Por Filipa M. Ribeiro
A cultura não tem credo nem regime, não é de esquerda nem de direita, quer ser livre, inovadora e sustentável, diversa, emancipada, responsável, harmoniosa e socialmente responsável.
Conforme terá afirmado Louis-Ferdinand Céline, na sua Viagem ao Fim da Noite, o esquecimento é o único ‘pecado’ que não tem perdão. Porque é imperdoável esquecer o que homens e animais sofreram durante a II Guerra Mundial, da mesma forma que é igualmente inolvidável a experiência por que passaram os “hóspedes” dos campos de concentração nazi, as mulheres violadas nos Balcãs, os “apartados” da África do Sul e da Síria ou os torturados de Cuba e de Angola. A luta pela liberdade é a dignificação da aventura humana. Nessa luta contra o esquecimento – que é uma outra forma de desigualdade e de boicote à participação pública – a literatura assume um papel fundamental e timoneiro na construção da nossa identidade presente e futura. Senão, vejamos:
“Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras” é a primeira frase de um dos melhores exemplos da excelente literatura portuguesa sobre feminismo: o Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro. Mas também sei de personagens do Eça que pensam e agem como o Jacinto de A cidade e as serras, que fazem caçadas e caminhadas pelos campos, empanturram-se das singelas criações e tecem loas ao viver saudável do campo e acham que a suprema beleza feminina está num corpo rechonchudo e anafado, encimado por rosto redondo e rosado. Que avaliam as mulheres pelos sintomas de fertilidade como se faz com os animais da quinta, ou a escrava da sanzala. E vêem a fidelidade e recatos femininos tão naturais e obrigatórios como a tendência masculina para o jogo, domjuanismo e desregramentos competitivos ou de prazer. Isto até chegarem as Três Marias.
Se considerarmos o muito que se tem dito acerca da Pérola do Atlântico, das paisagens, praias, clima, produtos naturais e situação geográfica, já não é tão efusiva a literatura sobre as suas gentes. Ou por outra: não era. Até Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno nos acontecerem. Até as Novas Cartas Portuguesas e o processo por «ofensa à moral pública» nos acontecerem. A defesa da liberdade e da igualdade dos géneros e a denúncia de todas as formas de discriminação das mulheres é uma constante na vida e obra das Três Marias. São, falando a muito grosso modo, as nossas Simone de Beauvoir. Mas sem um Sartre. E isso, por ridículo que (ainda) possa parecer, notou-se. Afinal, as histórias repetem-se e os porquês continuam por esclarecer…
As Três Marias são hoje, para as feministas, o símbolo mais mediático da dignidade, coragem e liberdade. No feminino. Porque a elas se devem algumas das mais interessantes páginas da nossa literatura de mulheres para mulheres, sem excluir os homens e, portanto, de cidadania, qual bússola inquieta sempre apontando para outro traço essencial na caracterização da nossa nacionalidade; reflectem e atestam, não só uma invulgar flexibilidade genérica, como também a preocupação constante em relatar o perfil apaixonado, andarilho e viageiro de isso de ser mulher, cidadão e pessoa. Com as Três Marias, pelo menos as mulheres portugueas reabilitaram-se perante os seus próprios olhos. Ganharam segurança e coragem para partir em sentido a outras esferas onde propor e concretizar uma sociedade para todos, em que a dignidade das crianças, dos animais, das plantas, da atmosfera, das águas, das mulheres, da sexualidade plena, sejam respeitadas, protegidas e conservadas. Enquanto homens e mulheres do nosso tempo continuamos a dever-nos isso a nós próprios e aos nossos. Porque a mulher livre nunca admitirá junto a si um homem que o não seja igualmente. Rumar ao futuro desacompanhado dessa liberdade é um desperdício do presente. Foi isso que nos mostraram as Novas Cartas Portuguesas, mas também Myra ou Casas Pardas da Maria Velho da Costa. Ou A Morte da Mãe e Vozes do Vento de Maria Isabel Barreno.
