Em defesa do discurso de Filipe VI de Espanha

Por Maria Carlos Oliveira

 

 “Desde as eleições americanas de Novembro de 2016, pelo menos, as coisas ficaram mais claras. A Inglaterra perdeu-se no seu sonho de império – versão fim do século XIX; os Estados Unidos querem recuperar a sua grandeza – versão pós-guerra, fotografia a sépia, 1950. A Europa, a Europa continental, encontra-se sozinha, fraca e mais dividida do que nunca. A Polónia sonha com um país imaginário; a Hungria já não quer senão Húngaros de «gema»; os Holandeses, os Franceses e os Italianos estão a contas com partidos que querem emparedar-se dentro de fronteiras igualmente imaginárias. A Escócia, a Catalunha, a Flandres querem tornar-se países. Tudo isto enquanto o Urso russo lambe os beiços e a China realiza enfim o seu sonho de voltar a ser «o Império do Meio», ignorando os interesses de todas as periferias. Em vias de desmembramento, a Europa conta tanto como uma noz num quebra-nozes. E, desta vez, não pode contar com os Estados Unidos nas mãos de um novo rei Ubu[1].”[2]

 

Devo começar por dizer que sou republicana e nunca simpatizei com os movimentos independentistas na Espanha democrática.

Hoje, 10 de outubro de 2017, à hora em que escrevo, ainda não sei o que vai acontecer na Catalunha. Ando há dias a refletir sobre o assunto e a escrita tem sido mais lenta do que a velocidade dos acontecimentos!

Compreendo as raízes históricas dos movimentos independentista do País Basco e da Catalunha, cujas populações sofreram duramente, por exemplo, durante a Guerra Civil Espanhola e durante o regime de Franco. O dramatismo da História levou Pablo Picasso a pintar a Guernica (1937), que é um grito dilacerante contra a brutalidade de um bombardeamento aéreo perpetrado, em 26 de abril de 1937, pela Legião Condor, alemã, que metralhou e despejou 30 toneladas de bombas sobre a população civil, num dia de mercado, com o objetivo de humilhar o povo basco; levou George Orwell a escrever a Homenagem à Catalunha (1938), para imortalizar a resistência heroica dos antifascistas catalães, que se uniram às forças republicanas para combater Franco; levou Manuel Vázquez Montalbán, que “sofreu duramente às mãos da polícia franquista, devido à sua militância comunista”, a recriar nos seus livros, “de forma sublime, o ambiente vivido na Catalunha naquela época”[3].

Mas, em 2017, a Espanha vive uma democracia, também ela afetada pelos desafios, internos e externos, nos domínios político, económico, social, cultural e ambiental. Se é verdade que História tece a identidade de um povo e oferece ferramentas para interpretar o futuro, também é verdade que não chegou ao fim, como acreditou F. Fukuyama, e não se repete!

Mariano Rajoy é um político conservador e inábil, que, tragicamente, partilha com Carles Puigdemont a falta de visão para responder aos desafios com que a Espanha e a Europa[4] se debatem, e a incapacidade para dialogar, o que nestes tempos, de lento regresso da política, os reduz a líderes do passado. A perceção destas fragilidades foi expressiva na exigência púbica do Parlem/Hablemos, única forma de procurar atravessar, com maior segurança, os escolhos decorrentes da complexidade e imprevisibilidade do mundo de hoje.

Carles Puigdemont é um líder irresponsável, oportunista, prisioneiro de uma agenda radical, que pretende mobilizar parte dos cidadãos da Catalunha, a que prefere chamar povo, para a construção de um Estado-nação com base no seu ethnos – «hoje os catalães “estão mais perto” do seu “compromisso histórico”[5]-, ao mesmo tempo que ignora  a realidade complexa do tecido social e económico da Catalunha, assim como a reconfiguração imposta pela globalização ao conceito de Estado-nação soberano.

 Diz-nos a História que:

“A insaciável procura de mão-de-obra no próspero quadrante nordeste europeu explica as extraordinárias migrações em massa nos anos 50 e 60. (…) Em Espanha, mais de um milhão de habitantes da Andaluzia mudou-se para o Norte, para a Catalunha, durante as duas décadas após 1950: em 1970, 1,6 milhões de Espanhóis nascidos na Andaluzia viviam fora da sua região natal, 712.000 em Barcelona”[6].

