A Esperança dos Inocentes, por Álvaro Vasconcelos

Perante o horror, o que escrever, o que dizer? Como não cair no cinismo e no pessimismo? Como não ver nesta tragédia, feita de fanatismo e de morte, um terrível sinal dos tempos?

Mulheres árabes e judias marcharam pela paz , em 2017 ,com cartazes que diziam “A paz depende de você”, em árabe e hebraico.

Poderá a tragédia dar origem à solução para a reconciliação israelo-palestiniana? Neste momento, esta questão parece ser de uma ingenuidade absoluta. A situação parece dar razão aos cínicos e niilistas de todas as tendências. Se nos é difícil nomear a natureza da tragédia e do horror, o que pensarão os palestinos e israelitas que conseguem escapar ao desejo de vingança, que acreditam na paz e na possibilidade de vida em comum na terra mártir em que querem continuar a viver. Tenho procurado ouvir as vozes da liberdade da Palestina e de Israel, num diálogo marcado pela enorme dificuldade de encontrar palavras que não firam.

O nosso primeiro dever é assumir que a desumanização de palestinos e israelitas é o primeiro passo para justificar o terror. Daí que seja imperativo ético condenar inequivocamente os atos de terror do Hamas. O carácter hediondo dos crimes do Hamas, porém, não justifica a desumanização dos palestinos e não pode impedir a condenação igualmente inequívoca dos bombardeamentos israelitas sobre a população de Gaza e a sua punição coletiva.

Após a guerra dos seis dias, em 1967, Sartre afirmou que estava com os israelitas com o coração e com os palestinos com a razão. Era um reflexo do sentimento na Europa, onde ainda estavam bem presentes as consequências devastadoras do antissemitismo. Nos anos que se seguiram a causa palestina foi ganhando o coração de muitos. Hoje, é fundamental equilibrar o coração e a razão.

É sinal inquietante dos tempos que vivemos que se tenha, de novo, banalizado a tal ponto o niilismo, a negação absoluta da humanidade em nome de objetivos considerados históricos. Em suma, que se considere que não há inocentes – uma divisa dos terroristas do século XIX.

“Não há americanos inocentes” afirmou Bin Laden depois do 11 de Setembro, quando lhe perguntaram se não sentia remorsos pela morte de mulheres nas Torres Gémeas. Também para os dirigentes do Hamas não há israelitas inocentes, como para Netanyahu e a extrema-direita israelita não há palestinos inocentes.

Que cidadãos normais de uma sociedade pacífica e democrática, a milhares de quilómetros da tragédia do Médio Oriente, não sintam empatia pelas vítimas do Hamas, em nome de um posicionamento geopolítico, é muito mais alarmante. O  niilismo ameaça as sociedades democráticas, e Portugal não escapa a esse vírus mortal. Trata-se de recusar a existência de valores éticos que  devem condicionar a ação humana. Os fins não justificam os meios, mas os meios explicam os fins.

Que outro caminho é possível é defendido por israelitas e palestinos. Os exemplos são numerosos, como a israelita Nurit Peled-Elhanan, que depois da sua filha ter sido vítima de um ato de terror escreveu que a tragédia que se abateu sobre ela reforçou a sua “convicção que só a coexistência entre os dois povos porá termo ao ciclo de violência e morte de inocentes”.

Nos últimos anos muitos palestinos optaram por formas de luta pacífica pela igualdade de direitos, inspiradas pela luta contra o Apartheid, como os sit-ins, em 2021, contra a demolição de casas em Jerusalém Oriental, os movimentos feministas, as greves ou a campanha de boicote de Israel. Uma dessas manifestações, no essencial pacífica, foram as marchas de Gaza (2018-2019) contra o bloqueio da região, que foram violentamente reprimidas, com centenas de palestinos mortos, o que valeu a Israel mais uma condenação na Assembleia Geral da ONU. Também em Gaza se assistiram a manifestações pacíficas pelos direitos humanos contra o Hamas, perante a indiferença da comunidade internacional.

O que os pacifistas palestinos e israelitas tinham compreendido é que o objetivo de dois Estados era cada vez mais ilusório. O objetivo passou a ser pôr termo ao Apartheid e conquistar a igualdade de direitos, no quadro de uma unidade política mal definida, possivelmente um Estado laico, multicultural. Já em 1999 Edward Said, em artigo para o New York Times, considerava que dado o colapso de um governo de Netanyahu era preciso questionar a solução de dois Estados que saíra do processo de paz – “Oslo definiu as condições para a separação, mas a verdadeira paz só pode resultar com um Estado binacional”.

Os meios de ação refletiam, nos últimos anos, a prioridade dada à luta pelos direitos e a uma vida digna e em paz. Para os movimentos anticoloniais era legítimo o uso da violência contra as forças militares ocupantes, mas os movimentos pelos direitos cívicos adotam outras formas de luta. Mesmo assim, é bom lembrar que os movimentos de libertação nacional das colónias portuguesas, com exceção da UPA, sempre recusaram a violência contra os colonos civis, o que lhes permitiu ganhar a simpatia de muitos portugueses.

Os atos de terror do Hamas enfraquecem o campo da paz, em Israel. Já tinha sido assim com a segunda Intifada que, ao contrário da primeira, foi acompanhada por atentados contra civis. Acabam por facilitar o objetivo de Netanyahu e da extrema-direita israelita de colonização da Cisjordânia e de tornar inviável a autodeterminação dos palestinos.

Também nós temos de ser capazes de afirmar a crença na humanidade comum, quando a tragédia do Médio Oriente se projeta cá dentro, como agora em França. Para a União Europeia, minada pelo discurso racista, essencialmente antimuçulmano, mas também pelo antissemitismo, a questão é existencial.

A União tem de superar a acusação de hipocrisia, de dois pesos e duas medidas, que está a torná-la inaudível num mundo pós-ocidental. De imediato, significa defender o direito à vida dos habitantes de Gaza, condenar o crime de expulsão coletiva e exigir a libertação dos reféns. A condenação da brutal violação dos direitos humanos pelo Hamas deve inspirar um discurso que assuma a universalidade dos direitos fundamentais e o respeito por Israel da carta das Nações Unidas e das suas convenções e resoluções.

Este texto foi publicado originalmente no Público, no dia 15 de outubro de 2023.