Algumas notas sobre as perspectivas para o mundo depois da crise do novo coronavírus, por Pedro Dallari*

Sob o comando do notável intelectual Álvaro Vasconcelos, o Fórum Demos realizou nos últimos dias 17 e 25 de abril, de forma virtual, dois debates muito interessantes. Foram tratados diversos assuntos, todos tendo por elemento comum a consideração da terrível crise sanitária mundial, causada pela disseminação do novo coronavírus e da doença por ele causada, a Covid-19.

Nos debates e em decorrência deles, surgiu naturalmente a reflexão sobre o impacto da crise para o futuro da sociedade mundial. São muitas e variadas as previsões, que se diferenciam quanto à avaliação do alcance e da intensidade desse impacto. Essa variação não significa, necessariamente, contraposição. Conforme a perspectiva e os critérios adotados para a análise, as mudanças serão percebidas em maior ou menor grau. O direito internacional, área à qual tenho dedicado minha atividade acadêmica, pode oferecer elementos que contribuam para essa reflexão. Por força fundamentalmente dos significativos avanços da pesquisa científica e da tecnologia dela decorrente, o início do século XX assistiu a rápida acentuação e consolidação do quadro de integração mundial. Costumo assinalar para meus alunos o paradoxo decorrente da coincidência, em setembro de 1914, da deflagração da Primeira Guerra Mundial, conflito exacerbado pelo nacionalismo, com a inauguração do Canal do Panamá, obra de caráter integrador, que possibilitou a circunavegação terrestre em rota próxima à linha do Equador.

A partir desse período, na sequência de cada grande crise mundial – justamente pelo impacto generalizado da crise e pela necessidade de, face ao risco a ela imanente, se lograr estabilidade na ordem internacional –, deram-se o fortalecimento do multilateralismo e a expansão do direito internacional, como expressão jurídica de medidas de políticas públicas adotadas em um contexto de maior integração global. Consequência dos horrores da guerra de 1914, a Sociedade das Nações representou, a partir de 1919, um marco muito relevante nesse sentido. Se é verdade que não conseguiu realizar seu principal objetivo, evitar a deflagração de um novo conflito de grandes proporções, abrigou iniciativas muito relevantes em favor do aperfeiçoamento e da universalização de regras mais justas para o convívio social. É o caso, entre muito exemplos possíveis, da legislação protetiva dos trabalhadores, desenvolvida e sistematizada a partir de órgão que, situado em seu interior, veio a se tornar a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Com a enorme destruição provocada pela Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939 e que ceifou milhões de vidas, a Organização das Nações Unidas (ONU) significou, em 1945, um grande avanço em relação à Sociedade das Nações. Também sob a ótica da busca da estabilidade nas relações políticas, econômicas e sociais internacionais, não só estabeleceu mecanismos mais consistentes para promover a segurança internacional, como impulsionou, em todas as áreas, a produção de um robusto quadro normativo, fixador de paradigmas universais, e a criação de organismos destinados a propiciar um monitoramento mais efetivo da aplicação dessas normas. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), na área da educação, e a Organização Mundial da Saúde (OMS), na área da saúde, exemplificam essa evolução. E  nem mesmo o quadro de bipolaridade da guerra fria, que marcou as relações internacionais por cerca de quatro décadas – conferindo a dois Estados, os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), papel dirigente na condução da vida internacional –, evitou que fosse sendo erguido, paulatinamente, um vasto arcabouço jurídico de instituições, princípios e regras claramente fundados na perspectiva da supranacionalidade.

Mas, nem só as crises no campo da segurança internacional foram responsáveis por promover esse incremento do multilateralismo e de avanços no âmbito do direito internacional. Crises de alcance global de outras naturezas – econômicas, sociais, ambientais e sanitárias, como esta que atinge hoje o mundo, causada pelo novo coronavírus – também deram ensejo à aceleração desse movimento integracionista. Um bom exemplo a ser mencionado é a adoção, em 2001, da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Face à crise global consubstanciada pela veloz propagação da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA ou AIDS, na sigla em inglês), aquele foro multilateral fixou o entendimento de que os direitos de propriedade industrial não poderiam ser impeditivos da produção em larga escala de medicamentos de baixo custo destinados ao tratamento daquela doença, também causada, assim como a Covid-19, por um vírus (no caso, o vírus da imunodeficiência humana, VIH ou HIV, na sigla em inglês). Essa decisão teve o efeito de motivar a intensificação da produção e comercialização dos chamados medicamentos genéricos, de ampla disseminação e com enorme benefício para a sociedade mundial.

