Forum Demos Podcast | T4/Ep.2 :: Combate à corrupção e Estado de Direito, por Ana Rodrigues

Siga-nos e ouça no Spotify o segundo episódio que dedicamos às Legislativas de 2024, sobre a Corrupção, com Ana Gomes, antiga eurodeputada e diplomata, e Ana Rodrigues, consultora jurídica.

O texto que se segue, da autoria de Ana Rodrigues, traduz o olhar da convidada em relação ao tema do episódio.

Apesar de não haver uma definição universalmente adoptada de corrupção, e de haver uma confusão grande entre, por exemplo, o sentido corrente e o sentido penal de corrupção, podemos usar como base de trabalho uma noção razoavelmente lata de corrupção, enquanto abuso de um poder publicamente conferido para obter um ganho privado. Ora, este abuso de um poder publicamente conferido para obtenção de ganhos privados tem impactos profundos ao nível do sistema democrático, e de várias formas. Há talvez
dois grandes eixos que podemos destacar a este propósito: o enfraquecimento democrático propriamente dito e a fragilização dos direitos fundamentais.
Em primeiro lugar, a corrupção comporta um enfraquecimento democrático na medida em que corrói a prestação de contas dos decisores políticos em relação ao público e aos eleitores, sendo mais provável a prevalência de decisões que não são tomadas no interesse público quando existe corrupção. O resultado é um dano ao nível da legitimidade do regime democrático e a perda de apoio e confiança nas instituições. Em segundo lugar, a corrupção é um obstáculo ao exercício dos direitos fundamentais, quer na sua dimensão objectiva, enquanto princípios objectivos da ordem constitucional do Estado, quer na sua dimensão subjectiva, enquanto pretensões individuais. É um obstáculo aos direitos fundamentais porque afronta o princípio da igualdade perante a lei, bem como
os direitos daqueles que já partem de uma posição desvantajosa do ponto de vista social, que são aqueles que mais fortemente dependem dos bens e serviços públicos. Assim, tem sido apontada a necessária co-relação entre boa governação e direitos fundamentais, já que é a boa governação que conduz a um ambiente institucional favorável ao exercício dos direitos fundamentais. E, em contrapartida, um ambiente de protecção e promoção de direitos fundamentais oferece os parâmetros de acordo com os quais é possível avaliar e medir a prestação de contas dos decisores políticos. Em suma, a corrupção tem um efeito corrosivo nas sociedades, pondo em causa a efectividade dos direitos fundamentais e a confiança nas instituições. Por isso – e este é o pressuposto de que partimos nestas linhas – um combate robusto à corrupção é uma
necessidade evidente no quadro do Estado de Direito democrático.

Mas o discurso contra a corrupção e os mecanismos escolhidos para a combater também podem corroer o Estado de Direito democrático, particularmente quando se tornam o centro de narrativas populistas. E há talvez dois grandes riscos ou ameaças postos pelos mecanismos de combate à corrupção que, em vez de aprofundarem – como é suposto – o Estado de Direito democrático, podem debilitá-lo.Por um lado, a prolixidade da investigação e acção penal em relação a titulares de cargos políticos, aliada a sistemáticas quebras do segredo de justiça e a um índice especialmente diminuto de condenações, pode ter como resultado inflamar a percepção da corrupção na opinião pública, causando uma dissociação entre a percepção mediática e a realidade. Na perspectiva da opinião pública – que se agrava num contexto de fortíssima polarização do debate e de inflamação das opiniões nas redes sociais e até nos meios de comunicação
tradicionais, como hoje temos – o sistema de justiça é visto como estando construído de modo a favorecer o infractor. Isto evidentemente leva a uma erosão da confiança nas instituições. Por outro lado, e no limite, podem os próprios mecanismos de combate à corrupção constituir na prática uma interferência sem freio no exercício de cargos políticos, designadamente por parte dos poderes de investigação e acção penal (mesmo que de forma
não deliberada), quando lançam suspeições substancialmente inconsequentes e/ou processualmente débeis, o que pode pôr em causa o princípio da separação de poderes e o princípio democrático. A nível internacional, alias, este problema está já de tal forma identificado que as Nações Unidas, em Agosto de 2023, diagnosticaram um declínio global pelo Estado de Direito, agravado pelo enfraquecimento das instituições nacionais, que se consubstancia em aumento da repressão, corrupção e aumento das desigualdades, mas também em polarização política, instrumentalização das instituições judiciárias, ataques aos direitos humanos, retraimento do espaço de intervenção cívica e manipulação dos meios de comunicação social.

É por isso que importa reflectir sobre as dinâmicas que se estabelecem entre o combate à corrupção e o Estado de Direito, de modo a que aquele sirva para o aprofundamento deste último, e não para sua ameaça. Isto implica várias coisas. Em primeiro lugar, é evidente que há que assegurar que o poder judiciário seja livre de pressões políticas. Mas, por exemplo no que toca ao Ministério Público, deve realçar-se que este não é, em si mesmo, um órgão de soberania nem tem de ser independente. Aliás, constitucionalmente, o MP goza de autonomia nos termos da lei e os seus magistrados são responsáveis e hierarquicamente subordinados. Ora, uma das questões relevantes que se têm discutido recentemente neste contexto prende-se com o facto de a autonomia do Ministério Público em Portugal ter significado, concretamente desde o estatuto de 2019, e por divergências interpretativas, uma anulação da sua hierarquia do ponto de vista da condução de investigações, hierarquia essa que teria a virtualidade de permitir a prestação de contas perante os outros órgãos de soberania e perante a opinião pública. Mas também deve ser sindicada a condução da investigação e acção penal dando a devida atenção aos direitos de suspeitos e arguidos. Isto prende-se directamente com questões como as fugas ao segredo de justiça, as buscas aparatosas, as detenções prolongadas para
interrogatório, muitas vezes sem que exista suficiente indiciação, as notícias cirúrgicas sem substância penal mas que funcionam numa perspectiva de achincalhamento público e convicção de culpabilidade, etc.

