Combater a extrema-direita em várias frentes para resgatar a democracia, por Mariana Riquito*

Quando, em outubro de 2019, André Ventura (AV) foi eleito deputado pelo CHEGA para a Assembleia da República, escrevi um artigo onde alertava para os perigos da expansão desta força antidemocrática. Analisar as razões que levam alguém a votar num candidato com uma retórica abertamente xenófoba, racista, homofóbica e machista permite-nos tecer conclusões sobre como combater este discurso que resulta na legitimação da violência e da discriminação. Hoje, importa entender como esta retórica combinada com a estética “anti-sistema” são apelativas já não apenas para 67 mil portugueses, mas para quase meio milhão. Embora não equiparando a atual conjuntura à de 2019 nem umas eleições legislativas a umas presidenciais, há certos padrões transversais às duas, que nos ensinam muito sobre o desafio da extrema-direita em Portugal. Precisamos aprendê-los se queremos combater esta força antidemocrática.

Ainda que espalhado por todo o país —  AV tem votos em todos os concelhos (tal como em 2019) e, de entre os 308 concelhos, fica em segundo lugar em 208 —, é sobretudo no Sul do país que consegue captar a maioria do seu eleitorado. Nos distritos de Beja, Évora, Faro, Portalegre, o líder do partido de extrema-direita ficou sempre acima dos 15%. Apesar do patético precipitadismo de Rui Rio na noite eleitoral, sabemos já que não houve transferência de votos  comunistas para o CHEGA no Alentejo, desde 2001 eleitoralmente dominado pelo PS, aliás. De facto, os concelhos alentejanos onde AV teve maior expressão são aqueles que, na última década, menos votaram no PCP. Há, porém, um dado específico ao Alentejo que importa reter: é nesta região onde, segundo o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas de 2014, estão situadas mais de 20% das comunidades ciganas que se encontram em território nacional. O mesmo Estudo revela que, no Alentejo e no Algarve, as comunidades ciganas são as mais pobres e mais vulneráveis do país.

Ora, os dados demonstram que a retórica de AV penetra mais facilmente nos locais onde há maior peso relativo desta comunidade. Foi em Póvoa de São Miguel, em Moura, que o candidato obteve a sua maior votação (41, 23%), tendo ficado inclusive à frente do Presidente reeleito. Nesta aldeia, 20% dos habitantes são de etnia cigana e, como demonstra a reportagem do DN, a ciganofobia que já se vivia na rua encontrou, agora, uma representação política legítima na figura de AV. Sabemos que o racismo estrutural em Portugal, nomeadamente contra as comunidades ciganas, é esmagadoramente brutal. Segundo o mais recente European Social Survey, 62% dos portugueses manifestam racismo e/ou xenofobia e mais de 60% das comunidades ciganas portuguesas afirmam terem-se sentido discriminadas nos últimos anos. AV, ao fazer uso de uma retórica abertamente ciganofóbica, consegue captar parte do eleitorado que se revê nas suas posições abjetas e abertamente discriminatórias.

Para além desta penetração junto de locais semeados de “distância e indiferença”, a retórica de AV capta, desde 2019, muitos adeptos em locais com menor poder de compra e onde há menos hospitais, e isso não foi exceção este ano. Há décadas que as zonas interiores do país são marginalizadas pelo poder central em prol de um modelo de desenvolvimento focado nos centros urbanos. E é no interior, de norte a sul do país, que AV consegue obter os seus melhores resultados. Para uma população que não consegue atingir níveis dignos de qualidade de vida, que é obrigada a atravessar crises sucessivas e simultâneas, que se sente abandonada pelo sistema, é normal que a retórica “anti-sistémica” funcione. Mais ainda quando esta se serve de um “bode expiatório” em quem expiar a culpa. De facto, o empobrecimento da população, a falta de apoios do Estado, o enfraquecimento — senão mesmo esquecimento — dos serviços públicos ajudam a fomentar o ódio e o ressentimento contra comunidades sistematicamente construídas enquanto “ameaças internas”. Por isso, o combate à extrema-direita joga-se na arena das políticas públicas. A extensão e a consolidação dos direitos de acesso à saúde, à educação, à habitação e às infraestruturas são cruciais para resgatar parte da população nacional que se sente abandonada. O frustrante sentimento de desamparo exprimido por tanta gente só será colmatado defendendo acérrimamente a sua cidadania plena.

Porém, a concretização dessas políticas públicasdepende de um ideal mobilizador, capaz de combater a hegemonia neoliberal, capaz de recuperar laços de solidariedade social, capaz de defender intransigentemente a democracia. Por isso, nas ruas, nos bairros, nas Universidades, nos locais de trabalho, o combate à extrema-direita terá de passar pela construção de pontes de diálogo promotoras da justiça social, da tolerância, da empatia para com o Outro. Perante a face mais destrutiva deste sistema camuflada de uma retórica “anti-sistémica”, urge recuperar a força das alternativas sistémicas emancipadoras e promover horizontes utópicos de esperança. E isso implica levar a sério as lutas feministas, antirracistas, LGBTQIA+. Mostram-nos as experiências transnacionais que quem vota em candidatos como Donald Trump ou Jair Bolsonaro fá-lo para manter o seu estatuto de privilégio — do homem em relação à mulher, do branco em relação ao negro, do heterosexual em relação a minorias sexuais, etc. O combate à extrema-direita depende, por isso, do combate ao racismo estrutural, ao patriarcado, à heteronormatividade, e a todas as estruturas de opressão. Urge abraçar com firmeza a interseccionalidade das lutas emancipadoras e afirmar com determinação as ideias igualitárias, dando espaço para que novos sujeitos e subjetividades políticas inundem o espaço público.

Há meio milhão de portugueses que temos de ir resgatar à desesperança, à desconfiança, ao medo. Esse combate-resgate faz-se em várias frentes. Todas elas serão necessárias se queremos preservar a nossa democracia. Mais ainda se queremos abrir caminho para novas formas de fazer política — mais justas, solidárias e inclusivas.

*Mariana Riquito é Investigadora Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É Mestre em Sociologia e Ciência Política pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordéus e Mestre em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Um pensamento em “Combater a extrema-direita em várias frentes para resgatar a democracia, por Mariana Riquito*”

  1. Concordo em absoluto com o texto. Mas peca por deixar de lado o cancro da corrupção e como se vê o governo e o PS continuam a contribuir para esse flagelo como foi amplamente divulgado nos OCS. Com o país prestes a receber o maior apoio financeiro de sempre, aparece o governo e partidos do arco da governação a consolidar a promiscuidade política com a nomeação para cargos que deveriam ser isentos. O partido de AV agradece.

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