Tendo em conta esse quadro histórico, é razoável se deduzir que a presente crise sanitária tenderá a provocar efeitos equivalentes. Ou seja, por conta do caráter global desta crise, será natural que haja uma retomada do esforço multilateral de busca de conhecimento e regulação que evitem a repetição de situação que, em todos os países, vem se revelando extremamente deletéria para as condições da economia e da vida social. Isto ocorrerá independentemente do quadro de fragmentação que marca a retórica política da nossa época, já que a dinâmica integradora, ao fim e ao cabo, é ditada pelas demandas objetivas da sociedade globalizada, e não pela vontade de governos e partidos. O resgate de um protagonismo maior para a ONU, o aumento da capacidade de enforcement das organizações internacionais e a perspectiva de papel mais ativo por parte dos fóruns de governança da ordem global (G7, G8 e G20), são todos assuntos que, indiscutivelmente, terão forte presença na agenda política.

Tal movimento deverá ser replicado no plano internacional regional. Na América Latina, os processos e organizações de integração terão que, necessariamente, passar por uma revisão. A incapacidade de planificação conjunta de ações voltadas ao enfrentamento e debelação da crise sanitária, com graves consequências para a população de cada um dos países da região, suscitará a retomada do empenho no fortalecimento do alinhamento na formulação de políticas públicas. No Mercado Comum do Sul (Mercosul), essa dinâmica restaurativa tenderá a ser propulsionada pela busca da ratificação do acordo celebrado entre o bloco e a União Europeia em junho de 2019 (Acordo de Associação entre Mercosul e União Europeia). O atendimento das condições necessárias para que o acordo entre em vigor exigirá a harmonização de padrões normativos entre os dois blocos, que terá que ser precedida de harmonização entre os países do Mercosul. E isto não apenas em matéria estritamente comercial, já que o acordo tem escopo mais amplo, alcançando temas ambientais e de direitos humanos.

Essa consideração acerca das perspectivas para o Mercosul lembra outra conclusão que se pode extrair no tocante aos efeitos de uma crise global para o multilateralismo e o direito internacional. De modo geral, a retomada da dinâmica integracionista se faz por meio da revitalização de propostas já em gestação previamente à crise. A contribuição da Sociedade das Nações para o advento de políticas de bem estar social resultou da busca de universalização de medidas já adotadas em várias partes do mundo, por força de movimentos e revoluções sociais da virada do século XIX para o século XX. O mesmo ocorreu com a ONU, que deu estrutura e substância a diretrizes que já vinham sendo formuladas no período entreguerras.

E assim certamente será na sequência da crise causada pelo novo coronavírus e pela Covid-19. A compreensão do risco para a estabilidade social global que a crise acarreta  fará com que os grandes temas que ficaram estagnados nos últimos anos – o aquecimento global, a vulnerabilidade social, as assimetrias na economia internacional – tenham que voltar à pauta de negociação de um multilateralismo renovado, gerando novos comandos para a evolução do direito internacional.

* Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari é Professor Titular de Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Na USP, coordena o Centro Ibero-americano (CIBA) e a Cátedra José Bonifácio e é membro da Comissão de Direitos Humanos. Exerceu, no Brasil e no exterior, diversas funções públicas, tendo sido, entre outras atribuições, juiz e presidente do Tribunal Administrativo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID, 2004 a 2008), membro do Conselho Diretor do Centro de Estudos de Justiça das Américas, órgão da Organização dos Estados Americanos (CEJA-OEA, 2012 a 2017) e coordenador e relator da Comissão Nacional da Verdade brasileira (CNV, 2013 e 2014).

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