Por Maria Carlos Oliveira
A ideia central de Popper é que, em política (como em ciência) é um erro básico perguntar «Como podemos ter a certeza?» e «Como podemos assegurar governantes perfeitos?»; o que devemos perguntar é «Como podemos minimizar os danos que os nossos governantes possam cometer?».[1]
Oliver Tamplin |
A regionalização é apresentada, pelos seus defensores, como uma solução promissora para a resolução das assimetrias do país e, simultaneamente, como uma forma eficaz de dinamizar as regiões a partir de uma maior capacidade para gerar sinergias, a diferentes níveis, melhorando consequentemente a resposta política às necessidades dos cidadãos.
Karl Popper, com a lucidez de um olhar que tem por horizonte a sociedade aberta e as dificuldades que enfrenta, lembra-nos que não valerá a pena pedir certezas relativamente à garantia da eficácia das medidas políticas. Há propostas políticas que parecem promissoras e que terminam em fracasso, como por exemplo o referendo, a eleição direta dos líderes partidários, o fim do serviço militar obrigatório. Os referendos tornaram-se uma arma habilmente manejada pelos populistas contra a democracia, as diretas acabaram com o debate político, transformando os congressos partidários em desertos de ideias, o fim do serviço militar obrigatório fez descurar a defesa e restringiu a diversidade dos que se oferecem para integrar as forças armadas.
Os tempos que vivemos nas democracias europeias “consolidadas” também mostram que, ontem como hoje, não temos forma de assegurar governantes perfeitos. Os resultados eleitorais parecem estar a transformar-se numa autêntica roleta russa. Parece haver uma estranha perceção do conceito de bem comum e, apesar da cultura de entretenimento (haverá o intuito de esquecer os poderosos 1%?), parece ser possível que, a qualquer momento, algum ponto branco se possa vir a revelar como um enorme icebergue que nos afunde num mar de ódio, intolerância e sangue. Não porque sejamos maus por natureza, apenas porque somos humanos e consequentemente vulneráveis e impreparados para lidar com mudanças profundas, num mundo tão desigual, que colidem com as expectativas do cidadão comum relativamente ao futuro.
É oportuno regressar à antiguidade clássica, ao berço da democracia, e lembrar o que nos diz Werner Jaeger, “O mal social é como uma doença contagiosa que se estende a toda a cidade. E atinge sem vacilar toda a cidade onde surjam discórdias entre os cidadãos, afirma Sólon. Isto não é visão profética, é saber político”[2]. Acrescenta ainda ser “evidente que Sólon pressupõe uma conexão legal de causa a efeito entre os fenómenos da natureza e estabelece expressamente uma legalidade paralela nos acontecimentos sociais, quando noutra passagem diz: A chuva e o granizo vêm das nuvens, do relâmpago resulta necessariamente o trovão; a cidade sucumbirá ente homens poderosos e o demos cairá nas mãos do ditador.”[3]
Como podemos [então] minimizar os danos que os nossos governantes possam cometer?
A resposta a esta pergunta é crucial num tempo e que as democracias liberais atravessam um período difícil. Restaurar a confiança política, criando condições para que os cidadãos estabeleçam uma nova relação com os poderes democráticos, é um imperativo. É necessário que os cidadãos sejam, efetivamente, capazes de exercer, com maior eficácia, a crítica relativamente discurso político e, sobretudo, relativamente aos que se propõem moralizar a política, apesar dos recorrentes “valores imorais” em que sustentam os seus discursos e projetos políticos(?).
O debate sobre a regionalização não pode ficar prisioneiro de interesses obscuros nem contribuir para aumentar a entropia do sistema político. As suas intenções são, em princípio, nobres, mas a realidade é dura e por vezes demasiado crua.
