Sobre a desigualdade social e o Novo Pacto Verde, por Leonardo Costa

A economia é apenas um meio/ferramenta criado por nós para nos servir. Não é uma maldição nem um destino traçado. Se não está a funcionar bem tem de ser corrigida (Yunus, 2020).
A crise é uma oportunidade para começar tudo de novo (Yunus, 2020), para implementar um Green New Deal. A economia, a vida material, tem de ser corrigida em duas vertentes: a ambiental e a social. As duas vertentes têm ligações entre si e devem constituir o quadro normativo da nova economia de mercado a implementar à escala global.
Olhando para a desigualdade de rendimentos e da riqueza, sejam quais forem as medidas utilizadas – a repartição do rendimento e da riqueza entre grupos de rendimento (ver World Inequality Database, https://wid.world/) ou a repartição do rendimento entre os fatores de produção capital e trabalho – a desigualdade, nos últimos 30 a 40 anos, tem vindo a aumentar nos países mais ricos da OCDE e também em países com economias emergentes, como a China, a Índia e a Indonésia. Neste panorama, o Brasil foi, de algum modo e há pouco tempo, uma exceção. Na União Europeia, não existem estatísticas que ilustrem a desigualdade ao nível europeu. Esta última, todavia, aproxima-se da dos Estados Unidos, por razões diversas.
Vários fatores explicam o aumento referido acima da desigualdade nos últimos 30 a 40 anos (Piketty, 2013; Gornick, 2014; Bourguignon, 2017). A globalização (com a deslocalização de indústrias) e um progresso tecnológico (4ª revolução industrial, mais recentemente) enviesado no que refere às qualificações são apontados como fatores principais. Em articulação com estes fatores, a financialização da economia, a desregulação dos mercados e a livre circulação de capitais e pessoas qualificadas justificam também esta evolução. Um baixo crescimento económico sem um acompanhamento de políticas redistributivas fortes, muito pelo contrário, também justificam a evolução a que se tem assistido da desigualdade. No que refere ao setor financeiro, os grupos de maior rendimento em sociedade estão bastante associados a este setor, o que não é um acaso.
A desigualdade excessiva tem custos. Há questões éticas associadas: a desigualdade excessiva é um mal. Com um baixo crescimento (que, por razões ambientais, pode ser inevitável), a posição de rendimento dos vários grupos de rendimento em sociedade é mais ditada pelas heranças do que pelo esforço ou mérito individual (Piketty, 2013). O capitalismo patrimonial inerente conduz ao desenvolvimento de uma sociedade de castas. A desigualdade também tem custos de eficiência e crescimento, pois reduz a procura e dá poder fazedor de preço às poucas mãos em que concentra os recursos em sociedade.
O que fazer, para corrigir a desigualdade e proteger o ambiente?
Os apoios ao investimento verde têm de ser não só verdes como socialmente inclusivos. Devem ser em grande parte dirigidos às PMEs. O pequeno [as PMEs] é bonito (Schumacher, 1973) e democrático.
É preciso também olhar para a governança das empresas, em geral, e apostar em modelos de governança socialmente mais inclusivos. As empresas não são só dos acionistas (ver os exemplos dos modelos de governança empresarial alemão e sueco, como alternativas ao modelo anglo-saxónico).
As missões dos bancos centrais têm de mudar, alargando-as a objetivos sociais e ambientais. O enquadramento institucional na governança dos mesmos também tem de mudar, no sentido de integrar outros atores para além dos oriundos do setor financeiro. O setor financeiro em si tem de ser reorganizado/regulado, no sentido de servir o bem comum.
O acesso à educação e às qualificações tem de ser generalizado e o sistema de impostos muito mais progressivo, em particular num contexto de baixo crescimento. É preciso encontrar formas de tributar o capital, nomeadamente em contextos de livre circulação de capitais. Com esse intuito, a harmonização fiscal transnacional e a existência de impostos supranacionais são alternativas possíveis.
Por fim, é preciso reinventar o Estado nos seus diferentes níveis (ONU, UE, Estados nacionais, regionais e locais). Precisamos de melhor Estado, mais bem organizado, menos burocrático, mais descentralizado (princípio da subsidariedade), mais debaixo do controlo democrático, mais participado pela sociedade civil, com uma maior capacidade de ter abordagens transversais e multinível às políticas públicas. Tudo isto se traduz numa preferência por abordagens ao desenvolvimento baseadas em territórios e lugares, em detrimento de políticas horizontais cegas, setor a setor, sem articulação nem rostos. Cada nível de Estado deve ser, o mais possível, financiado com recursos próprios (também a ONU, impostos mundiais?). Na União Europeia, a política regional pode assumir o papel da política industrial em falta.

Leonardo Costa
Forum Demos, 21 de julho de 2020

Referências
Bourguignon, F. (2017). World changes in inequality: an overview of facts, causes, consequences and policies. BIS Working Papers No 654, August. https://www.bis.org/publ/work654.pdf


Gornick, J. (2014, October 7). High and Rising Inequality: Causes and Consequences. Economic and Financial Committee (Second Committee), Keynote address by Professor Janet Gornick https://stonecenter.gc.cuny.edu/files/2014/10/gornick-high-and-rising-inequality-causes-and-consequences-un-address.pdf


Piketty, T. (2013). Capital in the Twenty-First Century. Cambridge, MA: The Belknap Press of Harvard University Press


Schumacher, E.F. (1973). Small is Beautiful: A Study of Economics as If People Mattered. New York: HarperCollins Publishers, 2010.


Yunus, M. (2020, Mai 5). La crise du coronavirus nous ouvre des horizons illimités pour tout reprendre à zéro. Le Monde https://www.lemonde.fr/idees/article/2020/05/05/muhammad-yunus-la-crise-du-coronavirus-nous-ouvre-des-horizons-illimites-pour-tout-reprendre-a-zero_6038665_3232.html

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