Em meados dos anos 60, pelos critérios da ONU, a Espanha deixou de ser considerada um país em desenvolvimento. No entanto, “O «milagre económico» de Franco não deve ser exagerado. A Espanha não estava sobrecarregada com os resíduos de um império e portanto não enfrentava nenhum dos custos económicos ou sociais da descolonização. A maior parte do dinheiro estrangeiro a entrar no país nos anos 60 não vinha da exportação de bens produzidos em Espanha, mas das remessas do estrangeiro dos trabalhadores espanhóis emigrantes ou então de turistas europeus do Norte: resumindo, a modernização económica de Espanha era largamente um subproduto da prosperidade de outras nações”[7];

A Catalunha, à semelhança de outras regiões ricas como a Lombardia, a Flandres belga, Baden-Württemberg ou Baviera na Alemanha, instalou um gabinete em Bruxelas e aprendeu a “fazer lobby em seu benefício, para investimentos ou para políticas da Comunidade que favorecessem instituições locais de preferência às nacionais”[8], ou seja, beneficiou da solidariedade deste projeto Europeu que hoje, ainda, nos acolhe como membros;

 A prosperidade vivida pela Catalunha, à semelhança de outras regiões da Europa, levou a que “os representantes mais radicais da causa da independência nacional” vissem “ os seus argumentos esmorecer perante efeitos desmobilizadores de uma riqueza pouco habitual”[9]. Mas o seu independentismo ressurge com a crise económica vivida na primeira década deste século, alimentando-se por isso, em boa parte, do egoísmo, que, fazendo tábua rasa dos múltiplos fatores que estiveram na origem da sua prosperidade, recusa agora solidariedade às comunidades mais pobres Espanha, nomeadamente à da Andaluzia! Se a Catalunha fosse uma comunidade pobre, estariam alguns dos seus cidadãos a lutar por uma Catalunha independente?

Este processo independentista, que vejo, em muitos aspetos, como próximo dos populismos europeus (recorde-se o discurso inflamado de Nigel Farage contra a violência da polícia na Catalunha, apesar de a ter legitimado contra os refugiados), ainda me parece mais absurdo quando o conceito de soberania nacional está em crise. Como sublinha Arjun Appadurai, o “Sintoma mais marcante desta crise de soberania é o facto de nenhuma nação-estado moderna controlar aquilo a que poderia chamar-se a sua economia nacional. A economia dos Estados Unidos está, em grande parte, na mão de Chineses, os Chineses dependem drasticamente das matérias-primas da África e da América Latina, bem como de outras zonas da Ásia, toda a gente depende de algum modo do petróleo do Médio Oriente e praticamente todas as modernas nações-estado dependem do armamento sofisticado de um pequeno número de países ricos. A soberania económica, com base na economia nacional, foi sempre um princípio dúbio. Hoje é cada vez mais irrelevante”[10]. Num tempo de capitalismo financeiro, ainda sem alternativa consolidada, apesar da perceção de que é necessário mudar, os sinais que vêm da Catalunha não são despiciendos: Banco Sabadell decidiu mudar a sede social para Alicante, Caixabank vai para Valência…outras empresas admitem sair…

Neste complexo contexto, que alternativas restavam a Filipe VI?

Numa Espanha em risco de fragmentação, poderia o rei deixar de invocar o respeito pelo Artigo 2º da Constituição que proclama a unidade indissolúvel de Espanha? Não foi a Constituição Espanhola confirmada, num segundo referendo em 1978, por todos os espanhóis?

Poderia o rei legitimar uma rebelião num Estado Constitucional? Não é a Espanha um estado de direito democrático? Não reconhece a Constituição espanhola a diversidade das suas comunidades?

Poderia o rei, em nome da unidade de Espanha e do espírito de cooperação e solidariedade, deixar de denunciar o egoísmo e a falta de lealdade dos líderes da Catalunha, cuja representatividade eleitoral também estava longe de reunir o consenso da sociedade catalã?

Poderia o rei criticar, publicamente, a polícia, que procurava fazer cumprir a lei, sem fragilizar o poder exclusivo do Estado para exercer a violência?

A investigação dos juízes à violência exercida polícia na Catalunha, que considero absolutamente condenável, não terá vindo dar razão à convicção manifestada pelo rei relativamente às virtualidades existentes num Estado Constitucional moderno, isto é, de direito democrático[11] para resolver os problemas, como por exemplo a aplicação desproporcionada da força contra civis pacíficos?