Depois de As Novas Cartas Portuguesas, as Três Marias continaram a confrontar-nos com a interioridade afectiva que se estabelece em termos mais intimistas… Se pensarmos que a literatura é aquela maneira particular com que as pessoas dizem “amo-te” aos seus semelhantes, às coisas, à natureza ou aos animais, o que para uns se faz com duas palavras mas para os escritores mais inventivos pode chegar às centenas de milhar de páginas, a relação primordial estabelecida entre os personagens principais estende-se à humanidade. Nas Três Marias, como noutros autores como Steinbeck ou Robert Heinlein, há um dizer sentimental mais restrito, singularmente nomeado pela música da família. Família esta que está em constante desassossego e posta em risco pela sociedade burguesa e mercantil, pelo capitalismo desenfreado, anárquico e másculo (diferente de masculino)… É o mundo dos monopólios, do poder que se dispersa como um polvo e estende os seus tentáculos a todos os cantos rentáveis da mesma, manipulando os canais de escoamento, produção e valorização das pérolas. E creio, também, que estas são metáforas de uma sentimentalidade profunda… Em cada um de nós está sempre aquela pérola, talvez escondida sob a concha da nossa personalidade, onde a esperança e o amor se fundem como algo precioso.
Actualmente, numa sociedade circunscrita ao poder da imagem, acesso total à informação, vertiginoso ritmo de vida, expansão da cultura facilitista, solicitação e usufruto dos prazeres imediatos, que tende a dispensar os benefícios da leitura (criação de imagens, mobilidade, flexibilidade e enriquecimento vocabular, facilitação do processo de aprendizagem, contacto e apreensão de emoções exteriores, relacionamento de conhecimentos adquiridos com novos sentidos, construções sintácticas e significados, por exemplo), esse acto deveras social da leitura está a irradicar-se dos nossos hábitos, principalmente se não forem tomadas precauções adultas para contrariar o modus vivendi actual. E também isso foi antecipado por Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno.
Assim, desse cuidadosamente íntimo entrelinhavar no conflito entre prosa e rima, maquinismo que catapulta a escrita para lá das significações estritamente ordinárias, vulgares ao amanuense como ao filósofo, pejadas de argumentação e retórica em causa própria, a literatura, de que as Três Marias se tornaram um emblema, permite estabelecer um grupo permanente de convivas ou cumplicidades externas ao processo de criação literária. Com cada um de nós, os leitores-cidadãos, suas integrais testemunhas nunca indiferentes mas sim participativas, solidárias, críticas. Nós, os leitores que agregam, revolucionam ou prorrogam, nos ditames subjacentes à estética, corrente ou doutrina interiorizada, acrescentando-lhe a mais-valia da gregaridade, da socialização e da ética, editando-se como bastidor de dimensões supra- espaço, onde a arte ganha foros de meio de civilização e perde as funcionalidades de apêndice, de acessório na cosmética do narcisismo individualista, não como passaporte electrónico para universalidade literária mas sim, e nomeadamente, enquanto panóplia de opiniões interessadas e afectas ao género que ao momento vigora na imagética actual, imperando sobre o seu par no intermitente contencioso de onde nasce incontornavelmente cada obra. Cada intimidade. Cada liberdade. Cada colectivo. Cada sociedade. Porque as mulheres ainda têm de (re)criar as suas próprias razões de viver (como nos é dito em O Sangue dos Outros, de Simone de Beauvoir), entaladas numa racionalidade abissal inscrita no pensamento moderno logocêntrico que é também androcêntrico e antropocêntrico. Essa distopia abissal está também reflectida no sexismo, entendido enquanto sistema de disjunção e hierarquização com base na oposição entre feminino e masculino reduzidos a atributos biossociais criados e alimentados por si mesmos. Como afirma Amaia Orozco (2014) uma ética reacionária do cuidado está na base do contrato social moderno que continua obcecado pela conquista dos conhecimentos e dos corpos das mulheres (Federici, 2004) reorganizando e reapropriando os seus modos de vida, as suas actividades, enfim, os seus trabalhos. Mas não já a sua intimidade nem o seu pensamento. E isso devemos a mulheres-escritoras como as Três Marias.