Com o lento e faseado processo de desconfinamento que está a ter lugar um pouco por todo o planeta, são ainda muitas as incertezas sobre o modo de vida que nos espera. Sendo improvável, pelo menos no curto prazo, a descoberta de uma vacina contra a covid-19, a realidade do distanciamento social pode ter vindo para ficar. Surpreendentemente, esta é uma discussão ausente do debate público, perante a urgência na tomada de medidas de resposta imediata ao vírus e às suas consequências socioeconómicas. Resta-nos pouco tempo para pensar o que pode ser a realidade a longo prazo e, infelizmente, faltam ideias e propostas inovadoras.
Sendo compreensíveis os apelos para um regresso à vida que todos conhecemos, a realidade está aí para nos mostrar que o normal ao qual ansiamos voltar não pode ser uma solução de longo prazo. O mês de maio, que acaba de terminar, foi o mais quente a nível global jamais registado; e não se pense que se trata de um valor isolado, sendo antes a sequência de vários recordes máximos batidos sucessivamente nos últimos anos. Como vários ecologistas alertaram, esta pandemia que enfrentamos está também associada à visão produtivista da economia, que obriga a uma cada vez maior incursão do Homem nos terrenos, outrora, da Natureza.
O que nos espera então o dia de amanhã? As expectativas para o pós-confinamento podem ser divididas em dois grupos. No primeiro, chamemos-lhe grupo pessimista, estão aqueles que acham que tudo voltará a ser, mais detalhe menos detalhe, como dantes, em particular no que diz respeito às políticas estatais de crescimento contínuo assentes no consumo crescente dos cidadãos. Estes pessimistas apoiam-se nas imagens que mostram, nas primeiras horas após o final do confinamento obrigatório, centenas de pessoas em fila para poderem entrar em lojas de roupa ou de alimentação rápida, de grandes empresas multinacionais. No segundo grupo, otimista, estão aqueles que acham que a resposta à covid-19 trará novas políticas de sustentabilidade a nível ecológico, social e económico, representando assim um corte com as políticas das últimas décadas.
No grupo dos otimistas, no qual me coloco, as razões do otimismo vão desde uma quase ingenuidade até razões de ordem muito prática: perante a pandemia, não há sequer a possibilidade de voltar ao mundo que conhecíamos. Também por isso vemos propostas que, até há um par de meses, mereciam pouca discussão a serem avançadas em vários países: de um rendimento básico incondicional até à semana laboral de 4 dias. E são também as razões de ordem prática que nos obrigam a rever a ordenação do espaço público, com o encerramento (temporário) de vias à circulação automóvel, da criação de novas ciclovias, do aumento das áreas para as esplanadas dos cafés e restaurantes, da criação de novas zonas de encontro e de convívio ou ainda de imaginar um novo modelo de educação.
Estou bastante convencido de que serão, sobretudo, as razões de ordem prática as que nos obrigarão a pensar em soluções ainda pouco ou nada discutidas. Se não é possível que voltemos a ter salas de aula com trinta alunos fechados, porque não imaginar um modelo de educação radicalmente diferente, com muito menos alunos por turma e com uma forte componente letiva fora do espaço escolar? Se se revelar impossível voltar a concentrar trabalhadores sem condições de segurança – e, infelizmente, temos tido vários casos de coronavírus em setores, como o da construção civil, onde os trabalhadores se veem obrigados a trabalhar nessas condições – porque não aceitar discutir a própria definição de trabalho? E o que acontecerá ao setor do turismo (e de outros dependentes deste, como o da habitação) caso acabem ou se reduzam drasticamente as fugas de fim-de-semana, a nível internacional?
Num artigo publicado em março, argumentei que o medo e a falta de um imaginário alternativo eram as razões pelas quais não se tinha conseguido, pelo menos até agora, aplicar medidas radicalmente desafiadoras do modelo económico dominante. Ora, mesmo que em menor escala, o medo de contaminação continuará mais ou menos presente nos próximos tempos. Contrariamente ao que acontecia até há uns meses, criou-se um imaginário sobre como podemos viver de um outro modo. Estes meses de confinamento mostraram que, afinal, não se está tão mal em casa, que as cidades se usufruem mais quando os carros estão ausentes, que se respira melhor quando se abranda o ritmo de vida. Quantos de nós quererão, tudo somado, voltar à situação anterior? Se até aqui os governos têm agido com base na resposta urgente à pandemia – e a situação de precariedade para a qual muitos foram empurrados, isso o exige -, é imperioso que se tenha um debate plural e participado sobre o que queremos para o médio e longo prazo. Mas este debate não pode ser feito à porta fechada e em circuito fechado. Uma possibilidade que valeria a pena explorar seria a da criação de uma ou várias assembleias de cidadãos, que poderiam ir do nível municipal ao nível europeu. Temos uma pequena janela de oportunidade para fazer mudanças estruturais que nos afastem da situação de insustentabilidade em que nos encontramos. Não a deixemos passar.
Parece-me um bom tema, “Pouco tempo para repensar tudo”. Interroga-se Jorge Pinto, no seu muito interessante texto, “porque não aceitar discutir a própria definição de trabalho?”. Eu sugeria que se ampliasse a interrogação a “porque não aceitar discutir a própria definição de capital”; ou fundir a questão numa só, tanto mais que uma parte do capital é trabalho acumulado.
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