons/?fbclid=IwAR26pE5p2FrGQPUfvl8424y7aeOxetKtmhHJ2DEREPR7OhfT2ltV3UrUfXo
https://www.theparisreview.org/blog/2013/10/17/in-praise-of-the-flaneur/.
Sobre o Flâneur: https://www.publico.pt/2019/01/25/culturaipsilon/opiniao/literatura-mundial-autoextincao-1859032.
NY Times: https://www.nytimes.com/2012/02/05/opinion/sunday/the-death-of-the-cyberflaneur.html?pagewanted=all&_r=0.
*Carlos Figueiredo tem doutoramento em Media Digitais pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto no âmbito do programa UT Austin (Texas) |Portugal (dezembro de 2014) e uma licenciatura de cinco anos em Engenharia Física pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (fevereiro de 1998). Atualmente desenvolve um projeto de empreendedorismo e inovação. Com uma diversificada vivência profissional e académica em países como Portugal, EUA, Alemanha, Irlanda, Marrocos e Itália, foi desenvolvendo a sua atividade nos domínios das TIC, indústria, consultoria de inovação, cultura e turismo. Como principais responsabilidades destacam-se as de gestor de projetos e de equipas multidisciplinares, empreendedor em diversos domínios, co-fundador e CEO da Editonweb.com (2003-10), co-fundador e ativista do Núcleo de Viseu da Amnistia Internacional (2012-16), gestor e membro activo da Zunzum-AC (2012-2016).