Hoje, muitos cidadãos têm uma perceção mais clara (não pelo facto de o fenómeno da corrupção ser novo, mas pela sua dimensão e constatação da dificuldade em travá-lo) da fragilidade dos mecanismos reguladores e da própria legislação para prevenir e controlar a corrupção. Tal como Sólon, que “Vê a cidade caminhar para o abismo a passo acelerado e procura travar a ruína que a ameaça. Movidos pela avareza, os chefes do povo enriquecem injustamente; não poupam os bens do Estado (…)”[4], também hoje existe uma tomada de consciência da proliferação de polvos que se alimentam e reproduzem democraticamente, fragilizando o sistema e criando condições para igual proliferação de escorpiões populistas, que, por fazer parte da sua natureza, não resistem à tentação de picar o povo!
O grande legislador Sólon era um profundo conhecedor da natureza humana, o que os legisladores de hoje não parecem ou não querem ou não podem ser, prisioneiros que estão dos que os levaram até ao poder. Diz Sólon, “A essência da riqueza, que é objeto de todas as aspirações humanas, é não ter medida nem fim. São precisamente os mais ricos de nós, exclama Sólon, quem demonstra esta asserção, pois aspiram continuamente a duplicara sua riqueza.”[5] E esta tentação é transversal à sociedade. Todos nos lembramos, por exemplo, da subtileza das preposições na lei da limitação de mandatos autárquicos[6], cuja relevância decorre de algo mais profundo e por isso a recupero, o apego ao poder e a dificuldade em travar a corrupção que, inevitavelmente, gera. Não porque os políticos tenham uma natureza pérfida, mas apenas porque são humanos.
Creio que o trabalho de casa, em matéria de regionalização, para responder à pertinente pergunta de K. Popper, está por fazer. A regionalização levada a cabo na Madeira e nos Açores consolidou-se num tempo diferente, facilitada pela respetiva condição insular. É preciso identificar cuidadosamente as áreas a priorizar e os mecanismos legislativos que favoreçam a transparência e consequentemente a confiança dos cidadãos. Investir na descentralização parece-me, neste momento, mais aconselhável, uma vez que se pretende fortalecer um Estado coeso e simultaneamente mais próximo. Um estado mais próximo é necessariamente um Estado mais transparente e esta tarefa é uma tarefa hercúlea num país prolixo em leis, que tem dificuldade em cumprir e em regular. Sem esse esforço não será fácil convencer os cidadãos.
Talvez seja oportuno perguntar quantos legisladores estarão dispostos a seguir o exemplo de Sólon. Escreve Werner Jaeger: “Jamais um estadista se ergueu tanto acima da mera vontade de poder como Sólon, que deixou o país e partiu em longa viagem, assim que deu por finda a sua obra legislativa. Não se cansa de salientar que não aproveitou a sua situação para enriquecer ou tornar-se um tirano, como em seu lugar teria feito a maioria, e preza-se de ser alcunhado de néscio por não ter aproveitado a ocasião.”[7]
[1] TAPLIN, O. (1990), O Fogo Grego, RTC/Gradiva, p. 215.
[2] JAEGER, W. (1979), Paideia, Lisboa , Aster, pp. 166-67.
[3] Idem, ibidem, p. 167.
[4][4] Idem, ibidem, p. 166.
[5] Idem, ibidem, pp. 171-72.
[6] Ricardo Araújo Pereira, relata o episódio com o seu humor corrosivo: “onde se lê um «de» deve ler-se «da». Não é apenas a preposição «de» que deve estar na lei, é a contração da preposição «de» com o artigo definido «a». A mudança implica o seguinte: um presidente «de» câmara não pode candidatar-se depois de três mandatos, pelo que a carreira autárquica acaba aí; já um presidente «da» câmara não pode recandidatar-se à câmara específica a que preside. Mas pode recandidatar-se à do lado ou a outra qualquer. Há 23 letras no alfabeto, mas Cavaco indicou a única que podia beneficiar os dinossauros autárquicos.” [Reaccionário com dois Cês, Lisboa, Tinta-da-China, 2017, 2ªed., pp 25-26].
[7]JAERGER, W., ibidem, p. 173.