Poderia o rei ter pedido diálogo ou mediação sem que tal implicasse um reconhecimento, implícito, da legitimidade das pretensões independentistas e consequentemente o reconhecimento da desagregação da Espanha como Estado Uno?

A forma como o rei terminou o seu discurso, não constituirá um apelo à reflexão e diálogo na sociedade espanhola?

Como acredito que a política é a arte do possível, e tenho esperança que a Espanha encontre a energia e engenho suficientes para superar a atual crise e contribuir para construção do projeto europeu, termino com a parte final do discurso de Filipe VI:

Son momentos difíciles, pero los superaremos.(…) Porque nuestros principios democráticos son fuertes, son sólidos. Y lo son porque están basados en el deseo de millones y millones de españoles de convivir en paz y en libertad. Así hemos ido construyendo la España de las últimas décadas. Y así debemos seguir ese camino, con serenidad y con determinación[12].


[1] “Em 1888, Alfred Jarry e os seus colegas de escola decidiram parodiar o aspeto grotesco e boçal do seu professor de física, constantemente alvo do ridículo por parte dos alunos. Assim nasce o “Rei Ubu”, que o autor criou para representar a terrível natureza animal do Homem, expondo o nível de crueldade e desumanidade a que se consegue chegar a partir de uma simples posição de poder.Ubu assassina o rei Venceslau e usurpa o trono da Polónia. Ao longo de uma sucessão de episódios absurdos, exerce o seu reinado de forma brutal e sanguinária, deixando o país na miséria. Figura monstruosa e corrupta, mas acima de tudo, covarde, estúpida e ridícula (de tal maneira que dá vontade de rir), Ubu pratica uma política catastrófica em seu próprio interesse, arruinando todo o território à sua volta. Uma metáfora assustadora que, ciclicamente, vai encontrando ecos na realidade internacional.” http://bilheteira.fnac.pt/Evento-6604/UBU-REI

[2] Bruno Latour in, O Grande Retrocesso, Lisboa, Objetiva, 2017,p. 137.

[3] https://ionline.sapo.pt/582667 [consultado em 9.10.2018].

[4] “A Europa está perante três ameaças: o abandono em campo aberto dos países que tinham inventado a globalização; a alteração climática; a obrigação de servir de refúgio a milhões de migrantes e refugiados. Esses três não passam, aliás, de aspetos de uma e mesma metamorfose: o solo europeu mudou de natureza: nós, Europeus, estamos todos em migração para territórios a descobrir e a reocupar. (…)

Que fazer, se não existe planeta, terra, solo, território para nele alojar o Globo da globalização para onde todos os países pretendiam rumar? Ou negamos a existência do problema, ou então tentamos descer à terra. Para cada um de nós, põe-se a questão: «Será que continuamos a alimentar sonhos de fuga ou será que nos pomos a caminho à procura de um território habitável para nós e para os nossos filhos?» É, de agora em diante, o que divide as pessoas, muito mais do saber se é de direita ou de esquerda.” (Bruno Latour in O Grande Retrocesso, Lisboa, Objetiva, 2017,pp. 138-39)

[5] Público, 5.10.2017

[6] JUDT, T. (2016) – Pós-Guerra,: História da Europa desde 1945, Lisboa, Edições 70, p. 388.

[7] Idem, ibidem, p. 586.

[8] Idem, ibidem, p. 602.

[9] Idem, ibidem, p. 801.

[10] in O Grande Retrocesso, Lisboa, Objetiva, 2017,pp. 18-19.

[11] A los ciudadanos de Cataluña –a todos− quiero reiterarles que desde hace décadas vivimos en un Estado democrático que ofrece las vías constitucionales para que cualquier persona pueda defender sus ideas dentro del respeto a la ley. Porque, como todos sabemos, sin ese respeto no hay convivencia democrática posible en paz y libertad, ni en Cataluña, ni en el resto de España, ni en ningún lugar del mundo. En la España constitucional y democrática, saben bien que tienen un espacio de concordia y de encuentro con todos sus conciudadanos.

[12] http://www.casareal.es/ES/Actividades/Paginas/actividades_discursos_detalle.aspx?data=571

 

Um pensamento em “Em defesa do discurso de Filipe VI de Espanha”

  1. Um artigo lúcido e que denota um conhecimento profundo da realidade, sem devaneios nem ideologias “balofas”. É preciso assentar os pés na terra e apelar aos consensos. No contexto atual, a Europa precisa de se unir para reforçar o seu papel no imenso e multifacetado xadrez mundial, não de se fragmentar!

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