
Numa altura em que a extrema-direita ganha as eleições na Itália e o espetro de Trump continua a pairar na América, é do Brasil que vem a esperança de uma derrota clara do populismo e, com ela, do credo herdeiro do fascismo – “Deus, Pátria e Família”.
As comemorações do bicentenário tinham trazido para o debate o futuro do Brasil. Miguel Sousa Tavares, no Expresso, considerou que a forma como se comemorou o bicentenário é a prova de que o Brasil é um projeto falhado.
O Brasil que encontrei, nas vésperas de eleições decisivas para o seu futuro democrático, nada tem a ver com o que Bolsonaro personifica. A tragédia social, sanitária, cultural e ética, que o seu governo representou, despertou uma vaga cívica que o Estado de Direito conseguiu proteger. Bolsonaro assumiu-se como herdeiro dos golpistas que em 1964 derrubaram o governo progressista de João Goulart.
A unidade construiu-se na convicção de que Bolsonaro representa uma ameaça existencial para o Brasil. É esse consenso, que não existiu em 2018, que tudo indica o vai derrotar, talvez logo na primeira volta das eleições.
A unidade construiu-se na convicção de que Bolsonaro representa uma ameaça existencial para o Brasil. É esse consenso, que não existiu em 2018, que tudo indica o vai derrotar, talvez logo na primeira volta das eleições.
Lula, pelo seu passado, representa essa vaga de reafirmação democrática e social – a esperança da maioria da população, que vive na pobreza, e de uma parte significativa dos remediados, que acreditaram no discurso contra as elites e racista de Bolsonaro e encontraram nas correntes evangélicas reconhecimento e conforto moral. Sectores importantes das elites que detêm os grandes órgãos da informação, que dominam a vida económica, cultural e universitária, que, em 2018, facilitaram a vitória de Bolsonaro porque queriam ver-se livres do PT, constataram a sua incompetência e viram-no como uma ameaça ao seu credo liberal. Acabaram por conformar-se com a ideia de que o candidato dos que nada têm é a única hipótese de se verem livres de Bolsonaro. Sinal do reconhecimento da gravidade do momento são as declarações de muitos quadros do PSDB, o partido de Fernando Henrique Cardoso, de que irão votar Lula logo na primeira volta. A candidata apoiada pelo PSDB, Simone Tebet, tem 4% das intenções de votos.
A herança da escravatura
É um absurdo sugerir, como o fez Miguel Sousa Tavares, que o Brasil poderia ter ganho alguma coisa com uma mão-de-obra de escravos. Os cinco milhões, arrancados a África e vendidos como animais de carga, são uma pesada herança e o crime mais tenebroso da história colonial portuguesa.
Um futuro governo Lula terá de retomar as políticas que, desde os governos de Itamar e FHC e, sobretudo, dos seus próprios governos, retiraram 40 milhões de brasileiros da miséria e lhes deram poder por via da educação. Isso talvez queira dizer que, pela primeira vez na história do Brasil, conseguiram de forma eficaz começar a pôr em causa o racismo estrutural, que condena os negros brasileiros à miséria, essa herança da escravatura. Foram tempos que permitiram progressos significativos na emancipação social dos pobres que são, maioritariamente, os descendentes dos escravos, negros e mulatos (mais de 50% da população brasileira). Mas muito restava a fazer e a situação agravou-se nos anos de Bolsonaro ; 43, 7 milhões vivem hoje na pobreza, mais 11 milhões que em 2018; 50% dos brasileiros ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos, contra 7 vezes em França.
Hoje, os descendentes dos escravos, negros, mestiços, e os descendentes dos povos primeiros, “os indígenas”, ocupam o espaço cultural e fazem ouvir a sua voz
Vi o futuro do Brasil em Salvador da Bahia. Fui lá pela última vez ainda no tempo de FHC. Nessa altura, o empoderamento de uma parte significativa dos mais pobres pela ascensão social e a educação, nomeadamente a política de quotas no acesso ao ensino universitário (adoptada com Lula) ainda não se tinha feito sentir. Hoje, como em muitas outras regiões do Brasil, os descendentes dos escravos, negros, mestiços, e os descendentes dos povos primeiros, “os indígenas”, ocupam o espaço cultural e fazem ouvir a sua voz.
Vi o futuro do Brasil naquela jovem que fala das estórias que a sua avó tinha ouvido da sua mãe escrava. Nos que se mobilizam no apoio às candidaturas negras, nos jovens que se entusiasmam com a peça Dandara, heroína do quilombo de Palmares. Também no MASP, em São Paulo, a cidade da elite, na exposição Retratos Brasileiros, de Dalton Paula, com as pinturas das personagens negras a que a história do Brasil não tinha dado rosto. No movimento “Vidas negras e faveladas importam”, que exige que se descubra o assassino de Marielle. No renovado Museu do Ipiranga, eco do grito da liberdade, que exibe os que o construíram e abriram as estradas que permitem visitá-lo. Na literatura de resistência ao bolsonarismo, como a de Milton Hatoum ou de Djamila Ribeiro, que, na cerimónia de entrada na Academia Paulista de Letras, evocou o seu orixá e lembrou que os terreiros do candomblé foram e são focos de resistência cultural.
Mas o futuro tem de estar também na defesa do ambiente. O acordo que levou ao apoio a Lula da ecologista Marina Silva faz com que muita gente com quem falei esteja convencida de que, com um novo governo, haverá “uma virada ecológica”, que será possível acabar com o desmatamento da Amazónia e ouvir a voz e proteger a vida dos povos que a habitam.
Os desafios de um novo governo Lula
Os meus interlocutores também me avisam que, a confirmar-se a vitória de Lula, o seu governo enfrentará obstáculos gigantescos para tornar irreversível a política de inclusão social.
A prioridade das prioridades é derrotar Bolsonaro, garantindo a preservação do Estado de direito democrático, de que Lula, um metalúrgico, antigo sindicalista, formado na escola da vida, visto com desconfiança pela elite, se tornou no garante
Terá de vencer a resistência de uma das elites mais egoístas do mundo para conseguir taxar as grandes fortunas e encontrar os recursos financeiros para enfrentar o défice social e combater o racismo estrutural, sem assustar excessivamente os mercados.
Terá que proteger a Amazónia, contrariando os interesses de setores arcaicos do agronegócio e da madeira, apoiando-se na experiência de empresas que já operam de forma mais ecológica, para preservar a importância do setor na economia brasileira.
Terá que modernizar as forças armadas e militarizadas, garantindo a segurança dos cidadãos e fazendo dos direitos humanos e da defesa da democracia uma prioridade da sua formação, na linha das conclusões da Comissão da Verdade.
Um governo democrático terá que retomar a agenda ética e conquistar para o campo da democracia os mais de 30% de brasileiros que irão votar Bolsonaro.
Hoje, porém, a prioridade das prioridades é derrotá-lo, garantindo a preservação do Estado de direito democrático, de que Lula, um metalúrgico, antigo sindicalista, formado na escola da vida, visto com desconfiança pela elite, se tornou no garante. Então tudo voltará a ser possível, mesmo a utopia do Brasil país do futuro, que fará da sua apregoada unidade na diversidade, não um slogan destinado a branquear a desigualdade, mas um projeto da humanidade comum.