Decorreu no passado dia 22 de outubro um debate que visou discutir o estado dos regimes democráticos que estão cada vez mais ameaçados pelo racismo da extrema-direita.
A exigência dos temas abordados foi categoricamente tratada por um painel de excelência, moderado por Álvaro Vasconcelos e por Renato Janine Ribeiro.
Cristina Roldão começou a sua comunicação com uma denúncia ao aproveitamento político da extrema-direita de um vazio no sistema partidário português, que passa por um posicionamento racista – especialmente relativo ao ciganos – e hostil às comunidades LGBTQ+ e às questões de género. Um dos efeitos desta abordagem é a mobilização, tanto da direita tradicional como de alguns setores mais conservadores da esquerda, para um discurso defensivo ou de reforço de uma ideia de Portugal que passa pela crença de que não existe racismo em Portugal. Neste sentido, o aproveitamento político passa pela ocupação e distorção do espaço criado pelas pessoas racializadas e pelo movimento anti-racista em Portugal.
Deste modo, reflete, o Chega só terá sido capaz de ganhar força no quadro político nacional por ter sucedido em algo no qual os restantes partidos têm falhado: perceber o quadro sócio-económico, político e cultural português e quais as suas fragilidades e lacunas. Relembra o 25 de abril que, passava por democratizar e desenvolver o país, mas também por descolonizar – tanto as colónias como o próprio imaginário nacional. É necessário concluir esta descolonização, desconstruindo a herança e a memória colonial de que as invasões às colónias são um pilar fundamental da identidade nacional.
Cristina Roldão conclui, assim, a sua intervenção pondo em questão a legitimidade que é dada a atitudes racistas através da inação política e da ausência de políticas e respostas concretas e eficazes não só contra o racismo do quotidiano ou daquele praticado por grupos extremistas, mas contra o racismo institucional.
Joana Gorjão Henriques inicia a sua intervenção no debate partindo de um enquadramento da emergência da extrema-direita em Portugal no cenário internacional como uma relação de consequência e contágio, apelando a uma visão holística do crescimento desta força política.
Assim, explica, já não é possível olhar para a política nacional como uma questão meramente local, sendo o Brasil e os Estados Unidos relevantes casos de estudo na matéria. Nestes países terá havido uma desvalorização das figuras de Trump e Bolsonaro e, consequentemente, do seu extremismo, normalizando-as e neutralizando o seu ideário. Recorda uma reportagem que fez nas favelas brasileiras, tentando perceber porque tantas pessoas tinham votado no Bolsonaro. Esta reportagem permitiu-lhe concluir que, por um lado, a ausência de resposta dos opositores às suas propostas despropositadas permitiram-lhe ganhar espaço político e que, por outro, a veracidade do que dizia era muitas vezes secundária ao apelo junto daqueles grupos sociais que se sentem esquecidos. A comparação pode ser transportada para o caso português no qual é o silêncio dos restantes partidos políticos e dos deputados da Assembleia da República que abre espaço para o extremismo do Chega.
A ausência de uma resposta musculada o suficiente deve-se, em grande parte, ao incómodo na política portuguesa em lidar com a questão do racismo, tanto à direita como à esquerda. Este incómodo e consequente inatividade desaguam, por seu turno, numa indiferença pela luta dos direitos humanos, que permite a sua banalização. Relembra a questão dos dados étnico-raciais como um perfeito exemplo deste desconforto, permissivo desta inação e que deixa os atores que pretendam fazer política pública impossibilitada de uma ação eficaz.
Apresenta, a partir destas conclusões, uma fotografia do que pensa esperar-nos nos próximos tempos: um posicionamento musculado do Chega ao anti-racismo e o silêncio a que os outros atores políticos se reduzem.
Pedro Bacelar de Vasconcelos chamou a atenção para o facto de as sociedades democráticas, sempre que respondam aos ataques perpetrados à democracia pelos discursos da extrema-direita, acabarem por lhe estar a dar espaço e visibilidade. Deu os exemplos de Trump e Bolsonaro em que, segundo o seu ponto de vista, não foi por falta de ataque dos democratas que chegaram a presidentes. Salientou que o racismo está “intimamente ligado” ao esclavagismo. Considera que, em Portugal, ainda não foi feita uma reflexão sobre o carater racista da epopeia. Os grandes males atuais da Humanidade originam medo, medo esse que está na origem de uma estigmatização daqueles que são diferentes e incompreendidos. É necessária pedagogia e uma resposta multilateral que trave esses sentimentos egoístas.
Renato Janine Ribeiro salientou que o colonialismo gera tipos de racismo. Como justificação dos empreendimentos do colonialismo, esteve uma lógica de superioridade de uma civilização que partia para o mundo para “elevar” as restantes. Estabeleceu uma diferença entre a situação portuguesa e brasileira, no que concerne à extrema-direita: enquanto a primeira basta-se por um deputado eleito, na segunda há já um presidente dessa família política. Apesar de ser preocupante, a eleição desse deputado para a AR portuguesa não deve ser hipervalorizada, sob pena de isso conferir visibilidade à extrema-direita, possibilitando o seu crescimento.
Álvaro Vasconcelos referiu que sempre existiram sectores da sociedade portuguesa simpatizantes dos ideais da extrema-direita. Acontece que a hegemonia dos partidos democráticos, saídos do 25 de Abril, impediu, até há pouco, a expressão política dessa fação. A frente de combate aos extremismos de direita deve ir para além da luta contra o racismo. A extrema-direita bate-se por uma sociedade racista mas também sexista, homofóbica, negacionista da ciência, etc. Apenas uma ampla frente dos setores progressistas das sociedades pode travar a agenda dessas forças obscuras que, divergindo entre si, têm em comum o desprezo e a perseguição das minorias.
Jessé de Souza desconstruiu a ideia de que o racismo é exclusivamente racial.
Na sua ótica, o racismo é um problema multidimensional que opõe o espírito e o corpo e invade a gramática moral do ocidente como que se houvesse um “nós” e um “eles” que separa o bem do mal.
A discriminação verificada entre homem e mulher é também uma forma de racismo, bem como a distinção entranhada no subconsciente de cada ser humano entre as mais variadas culturas e classes sociais.
O período de governação de Getúlio Vargas no Brasil foi utilizado para demonstrar que a erradicação da linguagem racista pode não ser suficiente para erradicar a mentalidade racista. No caso brasileiro serviu para encobri-la. E não é caso único.
Marcela Uchôa relacionou o método discursivo da extrema-direita portuguesa e brasileira.
A pertinência (altamente questionável) dos conteúdos lançados por André Ventura e Jair Bolsonaro para o debate político é uma estratégia para baixar o nível do debate.
Uchôa entende a tentação da esquerda para ignorar os constantes desvarios da extrema-direita no sentido de evitar o rebaixamento do debate político, mas reforça que deve haver um filtro constante na esquerda que não permita “deixar passar” impune o que ultrapassa todos os limites de um regime democrático e da defesa dos direitos humanos.
Álvaro Vasconcelos encerrou o debate com uma condensação muito eficaz de um debate extremamente rico, e que convida à constante reflexão.