Por outro lado ainda, não é demais sublinhar que a justiça não pode funcionar como filtro democrático, que deve ser feito através do voto. Não existem sistemas depurados, sendo a corrupção um mal antigo, transversal a todas as sociedades, nem sempre a nossa percepção da corrupção equivalendo à existência de corrupção numa dimensão correspondente. A narrativa de prevalência da corrupção e a exaltação dos vícios do sistema democrático são
estratégias populistas e são também, histórica e comprovadamente, estratégias de correntes tendentes ao estabelecimento de regimes de carácter menos democrático ou mesmo autocrático. Se falarmos em avaliação da confiança nas instituições em Portugal, na verdade a justiça criminal sai bastante mais maltratada do que a percepção da existência de corrupção. O índice do Estado de Direito (rule of law) do World Justice Project, por exemplo, mede a forma como o público em geral experimenta e percebe o Estado de Direito na prática e nas
situações do dia-a-dia, em todo o mundo. A avaliação é feita tendo por base 44 indicadores e 8 categorias, por confronto com outros países na mesma situação geográfica ou de rendimento. Medem-se os freios à acção governativa, a ausência de corrupção, a abertura do governo, os direitos fundamentais, a ordem e segurança, a regulação pública, a justiça civil e a justiça criminal.
O que este índice nos diz é que a percepção de ausência de corrupção no nosso país (isto porque não se consegue medir a existência de corrupção, apenas a percepção sobre a sua existência) é um indicador que pontua incomparavelmente melhor do que o sistema de justiça penal. Em 31 países do norte global, Portugal está em 26.º no índice relacionado com o sistema de justiça penal, mas em 19.º no índice de ausência de corrupção, sendo que, quanto a este último, dos países do sul da Europa só a Espanha pontua ligeiramente melhor (e é curioso notar por exemplo que, globalmente, os Emirados Árabes Unidos pontuam melhor do que França, Uruguai pontua melhor do que os EUA, Rwanda pontua melhor do que a Eslovénia).
Mas nos mecanismos regulatórios, por exemplo, Portugal pontua significativamente pior. E, em contrapartida, significativamente melhor na existência de contrapesos à acção governativa. Ambas as categorias estão, na verdade, intimamente ligadas à prevenção da corrupção. A posição de Portugal no ranking geral, englobando todas as categorias, é a 21.ª. Tudo isto não significa menorizar o debate sobre a corrupção. Mas ele deve ser feito de
cabeça fria e com dados objectivos e mensuráveis.

Há que, por um lado, distinguir adequadamente entre quais os comportamentos que relevam criminalmente, quais relevam de uma perspectiva de boa administração, numa avaliação jurídico-administrativa, e quais relevam apenas da ordem da ética política e da boa governação. Há alguma dificuldade na destrinça, quer por parte dos actores políticos, quer por parte dos meios de comunicação social, quer genericamente na sociedade, entre a prática de actos que preenchem os tipos legais de crime – seja de corrupção, seja de peculato de uso, seja de tráfico de influências, seja de participação económica em negócio,
etc. – e a prática de actos que relevam apenas do ponto de vista ético, e em relação aos quais se deve fazer uma avaliação política e retirar consequências políticas. E, mesmo numa perspectiva de estrita legalidade e justiciabilidade, há também um afunilamento da acção do Ministério Público na acção penal, em detrimento da sua iniciativa no âmbito do contencioso jurídico-administrativo para prossecução do interesse público. Este afunilamento pode potencialmente levar a absolvições no âmbito penal de matérias que não deixam de ser ilegais e lesivas do interesse público. Por último, importa também reflectir sobre quais os mecanismos de transparência e de prestação de contas (ou accountability) que falta accionar, por exemplo, e são vários, os quais têm um carácter preventivo fundamental. Podemos falar dos diversos obstáculos na
aprovação da regulação do lobbying, como da enorme dificuldade de estabelecer mecanismos de auto-regulação (conflitos de interesses, impedimentos, etc.), como ainda da dificuldade em dar operacionalidade a mecanismos já criados, seja a Entidade para a Transparência ou o Mecanismo Nacional Anti-Corrupção – facetas aliás realçadas nas conclusões da avaliação temática do Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO) do Conselho da Europa divulgadas este ano.

Em síntese, se, de facto, a luta contra a corrupção não deve ser deixada nas mãos de movimentos populistas, sendo essencial a um Estado de Direito democrático preveni-la e combatê-la em todas as esferas, essa prevenção e esse combate devem ser feitos no âmbito e com os instrumentos do Estado de Direito democrático, e tendo por base a ideia de que é esse o fundamento último para aquele propósito, que não pode por isso mesmo perder-se de vista no caminho.

Por Ana Rodrigues, Consultora Jurídica


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